Texto e fotos por Fernanda Canofre*, especial para o Observatório da Mineração
DE CANDIOTA (RS) – O letreiro no pórtico de entrada de Candiota, a 400 km de Porto Alegre, na região da Campanha gaúcha, traz o nome do município em letras brancas e um desenho da silhueta da usina termelétrica conhecida como Candiota III, acompanhado de um coração. Na terra do carvão mineral, as minas e as usinas movidas por ele são cartão-postal e se confundem com a identidade de quem vive ali.
Francisco Carlos Dias Munhoz, 60, mora a alguns metros da usina, onde trabalhou como motorista, em uma terceirizada, anos atrás. “Eu adoro aqui”, diz ele. “Não pode sair (o carvão), querem tirar a maior riqueza do município?”.
“Nunca tive uma gripe sequer. Cinza, para nós, é como uma poeira de estrada de chão. Quando construíram essa Fase C, melhorou mais ainda”. A chamada Fase C começou a operar em 2011.
O relato de Munhoz se soma ao de outros moradores, de empresários e de políticos locais. A maioria das pessoas que se encontra pela cidade parece ir em direção a negar o que apontam estudos: como se a dependência do carvão fosse um bom negócio e as usinas termelétricas não trouxessem problemas socioambientais.
Foi pelas usinas que o nome de Candiota apareceu em destaque em um relatório recente do Iema (Instituto de Energia e Meio Ambiente), divulgado em junho. O inventário sobre termelétricas apontou as duas unidades ativas no município – Candiota III, da CGT Eletrosul, e Pampa Sul, da Engie – como as líderes em emissões de gases do efeito estufa (GEE) e entre as menos eficientes do país.
A Pampa Sul aparece no topo do ranking, entre as termelétricas em atividade, com 2 milhões de toneladas de emissões de gás carbônico (CO2). A Candiota III aparece na sexta posição, com 1,6 milhão. O documento afirma que, entre as dez usinas menos eficientes do país, cinco são movidas a carvão, fonte não-renovável que governos do mundo tentam deixar para trás. As duas unidades de Candiota são as piores, com apenas 27% de eficiência. As empresas contestam.
Conversar sobre as atividades em torno do carvão com moradores e o prefeito Luiz Carlos Folador (MDB) é como entrar em um assunto pessoal. A maioria decreta de cara que, sem minas e usinas, Candiota deixaria de existir e afasta qualquer possibilidade de ver isso acontecer, quase em tom de prece. Quem tem críticas prefere não falar por receio de represália.
O município tem a maior jazida de carvão mineral do Brasil, com potencial de 1 bilhão de toneladas a serem mineradas a céu aberto, segundo a CRM (Companhia Riograndense de Mineração), e minas próximas às áreas urbanas.
Candiota surgiu no século 19 graças à descoberta de carvão em um arroio local, mas só virou município em 1993. Em 1961, a CRM se instalou ali, alimentando a recém-inaugurada usina Candiota I, povoando de vez a área.
O desenho da cidade hoje, com bairros de desenhos diferentes e distantes entre si, é influência direta desses empreendimentos. É difícil encontrar na cidade quem não tenha algum vínculo, presente ou passado, com uma das atividades.
“Tinha dias que não podia abrir a porta de casa, porque a primeira coisa que entrava era cinza. A roupa estendida enchia de cinza. Isso mudou há uns 40 anos”, lembra Dalva da Silva Souza, 80, que vive há 53 no município. Ela chegou ali para trabalhar numa cooperativa de mineiros. “Acho que deveriam lutar e se agarrar para que isso não termine”, afirma sobre a possibilidade de a mineração do carvão parar.
“A cidade gira em função das usinas e das minas”, diz Iara Rosane Lima, 58. “Há tanta tecnologia, tantos filtros, tem que haver uma forma de baixar o nível de poluição que faça o carvão seguro. Inventam tanta coisa, será que não tem uma forma de melhorar? Porque já melhorou bastante”, pontua Sandra Blois, 55.
Ao ouvir a menção ao relatório do Iema, em uma sala da prefeitura, onde conversava como o Observatório da Mineração, o prefeito Folador se irritou e ameaçou mais de uma vez parar a entrevista. Ele afirma nunca ter tido qualquer problema de saúde vivendo no município, e acusou a reportagem de “querer tirar a dignidade das pessoas”.
“A usina Pampa (Sul) o que gera é desenvolvimento, é riqueza, emprego das pessoas, dos biólogos, dos técnicos, dos engenheiros ambientais, das pessoas que aqui vivem, que aqui moram e das pessoas que aqui vão viver. A Pampa é geradora de emprego e desenvolvimento e o resto é falatório. É isso que vale, é isso que é”, defendeu.
Contestar os fatos parece uma prática comum na região. Mesmo sem apresentar questionamentos técnicos para a metodologia aplicada pelo Iema, o prefeito chama de “mentira” os achados dos pesquisadores e tenta defender a ideia de que carvão é sinônimo de desenvolvimento e bem-estar social.
“Esses que estão apontando esse relatório deveriam, recomendo a eles todos, pessoas do bem, de cuidarem dos moradores de rua das capitais, de Porto Alegre, de Pelotas, de São Paulo. Aqui a Pampa é nosso coração, a Pampa é a vida de milhares de pessoas de Candiota, Hulha Negra, Bagé, Pelotas, Porto Alegre e Florianópolis. A Pampa é o coração do nosso município e o resto é falatório, mentira descabida”.
O relatório do Iema se baseou em dados públicos, mas a conclusão é contestada pelas empresas. A CGT Eletrosul diz desconhecer a metodologia usada pela plataforma SEEG (Sistema de Estimativa de Emissões de Gases do Efeito Estufa), usada no inventário, e que “busca continuamente melhorar o desempenho de seu processo industrial alinhado a metas de redução de emissão de gases de efeito estufa” – a empresa diz que a eficiência da unidade foi de 34,6%.
O relatório do IEMA lista 10 páginas com metodologia detalhada, referências e observações adicionais. O SEEG também explica minuciosamente como chega aos dados divulgados. Ambas as fontes podem ser consultadas pelas empresas.
Já a Engie diz que “a informação publicada não condiz com os dados reais apurados e assegurados pela Companhia”, e aponta que a eficiência da Pampa Sul em 2020 foi de 35,77%. Em um relatório de atividades de 2021, a empresa defende o compromisso com a descarbonização e fala da “perspectiva de alienação” da usina, com expectativa de venda em 2022, só três anos após o início do contrato previsto para durar 25 anos.
Pesquisador do Iema, Felipe Barcellos e Silva explica que o inventário fez um cruzamento de bases de dados públicos, inspirado no modelo de relatório da Agência Ambiental dos Estados Unidos (EPA, na sigla em inglês), já que não encontraram nenhuma pesquisa que reunisse dados de emissões no Brasil com detalhamento de usina a usina.
“O gás de efeito estufa tem efeito global, o que foi emitido em Candiota vai influenciar o clima como um todo. Então, ainda que não tenha um dano direto para o munícipe de Candiota, tem dano para o sistema como um todo”, explica ele.
“O Brasil no geral, incluindo o RS e SC, precisa pensar numa transição da economia que não fique dependente do carvão, que é um combustível poluidor, que emite gás de efeito estufa e que o mundo todo está pensando em como substituir”.
O inventário do Iema não inclui dados de qualidade do ar. O Observatório tentou acesso aos dados de Candiota, que tem estações de medição espalhadas pelo município, mas não conseguiu retorno do Ibama até a publicação.
“Cidade fantasma” busca renovar a oferta de empregos que não estão garantidos após 2024
Em Candiota, não se encontra táxis e os bairros têm poucos comércios, o que faz com que o deslocamento até a chamada sede seja necessária para resolver a maioria das questões, além de haver pouca alternativa de lazer.
“[Há] falta de lazer. Onde eu morava era uma cidade turística, a gente conseguia sentar em um barzinho legal e aqui não tem isso. Além do custo de vida ser mais caro”, conta Adriele dos Santos Gomes, 25, que se mudou da cidade de Madre de Deus, na Bahia, para Candiota, pelo emprego do marido em uma das usinas.
O emprego é usado justamente como um dos pontos a favor das atividades ligadas ao carvão ali. Candiota, com população estimada em 9,7 mil habitantes pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), registrou salário médio mensal de 4,5 salários mínimos em 2020 – a terceira melhor média do Rio Grande do Sul. Apenas um quarto da população foi considerada ocupada, no entanto, com 37,2% das casas tendo renda de até meio salário mínimo por pessoa.
A Engie diz ter 113 empregados diretos e cerca de 500 terceirizados, enquanto a CGT Eletrosul diz ter 350 profissionais ligados à Candiota 3, entre diretos e terceirizados. Muitos desses funcionários vêm de municípios da região para trabalhar durante o dia, como mostra o comboio de ônibus que passam pela rodovia no fim da tarde.
Em comparação, segundo o Portal da Transparência da Prefeitura de Candiota, em setembro de 2022, o poder público afirma ter 440 vagas preenchidas com servidores efetivos e 64 com servidores comissionados.
Verônica Ferraz, 47, que trabalha como uma espécie de Uber no município, é uma das pessoas em busca de uma vaga. Artista, que gosta de interpretar personagens e fazer imitações, Verônica tem um contrato intermitente em uma terceirizada de uma das usinas, o que significa que só é chamada em situações eventuais.
“É bem difícil [achar emprego], por causa da política. A gente escuta que, embora tendo as usinas e tudo, tem desemprego”, diz ela. “A gente tem consciência que a crise do emprego não é só aqui, mas busca uma oportunidade”.
Para quem vive da mineração, a preocupação hoje está no fim dos contratos da operação da usina que ainda leva o nome de um presidente da ditadura militar, Presidente Médici, a Candiota III. O prazo termina em 2024 e até o momento parece haver pouca movimentação política para a renovação, conta o presidente do Sindicato dos Mineiros de Candiota, Hermelindo Ferreira. A usina compra 99% da produção da CRM, empresa controlada pelo governo gaúcho, que não avançou na privatização.
Hermelindo avalia que a Nova Seival, uma nova usina que teve o licenciamento parado pela Justiça Federal, poderia ter sido uma alternativa.
“Hoje nosso foco aqui é não deixar morrer Candiota em 2024. É o apagar das luzes. Se olhar esse mapa” – diz apontando um mapa do RS na parede – “Pelotas está aqui, último núcleo industrial, e 700 km tu anda na borda da fronteira com Uruguai, só tem campo, soja e um núcleo industrial, que é Candiota”.
“Temos carvão para extrair aqui por uns 200 anos. Poderíamos parar em 2024, mas quais outras alternativas econômicas a gente pode vislumbrar para toda essa mão-de-obra?”.
Carlos Rogério Madruga Peraça, 61, operador de máquinas na CRM, conta que se mudou para a cidade, há cerca de 20 anos, por causa do trabalho no carvão e diz que nunca teve problemas de saúde.
“Se der uma volta, vê se tem poluição em Candiota. Vai ver uma fumacinha na usina, muito pouquinha. Quando iniciou, há muitos anos, não tinha a tecnologia de hoje, então poluía um pouco mais”, diz ele.
Apesar de a poluição pela fumaça não ser visível, como diz ele, muitos moradores com quem a reportagem conversou, relatam notarem um pó escuro, de coloração mais cinza, quando limpam as casas.
Em visita a Candiota, em junho, Eduardo Leite (PSDB), ex-governador do Rio Grande do Sul e candidato em 2022, defendeu o fim das usinas a carvão, mas com ressalvas, ao jornal local Tribuna do Pampa.
“Temos que ter clareza que o mundo se alinha num conceito de energias renováveis, limpas, o que não contempla o carvão”, afirmou ele, falando em “transição justa” e citando um programa de seu governo.
“Não sou a favor de uma simples desativação. Não podemos desprezar o que houve até aqui e, diante disso, não podemos apertar um botão e deixar todo mundo desamparado. Não é justo nos demandar que desativemos usinas, quando temos 80% da nossa matriz renovável. É um processo que deve ser feito com serenidade e tranquilidade, sem deixar ninguém para trás”.
Cidade é sede da vinícola de Galvão Bueno. Alternativas econômicas patinam
Além do carvão – que inclui minas, usinas e cimenteiras, que usam as cinzas -, Candiota tem visto a expansão de outros negócios como plantação de oliveiras, para produção de azeite ou azeitonas, e vinhos.
Entre os investidores, estão nomes como o narrador da TV Globo, Galvão Bueno – que gravou mensagem ao ser vacinado contra a Covid-19 no município – e o engenheiro, empresário e pecuarista Luiz Eduardo Batalha, 75, amigo dele de longa data. Galvão não retornou ao contato da reportagem.
No site da Bueno Wines, marca dele, diz que a propriedade de Candiota está ativa desde 2009 e que a região desse terroir foi “apelidada por Galvão Bueno como a Califórnia Brasileira”. O site diz que são 17 vinícolas em uma faixa de 200 km paralela à fronteira com o Uruguai, nesse novo terroir.
Batalha, que está na região há 18 anos, é empresário, fazendeiro e tem plantações de oliveiras ali. O nome é associado na cidade aos olivais e à uma vinícola. A última, porém, não tem relação com ele, a inspiração teria sido a Batalha do Seival, episódio da Guerra dos Farrapos (1835-1845) ocorrido ali e que tem um marco à beira da rodovia.
“Em volta da cidade deve ser um dos ares mais impecáveis. Nós não temos uma variação nas nossas videiras, nas nossas oliveiras, nada. Não tem cinza, nada, senão já teria gritado”, diz ele.
Engenheiro de formação, Batalha conta que já conversou com o prefeito Folador a respeito de deixar o carvão no passado e que está implantando a fabricação de pellets de madeira na região, sugerindo a substituição de um pelo outro nas usinas de energia. Os pellets, explica, têm origem em plantações de árvores que levam cerca de sete anos para serem cortadas e renderem madeira. Nesse tempo, defende, as árvores ajudariam com a absorção de gás carbônico.
“O carvão está enterrado, é uma desgraça, é uma coisa nojenta, solta aquela fumaça horrorosa, tanto que foi condenado, isso não podemos mais discutir. Acabou a conversa do carvão. Se vai ser em 2030 ou 2050, vai ser pela necessidade do mundo de fazer energia”, diz ele citando a crise energética na Europa agravada com a Guerra na Ucrânia.
Há ainda uma proposta de criação de um polo carboquímico, encampada pelo vereador e ex-prefeito Marcelo Gregorio (PSDB), da situação, que defende o uso do carvão em forma de gás, para mitigar os efeitos poluentes e podendo ter uso ainda na produção de fertilizantes.
“Com isso traríamos empresas do mundo todo, que poderiam continuar investindo em Candiota”, diz ele. “Seria uma forma moderna de utilização do nosso carvão. Embora eu não concorde que digam que nossas usinas térmicas sejam poluentes”.
Um vídeo feito pelo projeto intitulado “Missão Transição Justa”, com professores da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e outras organizações, mostra conclusões da visita a Candiota em 2021 e aponta sinais de chuva ácida em cercas, um rio sem sinais de vida, além de apontar que o carvão local teria baixo poder calorífico.
“Do ponto de vista das termelétricas, pela combustão do carvão, elas também vão emitir esses metais pesados pelas fumaças. Então, a queima do carvão produz fumaça, essas emissões carregam consigo metais pesados e também enxofre, que pode produzir chuva ácida”, afirma o geólogo e professor do Instituto de Geociências, Rualdo Menegat.
“A fuligem que sai das chaminés da termelétrica acaba também se dispondo nas folhas dos pastos, onde o gado se alimenta. É constatado que o gado da região têm corrosão nos dentes e devem ser abatidos antes do tempo, porque a dentição fica desgastada”.
Trabalhadores sem-terra apostam na agroecologia
Candiota tem ainda um dos assentamentos do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) que se instalaram na região há 30 anos. Parte dos trabalhadores é ligada à uma cooperativa de sementes agroecológicas de hortaliças, grãos e outros, a Bionatur. O projeto envolve mais de 100 hectares, diz João Carlos Camargo, 62.
Ele conta que, durante anos, o discurso que se ouvia ali era de que o carvão poderia render para todos, mas na prática, a exigência de mão-de-obra especializada, acabou mostrando que não era bem assim.
“Essa semana eu estava lá em casa, moro a uns 15 km, eu avisto a cidade de Candiota, daqui a pouco fechou tudo e a densidade da fumaça não permitia que enxergasse, conforme está o vento. Tem horas que olho, tem horas que não”, relata ele.
“Hoje tem muitos questionamentos. Não só nossos (do MST), mas na sociedade, sobre os impactos que causa à saúde, ao meio-ambiente, ao bioma do nosso pampa, e também sobre a arrecadação, para onde estão indo e sendo investidos (os impostos)”.
O prefeito afirma que a arrecadação de impostos pela mineração gira em torno de R$3 milhões por ano, e que o município tem uma folha mensal de cerca de R$2,5 milhões.
Folador contou ainda, diante de um grupo de pessoas que visitava a prefeitura, sobre um projeto para colocar energia solar em todos os prédios públicos em breve. No dia seguinte, quando continuou a conversa com a reportagem, questionado se isso não era contraditório com a defesa do carvão, mas ele discordou.
Emiliano Maldonado, advogado da Renap (Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares) e professor de direito socioambiental do Instituto Federal do Rio Grande do Sul, conta que ações questionando novos empreendimentos no setor do carvão focaram em pontos da legislação estadual que não têm sido considerados por eles, além de pedir análises mais apuradas sobre impactos gerados no meio-ambiente e na saúde das pessoas.
Além da usina Nova Seival, em Candiota, havia discussão sobre a abertura de uma mina na região metropolitana de Porto Alegre, a Guaíba.
“A gente observa, nas posições de setores do poder público e político, principalmente ali da região, que estão ainda na lógica do século 20 e não conseguem perceber que o carvão tem data para acabar. Hoje a tecnologia avançou ao ponto que não precisaríamos mais queimar carvão. Vai haver um momento que essa cadeia produtiva vai ter que fechar, e estão querendo nesses últimos anos explorar o máximo que puderem debaixo dessas terras”, afirma ele.
“O nosso papel como advogados é tentar mostrar que os direitos dessas famílias que vivem em cima dessas terras devem permanecer sobre os interesses das corporações”.
*Fernanda Canofre é formada em Comunicação Social – Jornalismo pela UPF (Universidade de Passo Fundo, RS), mestre em História pela Universidade de Coimbra. Foi repórter do Sul21 e da Folha de S. Paulo.