O que está por trás da desistência temporária da Vale de minerar em terras indígenas

 A Vale acaba de anunciar que irá protocolar na Agência Nacional de Mineração (ANM) a desistência de todos os requerimentos que possui para minerar em terras indígenas na Amazônia.

Até o momento, a Vale possui dezenas de requerimentos ativos, que incidem sobretudo sobre a terra indígena Xikrin do Cateté, no Pará, onde vivem os Xikrin e os Kayapó.

Leia nova matéria sobre o caso: Após anunciar desistência, Vale agora quer minerar no entorno da terra indígena Xikrin no Pará

É na região que está a Mina de Onça Puma, de níquel, alvo de um processo judicial e de um acordo feito pela Vale com os indígenas, que vence em novembro de 2021.

O acordo prevê a remediação definitiva da poluição causada pela Vale nos rios da região. O Ministério Público Federal, mediador do acordo, diz que “as tratativas estão em andamento” e “propostas estão em discussão”. Em caso de não chegarem a uma solução final, a execução judicial pode ocorrer.

A Vale, no entanto, nega oficialmente que tenha contaminado os rios e coloca em xeque o laudo de pesquisadores. O caso se arrasta há anos. O níquel é considerado “essencial” para a “transição verde” da matriz energética mundial.

Outras terras indígenas que estavam na mira da Vale na ANM incluem as TI’s Munduruku e Kayabi, também no Pará.

A desistência da Vale dos requerimentos sobre terras indígenas, que vinha acontecendo gradualmente nos últimos meses, ainda precisa ser oficializada no sistema da ANM. O movimento, porém, indica uma estratégia clara da mineradora brasileira, entre as 5 maiores do mundo e que registrou R$ 70 bilhões de lucro líquido no primeiro semestre de 2021.

Em inglês: Vale statement of giving up prospect on indigenous land in the Amazon is part of a broad strategy: we show what is behind

Apostando forte na agenda corporativa “ESG”, uma governança socioambiental teoricamente responsável, a Vale indica para os investidores internacionais que está tentando abrir mão de pontos “polêmicos” em sua atuação no Brasil, em especial na Amazônia e sobre os povos indígenas, que sempre são alvo de maior escrutínio internacional.

A Vale, de fato, não precisa arcar com o “ônus” de manter esses requerimentos porque, como o seu lucro recorde demonstra, a mineradora vai muito bem, obrigado. Apesar das oscilações do mercado de minério de ferro.

Também não parece inteligente se aliar de forma tão direta ao governo de Jair Bolsonaro, um pária internacional, motivo de chacota – como o seu discurso mentiroso na ONU comprovou pela milésima vez – e que é autor do PL 191/2020, que quer liberar mineração e agronegócio em terras indígenas.

Oficialmente, a mineradora diz que “entende que a mineração em Terras Indígenas só poderá ocorrer mediante o Consentimento Livre, Prévio e Informado dos próprios indígenas, e à luz de marco regulatório que contemple a participação e a autonomia dos povos indígenas. (…) O novo projeto de Lei 191/2020, se aprovado, não impactará seus negócios”.

E nem poderia impactar, já que atualmente é ilegal minerar em terras indígenas. Mas o discurso deixa claro que, uma vez que o PL for aprovado e a autorização acontecer, nada impede que, no futuro, caso a Vale deseje, a mineradora pode voltar a tentar minerar sobre áreas indígenas. Muitas dessas áreas, aliás, estão ao redor dos seus empreendimentos.

No Canadá, por exemplo, a Vale opera em terras indígenas, na mina de Voisey’s Bay. O modelo de mineração em áreas indígenas canadense é tido como “exemplo” pelo governo brasileiro. Mesmo com inúmeros conflitos causados por mineradoras contra indígenas em curso no Canadá, incluindo o desrespeito à consulta prévia, livre e informada.

O Observatório da Mineração foi o primeiro veículo de mídia a revelar a extensão dos requerimentos da Vale sobre terras indígenas, em novembro de 2019. Após a nossa matéria, seguiram-se reportagens em outros veículos e a cobrança pública de acionistas críticos em reunião da Vale sobre esses requerimentos.

Esse movimento não acontece por acaso e está ligado a uma estratégia maior da Vale.

Foto destaque: protesto de indígenas Xikrin contra a Vale no Pará. Crédito: Inhobikwa

Pressão de investidores internacionais é decisiva

A Vale tenta de todas as formas se livrar de projetos “problemáticos” e limpar a sua imagem no mundo. Em Moçambique, por exemplo, onde detém uma das maiores minas de carvão do planeta, a Vale anunciou que iniciou o processo para se desfazer do negócio.

Isso ocorre tanto pelo papel de vilão que o carvão tem na crise climática mundial – e a China, principal cliente do minério de ferro da Vale, acaba de anunciar que não investirá mais em carvão no exterior – quanto pelo fato de que o negócio de carvão em Moçambique não deu o retorno financeiro que a Vale esperava.

Foi lá que uma criança morreu, outra teve uma perna amputada e outras três ficaram gravemente feridas em um acidente com mina terrestre dentro da área de assentamento feito pela Vale  no fim de 2020.

A mina de Moatize, diga-se, exigiu esforços de lobby da Vale durante décadas, uma aproximação fundamental com o governo brasileiro e o moçambicano, a criação de um corredor logístico (ferrovias, portos, aeroportos) imenso, que arrastou outras empresas brasileiras – como a Odebrecht – para lá. Não se trata de um negócio qualquer.

O motivo para tudo isso é simples: dinheiro.

Em maio de 2020 a Vale já perdeu os US$ 650 milhões de dólares que tinha de investimento do Fundo Soberano da Noruega. O motivo alegado pelo Fundo foram os rompimentos em Mariana e Brumadinho.

Esse fundo, controlado pelo Norges Bank, concentra as receitas da Noruega com a produção de petróleo e gás. Ele está entre os maiores investidores do mundo, possuindo cerca de 1,5% de todas as ações listadas globalmente em mais de 9,2 mil empresas de 74 países. Administra mais de US$ 1 trilhão de dólares.

A Noruega é a principal financiadora do Fundo Amazônia, que suportava projetos importantes até ser congelado pela ingerência do ex-ministro Ricardo Salles, acusado de traficar madeira para os Estados Unidos.

Mais que o dinheiro retirado da Vale, já significativo, o poder de influência e o potencial efeito cascata causado pelo Fundo Soberano da Noruega sobre outros investidores é imenso.

Ontem, junto com o anúncio velado de desistência dos requerimentos em terras indígenas, a Vale anunciou a criação de uma “Vice-Presidência Executiva de Estratégia e Transformação de Negócios”, responsável por liderar iniciativas para “posicionar a Vale para o futuro”.

Entre os objetivos, está tornar a Vale “líder em mineração de baixo carbono”. Para comandar essa área não foi escolhido um executivo aleatório, mas Luciano Siani Pires, que desde 2012 ocupava a posição de Vice-Presidente Executivo de Finanças e Relações com Investidores. Luciano Siani, que lidava diretamente com os investidores, é um dos principais executivos da Vale.

Conflito com os Xikrin está longe de solução final. Níquel da Vale é exportado para a Europa.

Não é nova a tentativa da Vale de se esquivar da responsabilidade pela contaminação causada no rio Cateté, onde vivem os Xikrin, na terra indígena que permanecia como o principal alvo dos seus requerimentos.

Desde que a Vale começou a operar essa mina de níquel ao lado do Rio Cateté, há cerca de dez anos, a água do rio e os seus peixes foram contaminados por metais pesados. Hoje, atividades cotidianas dos indígenas como a pesca, o transporte, o plantio e até os seus banhos já não podem ocorrer da mesma forma.

“Crianças faleceram, pessoas estão com doenças de pele devido ao rejeito de minério. Áreas de floresta foram sendo desmatadas sem o consentimento das comunidades indígenas (…) a Vale simplesmente passou e acabou, tirando sem autorização nenhuma. Nós, indígenas, tentamos de todas as formas criar um diálogo amigável com a Vale, mas a Vale sempre se posiciona contra as nossas demandas, não atendendo às nossas reivindicações, recorrendo na Justiça contra as nossas ações judiciais”, relatou o jovem líder indígena Yan Xikrin para o relatório “Cumplicidade na Destruição” de 2020.

Parte da produção de níquel que afeta a vida dos Xikrin tem a Europa como destino, como mostrou a Repórter Brasil em 2021. A empresa finlandesa Outokumpu comprou diversas vezes o produto produzido pela Vale desde 2016. A Outokumpu tem como seu maior acionista o governo finlandês, que controla atualmente 20,29 % das ações da empresa.

A poluição do rio tem sido constatada em uma série de estudos realizados desde 2015 pelo Grupo de Tratamento de Minérios Energia e Meio Ambiente (GTEMA) da Universidade Federal do Pará (UFPA).  No estudo realizado em fevereiro de 2020, eles afirmam que “100% dos indivíduos estão com seus organismos contaminados com pelo menos um metal pesado, em grau alarmante. Destaca-se o excesso de chumbo, mercúrio, manganês, alumínio e ferro, os quais em alguns indivíduos, estão em níveis assustadores.”

De acordo com os pesquisadores, “não se tem mais dúvidas quanto a responsabilidade do empreendimento Onça Puma na contribuição para a contaminação do Rio Cateté.” Os pesquisadores afirmam “que se não houver providências, estaremos vendo o fim da etnia Xikrin”.

A Vale afirma que “a Bacia Hidrográfica do Itacaiúnas, que abriga o rio Cateté, seus igarapés e contribuidores, encontra-se numa região geológica com presença natural de metais, como ferro, níquel, cobre, entre outros, e sendo assim, tais metais são inerentes a caracterização do solo da região, ocorrendo em volumes naturalmente superiores aos previstos nos parâmetros da legislação. Informação registrada e confirmada no Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e Relatório de Impactos Ambientais (RIMA), elaborados em 2004 e subsidiaram o licenciamento do empreendimento”.

Ainda de acordo com a mineradora, “as alegações de contaminação do rio Cateté, assim como problemas de saúde ocasionados por impactos decorrentes da operação das Minas de Onça Puma são infundadas, como comprovado nos laudos periciais apresentados ao juízo da VCF-Redenção. A Vale permanece aderente ao seu compromisso de garantir uma gestão eficiente dos sistemas de controle ambientais da operação de Onça Puma, bem como está imbuída no propósito de fortalecer seu relacionamento com o Povo Xikrin do Cateté”.

Procurada para comentar os detalhes sobre o pedido de desistência dos requerimentos na ANM, a Vale não retornou até a publicação deste texto. Caso o faça, a matéria será atualizada.

Update: em resposta enviada no fim do dia de 22 de setembro, a Vale afirma que:

“A Vale anuncia a desistência de todos os seus processos minerários em Terras Indígenas no Brasil, o que inclui requerimentos de pesquisa e lavra.  A mineradora, que não desenvolve quaisquer atividades de pesquisa mineral ou lavra em Terras Indígenas (TIs) no Brasil, ressalta que a decisão se baseia no entendimento de que a mineração em TIs só pode se realizar mediante o Consentimento Livre, Prévio e Informado (CLPI) dos próprios indígenas e uma legislação que permita e regule adequadamente a atividade. O reconhecimento ao CLPI é fundamental para atender aos direitos das populações indígenas de determinar o próprio desenvolvimento e o direito de exercer a autodeterminação diante de decisões que dizem respeito aos seus territórios. Desta forma, a proteção aos indivíduos, suas culturas e modos de vida, assim como a proteção às terras indígenas tradicionais e o auto-governo indígena, dentro do modelo político dos Estados soberanos, são proteções de direitos humanos.

Entre 2020 e 2021, a Vale abriu mão de 89 processos minerários interferentes com Terras Indígenas no Brasil, junto à Agência Nacional de Mineração (ANM). Nos próximos dias, estaremos protocolando desistências e renúncias para o grupo de processos minerários restantes, 15, estes interferentes com parte da Terra Indígena Xikin do Cateté.  A empresa agora está tomando os procedimentos necessários junto à Agência Nacional de Mineração.

Sobre a última questão (sobre os Xikrin do Cateté), a Vale está cumprindo fielmente todos os compromissos firmados no Acordo Transitório e vem dialogando com os indígenas e o MPF, através de reuniões periódicas com observância de todos os protocolos da COVID-19, para a celebração de um acordo que possa extinguir as ações judiciais, visando contribuir com o etno-desenvolvimento dos indígenas e adoção de ações para a qualidade do meio ambiente.

Em relação à suposta contaminação do Rio Cateté, a Vale esclarece que o empreendimento Onça Puma, localizado aproximadamente a 33km de distância da Terra Indígena (TI) Kayapó, e fora dos limites da TI Xikrin, está licenciado pelos órgãos competentes e retomou suas atividades regulares a partir da decisão do Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), em setembro de 2019, ratificada pelo Pleno do Tribunal. A decisão foi baseada em sete laudos elaborados por peritos judiciais especializados em diversas áreas científicas, com destaque para os de limnologia, geologia e metalurgia, os quais demonstraram cabalmente a inexistência de relação entre as atividades da empresa e a suposta contaminação do Rio Cateté”. 

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