Pressionado, governo federal considera mineração atividade essencial e se torna cúmplice de mineradoras

Para quem nega sistematicamente a gravidade da pandemia e se mostra incapaz de administrar uma crise desse tamanho, o governo Bolsonaro também não tem problema algum em, após pressão de mineradoras, publicar uma portaria em um sábado à noite para considerar a mineração atividade essencial.

A manobra aconteceu às 19:30 de 28 de março. Após as matérias exclusivas em que denunciei  que a Vale mantinha trabalhadores aglomerados no Pará e em Minas Gerais e que a CSN Mineração fazia o mesmo – trata-se das duas maiores produtoras de minério de ferro do país – a resposta do governo veio imediatamente.  

Depois da publicação das reportagens, a Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale protocolou uma denúncia no Ministério Público do Trabalho, que abriu um inquérito civil para investigar o caso.

A portaria assinada por Bento Albuquerque, ministro de Minas e Energia, passou a considerar a mineração uma atividade essencial e que, portanto, não pode ser paralisada. Algo que não tinha ocorrido no decreto anterior de Bolsonaro, publicado em 20 de março. Não só o processamento e a logística em si, mas também a pesquisa de recursos minerais.

Na prática, as mineradoras ganharam um aval para manter centenas de milhares de trabalhadores aglomerados e expostos ao risco da Covid-19, continuar lucrando e seguir até com as pesquisas em todo o país, incluindo aquelas que incidem sobre terras indígenas na Amazônia, como mostramos numa série de reportagens aqui.

Perguntei ao MME se o ministério foi procurado pelo IBRAM (Instituto Brasileiro de Mineração) e por mineradoras para inserir a mineração como atividade essencial no meio de uma pandemia e assinar a portaria no sábado à noite.

O ministério confirmou que sim, foi “procurado por empresas do setor e suas associações representativas solicitando a inclusão da mineração como atividade essencial, após a edição do Decreto 10.282/20”, afirmou. Perguntado sobre o mesmo tema, o IBRAM também confirmou que “mantém um contato constante com o MME”.

O nome disso é lobby, que ainda não é regulamentado no Brasil, mas que funciona 24 horas por dia e que, em muitos casos, decide quem vive e quem morre. O IBRAM ainda disse que “os minérios são matérias-primas para quase todas as indústrias e para o agronegócio. Sem o suprimento de minérios, muitos setores podem correr o risco de desabastecimento, talvez chegando até ao consumidor brasileiro”.

Exceção como regra

Na resposta à reportagem, o MME ecoou o mesmo discurso do IBRAM e citou a Constituição (artigo 176), a Lei 3.365 de 1941 e o Código de Mineração de 2018 para afirmar que a mineração é imprescindível ao país e que, em resumo, “a produção de alimentos, remédios, embalagens, peças e equipamentos se faz impossível sem os bens minerais”.

Ainda segundo o MME, a Portaria 135/20 tem o objetivo de assegurar o abastecimento de insumos indispensáveis à sobrevivência, à saúde e à segurança da população enquanto perdurar a pandemia da COVID-19.

Para Bruno Milanez, doutor em política ambiental e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), o MME tomou a exceção como regra. O pesquisador lembra que a mineração, de forma geral, é uma atividade de grandes escalas, com grandes estoques, uma cadeia longa de extração, processamento, logística e transformação que leva meses até o produto final.

Por causa da pandemia, a demanda está diminuindo. Parar agora, portanto, quando a contaminação está crescendo rápido no Brasil – já são quase 8 mil casos e 299 mortes – apenas reduziria os estoques existentes, não comprometeria a produção de remédios, alimentos e equipamentos e preservaria a saúde dos trabalhadores.

“Seria possível deixar pelo menos 70% dos trabalhadores em casa sem problema algum de desabastecimento. Precisaria ter inteligência, esforço e vontade de fazer o que é correto. Mas não parece ser a posição do MME, que é a de manter tudo funcionando como se todo o minério extraído fosse ser usado pelo Brasil nesse momento, o que é uma falácia”, afirma Milanez.

No Brasil, a maior parte dos minérios são exportados. Cerca de 80% do ouro, 80% do cobre, 75% do manganês, 70% do minério de ferro vão para fora. Principalmente a China, no caso do minério de ferro, que compra 60% da produção brasileira.

Para o pesquisador, o contexto da publicação da portaria dá a entender que interessa às próprias mineradoras que não querem deixar de vender ou entregar o minério que foi vendido. A motivação seria puramente comercial, portanto, sem qualquer preocupação com a saúde das milhares de pessoas que trabalham para as empresas.

“Seria interessante que eles colocassem qual é a relevância do ouro para a produção de remédios e todas as coisas que consideram essenciais para o combate à pandemia. Tem vários minérios aí que não são nem um pouco essenciais e necessários nesse momento”, lembra.

Letícia Camarano, advogada ambientalista, concorda. E lembra que falta clareza e detalhamento nas portarias, decretos e regulamentações publicadas até o momento. “Considero que a disponibilização dos insumos minerais deve ser enquadrada em normas claras e específicas, com prazo determinado, com o objetivo restrito e exclusivo de enfrentamento das emergências de saúde decorrentes do coronavírus. Qualquer outro interesse que não se oriente pela garantia do direito fundamental à vida deveria ser rejeitado.”, afirma.

O Ministério de Minas e Energia também negligencia, em resposta, o fato já comprovado de que as aglomerações em diversas mineradoras seguem acontecendo e que, em outros casos, os trabalhadores também operam em minas subterrâneas e sofrem mais com problemas respiratórios.

O MME disse que “as operações em atividades de mineração se desenvolvem, de regra, sem aglomeração dos empregados. É um setor bastante automatizado, inclusive quanto aos veículos operados. De regra se realiza a céu aberto, em áreas bastante amplas”.

Na Amazônia, como mostrado na reportagem sobre as instalações da Vale no Pará, trabalhadores moram em alojamentos, pegam ônibus lotados para ir e voltar das minas, se aglomeram em refeitórios, na hora de bater o ponto na entrada e na saída e também ficam em áreas isoladas.

Se acontecer qualquer tipo de ocorrência, o tempo que levará para o trabalhador ser removido e transportado a um hospital é enorme.

“Você tem uma parte considerável dos trabalhadores do Brasil da área da mineração que estão numa situação que é o oposto do que o MME afirma. É preciso ver as nuances entre diferentes regiões. O MME está se negando a enxergar a complexidade do setor mineral e está expondo uma quantidade considerável de trabalhadores da mineração”, critica Milanez.

Leia na íntegra as respostas do MME.

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