Com 99,9% das urnas apuradas, Pedro Castillo está eleito presidente do Peru. Em uma disputa acirradíssima, o professor sindicalista de esquerda registra uma diferença de 72 mil votos para Keiko Fujimori, filha do ex-ditador Alberto Fujimori.
Keiko, na tradição do seu pai e da extrema-direita, está questionando os resultados e acusando a apuração de fraude sem ter nenhuma prova. A manobra, esperada, já foi rechaçada por todos os órgãos sérios do Peru.
É algo parecido com o que Jair Bolsonaro faz no Brasil – pasmem – mesmo tendo sido eleito, mesmo com 30 anos de eleições favoráveis nas costas e mesmo com 3 filhos inseridos na política para montar o esquema que permitiu o enriquecimento ilícito da família Bolsonaro.
Enquanto espiamos um golpe previsível no Brasil de 2022, logo ali, e toleramos um genocida, ecocida e miliciano no poder, Pedro Castillo assume o Peru não só contra todas as forças de sempre, mas sobretudo contra as grandes mineradoras do Peru e multinacionais que veem seus interesses em risco.
A gestão de Castillo tem o potencial de reverberar em toda a América Latina.
Não surpreende que a mídia corporativa do Brasil e os ultraliberais de sempre – disfarçados de “progressistas” ou não – tentem vender a ideia de que Castillo é um “radical perigosíssimo” que “atenta contra a democracia”, um “extremista igualzinho a Keiko” e que os peruanos estavam diante de, “esta sim uma escolha difícil”.
Keiko Fujimori disputou a terceira eleição com várias acusações de corrupção nas costas. Sempre atuou para destruir a democracia peruana e é filha de um ditador condenado por violações em série de direitos humanos, que ordenou massacres, esterilizou forçadamente centenas de milhares de mulheres indígenas, roubou uma enormidade, comprou a mídia peruana – veja a ficha resumida dele aqui – e, claro, era amigo íntimo das mineradoras que atuam no país.
Nada disso, fatos comprovados e acumulados, parece ser grave o suficiente para uma abordagem crítica da mídia corporativa brasileira, de “analistas” sob encomenda e dos suspeitos conhecidos.
As mineradoras lucraram muito no governo Fujimori, tiveram os seus interesses sempre atendidos e contaram com a benevolência do governo peruano. Na eleição de 2021, não por acaso as ações de grandes mineradoras reagiam bem sempre que Keiko Fujimori se aproximava de Castillo nas pesquisas.
O “medo” de Castillo é real. Mas as empresas confiam “na divisão do país” como uma espécie de “seguro” contra o que está por vir.
Expansão da Minsur, grupo que explora estanho no Amazonas, deve ser afetada
Quem acompanha o Observatório da Mineração já sabe que o grupo peruano Minsur, que é controlado pelo banco canadense Scotiabank, é responsável pela contaminação de rios na terra indígena Waimiri-Atroari e é dono da mineradora Taboca.
A Taboca é a maior produtora de estanho do Brasil e uma das maiores do mundo. A história dessa mineradora no Amazonas e as violações de direitos humanos que acumula está intimamente ligada à ditadura militar. Esse “espólio” hoje é controlado pelo capital internacional, sempre muito confortável em participar desses jogos de poder.
A Minsur, que é uma das maiores mineradoras do Peru, prepara uma expansão para triplicar a sua produção de cobre e fez empréstimos internacionais para bancar isso. Castillo “atrapalha os planos”.
O mercado avalia como essencial o novo projeto de cobre da Minsur, que passará a ocupar destaque no portfólio da empresa, superando o estanho. O “baixíssimo custo” de suas operações no Peru é celebrado pelos agentes financeiros.
Mas os interesses da Minsur não são os únicos que o novo presidente peruano pode atravessar.
Vejamos o que há de realmente “radical” no programa do partido de Pedro Castillo, Peru Livre, que visão eles têm da economia e do setor extrativo e como isso pode afetar o Peru, o Brasil e toda a América Latina.
Multinacionais na berlinda
O Peru é o segundo maior produtor de cobre do mundo (atrás do Chile) e produz também quantidades significativas de ouro, prata, estanho e zinco.
As mineradoras gozam de inúmeros privilégios fiscais e tributários no país e fizeram a festa durante o governo de Alberto Fujimori.
Gigantes como Anglo American, Nexa Resources e Glencore, que tem inúmeros projetos no Brasil – incluindo extrações de minério de ferro e zinco em Minas Gerais, chumbo, cobre e zinco no Mato Grosso, diversos metais no Rio Grande do Sul, contratos mundiais de longo prazo e interesse em terras indígenas, atuam fortemente no Peru.
A Anglo American está investindo $5,3 bilhões de dólares em uma nova mina de cobre (Quellaveco) no Peru. O receio geral de mais impostos, uma “nacionalização” do setor e outras mudanças que “desfavoreçam” os negócios das mineradoras é real.
O fato é que Castillo definitivamente deve mudar as regras do jogo. Nas urnas, as eleições mostraram que os moradores de regiões mineradoras votaram em massa a favor de Castillo, com resultados que vão de 67% a incríveis 94% dos votos.
As condições que os trabalhadores da mineração enfrentam no Peru sempre foram precárias. Entre 2006 e julho de 2020, 683 trabalhadores morreram durante atividades para grandes e médias mineradoras no Peru, mostra excelente investigação do site Convoca. Como no Brasil, a maior parte deles são terceirizados. Grandes multinacionais estão diretamente envolvidas.
Mais: 64% dos conflitos socioambientais registrados no Peru nos últimos meses tem a ver com a mineração. É um problema histórico, crônico e que está longe de acabar.
Mas Castillo faz algumas promessas.
O programa do partido Peru Livre deixa claro que pretendem: renegociar contratos, rever impostos e benefícios fiscais, privilegiar o estado e não empresas multinacionais e estatizar, caso necessário, setores como a mineração.
Mas essa “estatização” aconteceria somente em último caso, se as empresas não aceitarem as novas condições econômicas e mesmo assim com indenizações previstas, privilegiando a nacionalização. Algo bem mais brando do que anda sendo vendido por quem certamente não leu o programa ou tem outros interesses.
Uma revisão da Constituição imposta pelo ditador Alberto Fujimori, considerada “individualista, mercantilista, privatista e entreguista”, também está nos planos.
Extenso, o programa está cheio de promessas ambiciosas e alguns chavões da esquerda. Na mineração, prometem inverter o domínio privado para o estatal, com um extrativismo “sustentável e responsável”.
Como seria isso, no entanto, não está claro. Longe de abandonar a mineração, Pedro Castillo promete explorar “com responsabilidade”, a favor do estado e do povo peruano, as riquezas minerais do Peru.
A experiência mundial diz que estas duas palavras – sustentável e responsável – não conseguem andar juntas com a mineração. Não se provou sequer que isto é possível.
Na visão do partido, “o Estado deve estimular a geração de riqueza, desde que não leve à exploração, ao tráfico de pessoas, à redução dos direitos trabalhistas, à poluição ambiental, à sonegação de impostos, à violação dos direitos fundamentais, à situação de neocolônia, à insegurança cidadã, à corrupção, contratos lesivos ao Estado, danos aos valores e princípios sociais, entre outros. A esquerda socialista não renuncia à riqueza, mas deve ser social, não individual ou grupal”, afirmam.
Parece claramente melhor que qualquer coisa vinda da extrema-direita de Fujimori ou não.
Segundo o programa, “o Estado não deve apenas combater o monopólio privado, mas deve proibi-lo estritamente. Não deve haver espaço para coordenação de preços, entesouramento e especulação econômica. As empresas privadas podem competir livremente entre si e com o setor público. A exclusividade da gestão de alguns recursos estratégicos só pode ser reservada ao Estado peruano para salvaguardar os interesses nacionais em matéria de economia, soberania, segurança, energia, alimentação e outras que o mereçam”.
Como colocarão isso em prática (e se conseguirão, de que maneira, a que preço), contudo, só o tempo dirá. E como isso afetará os projetos de exploração de grandes mineradoras?
Se, em função da nova política peruana, gigantes como Anglo American, Minsur, Nexa e Glencore resolverem intensificar os projetos no Brasil, fazer mais pressão pela aprovação de mineração em terras indígenas, querer garantir mais rapidamente que áreas sejam abertas no Brasil e por aí afora?
São possibilidades bem concretas baseadas no histórico recente.
E como isso afetará também outros países, como Chile, Bolívia e Argentina, que compartilham diversas empresas em comum? Uma vitória dessa magnitude em um país que tem a mineração no centro da economia e do poder, como o Peru, pode causar diversas consequencias.
Para o Peru, para o Brasil e para toda a América Latina, em especial o Mercosul (membros e associados), a eleição de Pedro Castillo sem dúvida terá impactos em série que não podem ser ignorados, mas acompanhados de perto.