Vale e BHP querem reembolsar R$ 24 bilhões do que pagaram após o desastre de Mariana

Em julho de 2020 eu revelei aqui no Observatório da Mineração que documentos indicavam que Vale e BHP estavam usando a Samarco para reembolsar parte dos bilhões de reais que se comprometeram a pagar como reparação pelo rompimento da barragem em Mariana, em novembro de 2015, o pior desastre ambiental do Brasil.

A Fundação Renova, criada para conduzir as ações de reparação a partir de um acordo (chamado TTAC) entre as mineradoras e os governos da União, de Minas Gerais e do Espírito Santo, seria o meio usado para isso, mostrei.

Há indícios, escrevi, de que as doações da Vale e da BHP à Renova estão sendo registradas como dívida contraída pela Samarco, que se compromete a devolver o dinheiro às suas controladoras.

Em abril de 2021, registrando uma dívida de R$ 50 bilhões, a Samarco pediu recuperação judicial. Segundo a mineradora, os aportes na Renova e a reparação socioambiental não seriam afetados, sem explicar como.

Um grupo de credores da Samarco, investigando os documentos do processo de recuperação judicial, descobriu que essas manobras de Vale e BHP podem representar um compromisso de reembolso pela Samarco de R$ 24 bilhões. Isto está sendo questionado na 2ª Vara Empresarial de Belo Horizonte (MG).

Ou seja: duas das maiores mineradoras do mundo, a brasileira Vale e a anglo-australiana BHP, estão agindo para reembolsar dezenas de bilhões de reais que deveriam pagar para reparar o que é considerado o maior desastre ambiental do Brasil.

Com isso, metade da dívida da Samarco seria na verdade devido para Vale e BHP considerando os aportes feitos na Fundação Renova. Nessa posição, além de receber de volta o dinheiro, Vale e BHP aparecem como credores privilegiados e posição de destaque na recuperação judicial da Samarco.

In english: Vale and BHP: reimbursement of R$ 24 billion involving Samarco and the Mariana disaster is challenged in court

O grupo de credores questionam também um novo empréstimo de R$ 1,2 bilhão – chamado de “Empréstimo DIP” – que a Samarco tenta obter com Vale e BHP, que dividem o controle da mineradora com 50% cada. De acordo com os credores, esse empréstimo não obedeceu a um processo justo e Vale e BHP foram as únicas a oferecer o montante.

Procurada, a mineradora brasileira disse que “a Vale, como acionista, reforça seu compromisso com a sustentabilidade da Samarco para manter a continuidade de suas operações, gerando emprego e renda. Somente dessa forma, a Samarco poderá manter seus compromissos com a reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, conforme acordado no TTAC – compromisso celebrado com as autoridades competentes”.

Segundo a Vale, “nos últimos cinco anos, a Vale e a BHP, como acionistas, apoiaram a Samarco com US$ 4,1 bilhões para manutenção da companhia, permitindo a retomada de suas operações e visando possibilitar que a Samarco cumprisse as suas obrigações”.  

Sobre os valores, a BHP confirmou os aportes, em nota. “Juntas, BHP e a Vale fizeram aportes na Samarco de aproximadamente R$ 24 bilhões nos últimos 5 anos para permitir que a empresa sobreviva, reinicie suas operações e financie a remediação e compensação executadas pela Fundação Renova. O financiamento foi concedido em termos semelhantes aos de outras dívidas pré-rompimento da Samarco, apesar de concedido em circunstâncias diferentes”. A diferença entre os valores informados – em dólares e em reais, que não se explicam somente pelo câmbio – não foi esclarecida.

A Samarco disse que “com relação às obrigações não sujeitas à Recuperação Judicial, incluindo os compromissos com os acordos de reparação, a Samarco reafirma a sua responsabilidade, cabendo a ela os pagamentos daí decorrentes”. Leia a íntegra das respostas recebidas.

A assessoria da Renova, por telefone, disse que a Fundação não iria comentar.

Foto de destaque: Isis Medeiros

Credores acusam mineradoras de “golpe final”

O grupo de credores que está questionando as manobras de Vale e BHP reúne fundos de investimentos e instituições como York, Ashmore, Canyon, Bank of America, Maple Rock, Solus, HSBC, BNY Mellon, Citigroup, Fundos CVC e Fundos BR que representam cerca de R$ 21 bilhões da dívida da Samarco. É 80% da dívida da Samarco, descontado os R$ 24 bilhões para Vale e BHP.

Em uma petição de 15 de junho dos escritórios Padis Mattar, FCDG e Resende Ribeiro & Reis, que representam este grupo de credores, enviada ao juiz Adilon Cláver de Resende e intitulada “O Golpe Final da Vale e BHP”, são feitas 91 alegações detalhadas.

Entre elas, os credores afirmam que a Vale e a BHP têm a obrigação de pagar, direta e integralmente à Renova todos os valores relativos às Obrigações Socioambientais com o direito de cobrar da Samarco, dentro da recuperação judicial, apenas um terço do valor de fato desembolsado a esse título.

Na visão dos credores, baseados em demonstrações financeiras e documentos obtidos na Junta Comercial de MG, “Vale e BHP se utilizam da Samarco para fazer os Aportes devidos à Renova, pelas quais são objetiva e solidariamente responsáveis, como se assumir tal responsabilidade fosse uma prerrogativa e não decorrência legal e constitucional”.

Por essas manobras, a Samarco deveria R$ 11.9 bilhões para a Vale e R$ 11.8 bilhões para a BHP.

No período compreendido entre 2016 e 2021, afirma a petição, Vale e BHP celebraram 92 contratos com a Samarco. Os primeiros datados de 27 de outubro de 2016 –– sete meses após a assinatura do TTAC –– e os últimos, de 15 de março de 2021, menos de um mês antes da recuperação judicial.

Os pedidos finais dos credores para o juiz da 2ª Vara Comercial de BH incluem a rejeição integral do novo empréstimo de R$ 1,2 bilhão e a proibição da Samarco “realizar qualquer pagamento à Renova, em razão da manifesta concursalidade do crédito devido a título de Obrigações Socioambientais”.

Sobre os credores mencionados, Vale e BHP disseram que eles são “em sua grande maioria, fundos que compraram a dívida da Samarco após o rompimento da barragem de Fundão e não contribuíram com nenhum financiamento ou recursos para a recuperação da empresa”.

A Samarco disse que o novo empréstimo pedido de R$ 1,2 bi, “DIP Financing”, “é um mecanismo de financiamento legal muito utilizado por empresas em processo de recuperação judicial”.

Sobre os credores que detém R$ 21 bilhões da sua dívida, a Samarco afirmou que “o que os credores propõem vai exatamente na contramão dos compromissos da Samarco com a reparação dos danos, da sua recuperação econômico-financeira e da manutenção da sua função social”.

No UOL: Credores da Samarco acusam Vale e BHP de manobras para receber R$ 24 bi

Jogo de empurra

Em 2020, a partir da reportagem feita por mim e de uma denúncia anônima recebida, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) passou a investigar essas manobras financeiras e solicitou que Ministério Público Federal (MPF), Receita Federal e Comissão de Valores Mobiliários (CVM) investigassem o que é da responsabilidade de cada um.

Em fevereiro de 2021, o MPMG pediu a extinção da Fundação Renova e uma multa de R$ 10 bilhões em danos morais. Procurado para dizer o que fez especificamente sobre as manobras financeiras, o MPMG disse que remeteu as informações fiscais da Renova envolvendo Samarco, Vale e BHP para o MPF.

Em nota, o MPF afirmou que “o ofício do MPMG foi encaminhado para o núcleo criminal e, posteriormente, a Notícia de Fato foi arquivada por “justa causa para o oferecimento da ação penal pública e/ou instauração do apuratório em virtude da inexistência de lastro probatório necessário no âmbito federal”.

Traduzindo: o MPF alega que não pode fazer nada porque depende de uma investigação prévia da Receita Federal.

“Ressalta-se que, visando a completa apuração dos fatos, ambos os órgãos, Receita Federal do Brasil e Comissão de Valores Mobiliários, foram oficiados para que apurem os fatos e informem sobre possíveis irregularidades que ensejem a prática de crimes”, completou o MPF.

Por sua vez, a assessoria da Receita Federal afirmou à reportagem que “a Receita não comenta, por força do Sigilo Fiscal, situações específicas, existindo ou não procedimentos fiscais”. A CVM disse que “acompanha e analisa as informações envolvendo as companhias abertas, tomando as medidas cabíveis, quando necessário”, mas que “não comenta casos específicos”.

Na prática, com exceção da Receita e da CVM, que mantém sigilo, nada aparentemente foi feito. O processo de extinção da Fundação Renova está pendente de uma decisão sobre a competência estadual ou federal levantado pela AGU, agora nas mãos do STJ.

Neste contexto, está em xeque também o sistema de indenização simplificado criado pelo juiz da 12ª Vara Federal de BH, Mário de Paula Franco Júnior. A Renova já pagou mais de R$ 1,2 bilhão em indenizações por esse sistema, que exige que o atingido abra mão de diversos direitos.

Advogados já lucraram R$ 120 milhões de reais, porque recebem 10% de cada ação. Muitos, no entanto, tem feito acordos por fora, cobrando até 30% de cada indenização. O sistema, que não respeita o acordo feito com Ministérios Públicos e Defensorias e todo o histórico de debate nos territórios, levou ao pedido de suspeição do juiz substituto Mário de Paula Franco Júnior, após matérias publicadas aqui no Observatório.

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