Após pressão do movimento indígena e recuo do mercado, PL 191 fica no congelador

Projeto de lei “da morte”, “do genocídio”, “do extermínio”, o PL 191/2020 foi chamado por muitos nomes durante a mobilização que reuniu 8 mil indígenas de todo o país em Brasília.

E o Acampamento Terra Livre acaba hoje, no dia inicialmente marcado para a votação do PL 191, com uma vitória: o projeto de lei de Jair Bolsonaro, Bento Albuquerque e Sergio Moro, encomendado desde o primeiro dia de governo, permanece na gaveta da Câmara dos Deputados.

“A gente tá lutando contra esse projeto. Espero que os parlamentares entendam isso. Não é só floresta, terra, rio. Nosso costume, nossa cultura e nosso futuro acaba”, disse Megaron Txucarramãe, histórica liderança Kayapó, ao Observatório da Mineração.

Isolado, Arthur Lira (PP-AL) não conseguiu sequer instalar o grupo de trabalho previsto após a aprovação da urgência na votação do PL 191, um mês atrás. Pressionados por 10 dias pela maior manifestação indígena do mundo e abandonado por aliados de primeira hora do mercado, Jair Bolsonaro e o Congresso não conseguiram, ainda, aprovar o PL que busca autorizar a exploração mineral, o agronegócio e hidrelétricas em terras indígenas. A tentativa foi adiada.

Para Megaron, Bolsonaro e a Fundação Nacional do Índio (Funai), que deveria proteger os direitos indígenas e atuar em parceria nos territórios, quer empurrar o PL à força.

“Tem outro jeito de trabalhar e ter renda, não é só garimpo e madeira. Falta vontade do governo, da Funai, que tá aqui pra isso. O que a Funai quer é forçar os indígenas a aceitarem o PL 191”, diz Megaron.

Leia toda a cobertura especial do ATL 2022

O líder indígena do Mato Grosso tem razão: sob Bolsonaro, a Funai se converteu em peça de propaganda do garimpo e do agronegócio, perseguindo lideranças críticas ao governo e fazendo reuniões fora da agenda para tentar convencer povos de que o PL 191 seria “bom” para os indígenas, como mostrei em matéria exclusiva de março de 2021.

Para Beto Marubo, liderança do Vale do Javari (AM), se o PL 191 for aprovado, os povos indígenas isolados, ainda mais vulneráveis aos invasores, “serão extintos”.

Durante todo o ATL, o PL 191 esteve em pauta nas manifestações, nas falas, nas marchas e nos protestos de povos que vieram até Brasília para tentar garantir que o Congresso respeite os direitos conquistados na Constituição de 1988.

“O presidente declarou guerra aos povos indígenas. Nosso direito é anterior à invasão dos portugueses e a formação do estado brasileiro. Tem um pacote de maldades no Legislativo que envolvem retrocessos de direitos consolidados, inclusive de cláusulas pétreas da Constituição”, destacou Dinamam Tuxá, coordenador-executivo da Apib.

No primeiro dia do ATL uma Carta Aberta foi lançada contra o projeto de lei. “É um projeto que atropela a Constituição Federal e ataca, mais uma vez, os direitos dos povos originários do Brasil.  O PL 191/2020 apresenta evidentes problemas jurídicos e de inconstitucionalidade, desconsidera tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, e afronta o próprio Regimento Interno da Câmara dos Deputados”, diz a carta. O PL 191 também foi condenado por relatores da ONU e eurodeputados em outra plenária.

“Esse é o PL da devastação, da destruição, de tudo que é ruim. Vem para massacrar povos indígenas”, afirmou Joenia Wapichana, deputada federal indígena – a única do país – de Roraima.

E justamente com o objetivo de mudar esse cenário e enfrentar a bancada ruralista e o lobby da mineração, foi lançada a “Bancada do Cocar” no ATL 2022, com candidaturas indígenas para o Congresso Federal e bancadas estaduais.

“Nos perguntam: Vocês estão preparadas? E por que são vocês que tem condições de ocupar o Congresso Nacional?  Porque não somos nós, mulheres indígenas, que temos as mãos sujas nem de sangue nem de lama pela mineração. Nós não estamos indo pelo poder, mas é pra poder fazer. Sou pré-candidata a deputada federal pelo estado de Minas Gerais porque não suportamos mais ser roídos pela mineração”, disse Célia Xakriabá.

Em intervenção histórica, uma marcha indígena levou “um dia de garimpo ilegal” para a Esplanada dos Ministérios e para as portas do Ministério de Minas e Energia.

“Repudiamos o governo Bolsonaro genocida. O povo Munduruku diz ‘não’ ao PL 191 e ‘não’ ao marco temporal. Resistimos com toda a força de poder de nossas ancestralidade”, afirmou Ediene Munduruku.

Maiores mineradoras fazem recuo estratégico sobre o PL 191

Diante do fracasso das articulações para alterar o Código de Mineração no fim de 2021 e atento ao ano eleitoral, o governo começou 2022 apostando tudo em conseguir aprovar o que não foi capaz até agora, o que inclui o PL 191/2020, colocado formalmente na lista de prioridades do Planalto.

Aliado de Jair Bolsonaro e com campanhas em parte financiadas por empresas ligadas ao garimpo na Amazônia – como mostrei aqui em fevereiro de 2021 –Arthur Lira, presidente da Câmara, passou por cima do regime da casa e criou um “grupo de trabalho” para analisar o PL 191.

Esse GT, no entanto, também fracassou diante da pressão indígena e do próprio mercado. A ideia de Lira agora é resgatar o GT que falhou em chegar a um consenso sobre o Novo Código de Mineração, mesmo sob encomenda de Bolsonaro e do próprio Lira, de acordo com os deputados envolvidos.

Se a mineração em terras indígenas “ficaria de fora” do Novo Código de Mineração, agora a tática mudou.

Em 24 de março, Raul Jungmann, o novo presidente eleito do Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM), que representa as maiores mineradoras do Brasil, se reuniu com Arthur Lira. Oficialmente, o discurso é “se colocar à disposição dos parlamentares para abrir espaço ao setor se manifestar e apresentar informações técnicas que possam contribuir para o debate no Legislativo”.

Recentemente o IBRAM conseguiu emplacar na mídia a narrativa de que é contra o PL 191, embora o seu histórico, as relações com o governo e o apoio direto dado ao projeto em 2020, além dos bastidores, indiquem uma realidade bem mais complexa, como detalhamos aqui. Jungmann, ex-ministro da Defesa e da Segurança Pública do governo de Michel Temer, assumiu a presidência do IBRAM em 01 de março.

O setor mineral e a Vale em particular, que mantinha centenas de requerimentos para explorar terras indígenas na Amazônia, vão muito bem, obrigado.

A Vale fechou 2021 com lucro líquido de US$ 22,4 bilhões, cerca de R$ 121 bilhões. É uma alta de impressionantes 360% em relação a 2020, que havia sido recorde. Esse resultado é, com folga, o maior em todos os tempos de uma empresa de capital aberto no Brasil.

O setor mineral, no geral, registrou uma alta de 62% no faturamento em 2021 ante 2020, atingindo R$ 339 bilhões. É um incremento exponencial no recorde do primeiro ano de pandemia. Não é inteligente e estratégico se desgastar com o PL 191 agora e se aliar tão diretamente a Jair Bolsonaro, um pária internacional.

Abrir terras indígenas para a mineração é prioridade do governo Bolsonaro desde o início

Bolsonaro também tentou usar a invasão russa na Ucrânia e a dependência externa do Brasil de fertilizantes como pretexto para aprovar o PL 191/2020.

Na verdade, desde o início do mandato Jair mobilizou o Ministério de Minas e Energia e a cúpula do governo para liberar terras indígenas para a mineração e o agronegócio.

Ainda em março de 2019 eu mostrei que Bento Albuquerque, ministro de MME, planejava abertamente abrir as TI’s para exploração após se reunir com mineradoras.

Estendendo o tapete vermelho para o lobby mineral em Brasília, o projeto foi apresentado para embaixadores de diversos países e executivos de empresas até chegar ao formato final no início de 2020.

No maior evento de mineração do mundo, realizado todo ano no Canadá, o tema sempre esteve na pauta das negociações.

A ideia também foi incorporada em forma de metas dentro do Programa Mineração e Desenvolvimento (PMD), centro da política mineral do governo.

Com o apoio de lobistas e aliados históricos, que defendem que “o governo pode fazer o que quiser” sobre mineração em terras indígenas, Bolsonaro começou a mudar regras na canetada no início de 2022.

A “urgência” da votação do projeto de lei com a desculpa da guerra, sem discussão com a sociedade e os povos indígenas, portanto, é apenas a última estratégia utilizada.

Resta acompanhar até quando esse recuo estratégico durará e em qual momento tentarão novamente aprovar o PL 191/2020, demanda presente na Câmara desde a década de 90, quando Romero Jucá – envolvido no genocídio Yanomami – apresentou o primeiro PL com esse objetivo.

Todas as fotos por Rebeca Binda / Observatório da Mineração

*A cobertura especial do Acampamento Terra Livre 2022 pelo Observatório da Mineração contou com o apoio da Amazon Watch.

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