Sal-gema no Espírito Santo: comunidades quilombolas ainda não foram consultadas, mais de dois anos após leilão

Por Fernanda Couzemenco*

Dentro do Sapê do Norte, área no Espírito Santo quase na divisa com a Bahia, a informação das comunidades quilombolas é de que, até o momento, nenhuma consulta foi feita por parte das mineradoras, da Agência Nacional de Mineração ou do Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema) sobre os planos de exploração de sal-gema na região, que concentra as maiores reservas do Brasil e da América Latina.

Como determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada em lei pelo Brasil, essas comunidades tem direito à consulta livre, prévia e informada. E precisam ter seus protocolos de consulta e suas decisões sobre se permitem ou não projetos extrativos que impactam na área em que vivem respeitados. Até agora, porém, mais de dois anos após o leilão e as pesquisas que geram divergências entre órgãos estaduais e federais, como mostrou o Observatório da Mineração, nenhum diálogo foi aberto com os quilombolas.

“Não veio ninguém conversar com a gente”, afirma Domingos Firmino dos Santos, o Chapoca, membro da Coordenação Quilombola Estadual Zacimba Gaba, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Rurais Quilombolas (Conaq) e da Comissão Quilombola do Sapê do Norte. 

Chapoca explica que a exclusão de três áreas de sal-gema previstas originalmente no pacote se deu em função de três comunidades do Sapê do Norte: Córrego do Alexandre, Morro da Onça e Roda d´Água. “Santana, que é um quilombo urbano, também deveria estar incluído, mas não entramos no MPF sobre ela ainda. Linharinho e Angelim 1 também podem ser impactados. E tem o nosso direito de ir e vir, muitas vezes o sal-gema não está em uma comunidade, mas a exploração pode interferir nas comunidades próximas”, avalia.

“Vamos fazer uma nova reunião no Ministério Público. Ele arquivou o processo, mas a gente pode entrar de novo, pedindo bloqueio em outras áreas. Tem outras comunidades que pega, também, Meleiras e Barreiras, que não são quilombolas, mas que tem a manifestação do São Benedito”, anuncia. Um pedido foi feito ao MP para retomar o processo.

Josielson Gomes dos Santos, da coordenação estadual da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) e presidente da Associação dos Remanescentes Quilombolas Morro da Onça, compartilha da preocupação sobre os impactos sobre outras comunidades. “A Comissão Quilombola do Sapê do Norte pediu a retirada de todas as áreas localizadas dentro do território que possam ter impacto. A gente quer proteger todo o Sapê do Norte”.

Para a reunião solicitada, será apresentado um novo documento, reafirmando esse repúdio à mineração em todo o território, com possível ampliação das áreas de exclusão. “Estamos cuidando do bem viver no nosso território”, afirma a educadora quilombola Olindina Cirilo Nascimento Serafim, também integrante da Comissão Quilombola do Sapê do Norte.

Com esse objetivo, a despeito da inércia dos órgãos federais e estaduais, as comunidades já estão elaborando seus protocolos de consulta, nos moldes da OIT 169, com apoio da ONG Federação dos Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE).

Um primeiro protocolo, geral para o Sapê, já está pronto e agora cada comunidade está adaptando o documento para suas realidades. “Morro da Onça e Angelim 2 estão elaborando seus protocolos comunitários”, informa Olindina.

Para além do sal-gema, os protocolos também serão utilizados para forçar o cumprimento da OIT 169 por parte de empreendimentos historicamente violadores de direitos quilombolas, como os monocultivos de eucalipto da Suzano (ex-Fibria e ex-Aracruz Celulose), os monocultivos de cana-de-açúcar e a exploração petrolífera.

Entre o histórico de violação de direitos está a pulverização aérea de agrotóxicos feita pela Suzano nas plantações de eucalipto da área. Moradores relatam prejuízos em sua produção alimentar, o esgotamento das fontes de água, a morte de peixes e o desenvolvimento de doenças, como mostrou a Mongabay Brasil. Na União Europeia, a aplicação aérea de pesticidas está proibida desde 2009. No Brasil, porém, o número de pessoas atingidas pela prática aumentou 86% entre 2021 e 2022.

Foto de destaque: Parque Estadual Itaúnas e APA Conceição da Barra / Divulgação IEMA

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“Geoética” deveria balizar processo de exploração e respeito às comunidades

A garantia de direitos de populações tradicionais é um dos princípios que a Geologia deve respeitar dentro da chamada Geoética, que passou a guiar o ofício dos geólogos nos últimos trinta anos, aponta o professor do departamento de Geologia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Paulo Fortes.

“Eu defendo a mineração. Sem mineração, o mundo que temos hoje não existiria. Mas não a mineração que faz garimpo em terra indígena, que degrada território de povos tradicionais. Nós cada vez mais temos que trabalhar com nossa responsabilidade ética, a geoética, que é um conceito fundamental no nosso processo de formação profissional”.

Paulo Fortes explica que a fase atual em que se encontram as áreas de sal-gema no Espírito Santo, de pesquisa mineral, também é chamada de exploração. Concluídas as pesquisas, as empresas requerem autorização para lavra, chamada de fase de explotação. “Na fase de exploração vamos conhecer melhor os corpos de sal que existem, qual a profundidade, que tipo de material tem cobrindo o sal, qual a cubagem de jazida, que é a quantidade real que tem para ser extraída. No final dela, tem a fase de plano de aproveitamento econômico, quando os investidores vão fazer suas contas e discutir o método de lavra”.

Em campo, ele diz que o impacto da pesquisa é pequeno. A pesquisa requer que seja aberto um “furo de sondagem” e que geralmente se leva um leva gerador a diesel para o funcionamento das máquinas. Ele conta que em tempos passados essas obras eram feitas e não havia o cuidado de recuperar a paisagem ou mesmo de retirar todos os equipamentos utilizados. “Hoje tem que ter autorização ambiental, tem que recompor a vegetação”, compara.

O cenário ideal, salienta, é que “em áreas de proteção ambiental e suas zonas de amortecimento não pode haver atividade”. Esse princípio da geoética, no entanto, caminha ao lado de um paradigma muito sólido na mineração, que evoca a chamada “rigidez locacional”, uma característica da atividade minerária, em que a localização da jazida é algo que foge ao controle do minerador, e que é usado frequentemente para legitimar a necessidade de que os territórios cobiçados tenham que suportar os impactos sociais e ambientais da mineração. “Tem alguns aspectos que a gente não consegue contornar, como a rigidez locacional, é uma limitação que a natureza impõe para a gente”.

A solução para esses e outros dilemas, avalia, é o rigor da lei e o emprego das melhores técnicas. “A legislação brasileira é excelente e nossos técnicos são muito competentes”, diz o professor. Somente o melhor uso desses recursos pode prevenir catástrofes como a da Braskem em Alagoas e da Vale no Rio Doce e em Brumadinho, afirma.

Mobilização quilombola. Foto: Divulgação

APA desestruturada

Difícil ser otimista, no entanto, diante do que se pode enxergar do processo capixaba. Não fosse a agilidade das comunidades quilombolas, que mobilizaram o Ministério Público Federal (MPF) diante do noticiário local dando conta do leilão da ANM, as empresas vencedoras do certame e os órgãos públicos já teriam atropelado o princípio internacional elementar, que é a de “consulta livre, prévia e informada” estabelecida na Convenção 169 da OIT.

O único movimento feito até agora pelo governo do estado na direção do Sapê do Norte foi a publicação do Decreto nº 5546-R, publicado em novembro passado pelo governador Casagrande, instituindo um Grupo de Trabalho (GT) com duas finalidades: “acompanhar os processos administrativo-minerários destinados à exploração mineral e suas decorrências nos órgãos pertinentes, inclusive o de licença ambiental”; e “propor ações administrativas destinadas à conscientização do processo de exploração minerária e integração com comunidades tradicionais”.

Não há, no entanto, qualquer cadeira destinada às comunidades no grupo, apenas para dez instituições públicas estaduais e municipais, além de ser admitida a participação de um representante de cada empresa responsável pelas 11 áreas de exploração do Sal-gema no Grupo de Trabalho, com direito a voto.

Plantio de alimentos na comunidade quilombola Morro da Onça, uma das três que conseguiram exclusão de áreas de pesquisa de sal-gema no Sapê do Norte

O respeito à legislação ambiental também não parece alcançar muito êxito. Em nota, a assessoria do secretário de meio ambiente do ES, Felipe Rigoni, afirmou que a realização das pesquisas, a exemplo da declaração da ANM, destacou a criação do GT como uma demonstração de diálogo com a sociedade e alegou compromisso ambiental.

“A Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Seama) tem acompanhado atentamente as pesquisas realizadas relacionadas ao Sal-Gema no Espírito Santo. Inclusive, foi criado um Grupo de Trabalho para acompanhar as áreas que já estão sendo pesquisadas. Vale destacar que três das áreas foram suspensas pelo Ministério Público Federal e não estão na fase de pesquisas.  Além disso, serão realizados diálogos com a sociedade para garantir a tão importante e necessária participação popular. Reforçamos que a preservação ambiental será sempre a prioridade e nada será feito em desacordo com critérios”.

Sobre o conselho gestor da APA de Conceição da Barra, a Seama disse que “está em funcionamento” e apresentou um panorama de sua composição. Os órgãos públicos ocupam oito cadeiras: Iema; Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama); Polícia Ambiental; Companhia Espírito Santense de Saneamento (Cesan); Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal do Espírito Santo (Idaf); Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural (Incaper); Gerência Regional de Patrimônio da União (GRPU/ES); e Prefeitura Municipal de Conceição da Barra (PMCB).

Já a sociedade civil, prossegue a nota, tem seis segmentos representados: “Moradores da APA organizados em diferentes entidades legalmente constituídas; Entidade da sociedade civil legalmente constituída de defesa do meio ambiente, com atuação local; Setor turístico regional; Setor empresarial com atuação regional; Associações com atuação local e relacionada ao setor produtivo; Comitê de Bacias Hidrográficas do rio São Mateus”.

Representante do segmento empresarial desde 2021, o conselheiro Pedro Modesto tem um entendimento diferente da Seama do que seja um conselho em funcionamento. Desde que assumiu, foi convocado para apenas uma reunião, que tratou do plano de manejo da unidade.

“O conselho não funciona por vários motivos”, afirma Pedro, elencando “falta interesse das autoridades, como o secretário de meio ambiente e o gestor do comitê de bacia; também há pouco recurso material, poucos veículos, pouco pessoal. A Polícia Militar Ambiental também não tem recurso nem pessoal para fazer patrulhamento, eles nunca foram em reunião, nem o secretário de meio ambiente de Conceição da Barra”. E pondera: “sei que há burocracia no Brasil para os empreendimentos, mas tem que começar a mexer nisso para as empresas apresentarem condicionantes, soluções para os impactos”.  

APA Conceição da Barra. Divulgação IEMA.

PL da Destruição ataca licenciamento ambiental no estado

Outro indicativo importante da falta de empenho em diálogo e transparência na gestão de Rigoni e o governador Renato Casagrande foi a sanção do novo licenciamento ambiental (Lei Complementar nº 1073/2023). Oriundo de um PLC do Executivo apelidado de “PL da Destruição” por servidores do Iema, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e dezenas de organizações da sociedade civil após uma aprovação fácil na Assembleia Legislativa, o novo regramento traz uma série de retrocessos em relação à antiga norma, semelhantes à sua versão nacional, o PL 2159/2021, que tramita na Câmara dos Deputados.

Entre os pontos mais preocupantes, a lei capixaba desobriga a realização de audiências públicas nos licenciamentos ambientais e cria a figura do Conselho de Gestão Ambiental (CGA), que é presidido pelo secretário de Meio Ambiente e composto apenas por representantes do alto escalão de órgãos e autarquias públicas.

Cabe a ele, inclusive, retirar processos de licenciamento que tenham dado entrada no Iema e decidir sobre seu deferimento ou não, mediante avaliação de um parecer produzido por servidores designados pelo presidente para a função.

Enquanto Maceió literalmente afunda com as minas da Brasken, o Espírito Santo parecer “patinar” sobre suas jazidas, na contramão dos princípios da precaução, transparência e participação social, cada vez mais necessários nesses tempos de esgotamento dos recursos naturais e crise climática.

Fernanda Couzemenco é jornalista, mestranda em Comunicação e Territorialidades pela Universidade Federal do Espírito Santo, pesquisadora do programa Fordan: cultura no enfrentamento às violências (Ufes) e bolsista da Fapes.

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