Sistema indenizatório adotado por Renova/Samarco/Vale/BHP no desastre de Mariana “padece de nulidades absolutas”, decide justiça

O novo juiz responsável pelo desastre de Mariana na esfera federal acaba de publicar uma decisão histórica sobre o sistema de indenização simplificado criado no meio da pandemia, fortemente questionado nos últimos anos e que foi adotado imediatamente pela Fundação Renova e as mineradoras Samarco, Vale e BHP.

Para o juiz Vinicius Cobucci, o Novel, que distribuiu bilhões na bacia do Rio Doce, “apresenta sinais claros de esgotamento e padece de nulidades absolutas”.

O novo juiz do Caso Samarco, em entendimento completamente divergente dos juízes anteriores, determinou o fechamento do ingresso de novos participantes no Novel a partir de 29 de setembro, o fim do caráter judicial do sistema, reafirmou a ilegitimidade das Comissões de Atingidos criadas para coletar indenizações de pessoas muitas vezes pouco informadas sobre a situação e destituiu a consultoria americana Kearney da função de perita judicial.

Os problemas reconhecidos por Cobucci foram denunciados sistematicamente pelo Observatório da Mineração desde março de 2021 em matérias investigativas exclusivas que, com vídeos inéditos, colocaram em xeque a imparcialidade do ex-juiz do caso, Mario de Paula Franco Júnior.

As matérias do Observatório revelaram que Franco Júnior, que chegou a se considerar “o juiz Moro da área cível”, orientou advogados do Espírito Santo sobre como deveriam proceder para conseguir um novo sistema de indenização para o rompimento da barragem de Mariana, o que acabou se tornando o “Novel”.

O artigo 145 do Código de Processo Civil, inciso II, diz que há suspeição do juiz que “aconselhar alguma das partes acerca do objeto da causa”.

O sistema simplificado, criado pelo juiz com anuência da Vale e Fundação Renovase espalhou pela bacia do Rio Doce rapidamente desde agosto de 2020. A obrigatoriedade de pagar 10% para advogados que entram com os pedidos gerou uma indústria de enriquecimento de pequenos advogados em cidades, na sua maioria, pequenas e pobres.

Ao assinar o pedido, a pessoa atingida perde todos os seus direitos e recebe um valor definido aleatoriamente, além de arcar com os custos dos advogados. As matérias do Observatório serviram para embasar um pedido de suspeição do juiz Mário de Paula feito por Ministérios Públicos e Defensorias envolvidas no caso. Centenas de juristas e instituições também pediram o afastamento do juiz na época.

Mário de Paula acabou mantido no cargo e posteriormente foi realocado para atuar em outra vara federal. Em junho de 2022, duas decisões do TRF 1 já afirmaram a procedência das denúncias sobre o Novel e significaram derrotas significativas para as mineradoras e a Fundação Renova.

No marco de sete anos após o rompimento da barragem do Fundão, que ocorreu em 05 de novembro de 2015, considerado o pior desastre ambiental da história do Brasil e responsabilidade das mineradoras Samarco, Vale e BHP, matéria do Observatório da Mineração revelou que o processo ainda está no início e nenhum dos réus foi punido criminalmente. A ação penal praticamente não andou, com pouquíssimas testemunhas ouvidas e 15 réus já foram considerados inocentes. Os crimes ambientais podem prescrever totalmente em 2024. O desastre completará 8 anos em novembro.

Em fevereiro, publiquei uma entrevista exclusiva com o procurador federal Carlos Bruno Ferreira, coordenador da Força-Tarefa do Ministério Público Federal responsável pelo Caso Samarco.

A Fundação Renova, entidade mantida pelas mineradoras Vale, BHP e Samarco, alega que irá aportar, até o fim de 2023, R$ 36 bilhões para as indenizações de pessoas atingidas e a reparação socioambiental do rompimento da barragem de Mariana, incluindo o Novel, que pagou mais de R$ 9 bilhões até o fim de 2022.

De acordo com o MPF, porém, os valores declarados pela Renova nunca passaram por uma auditoria externa séria e independente, não há qualquer comprovação de que esses valores correspondam à realidade e, na prática, isso não pode ser observado na bacia do Rio Doce e pelos relatos dos atingidos. O MPF também pediu a nulidade do “Novel”.

Foto de destaque: Rebeca Binda

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Fotos: Rebeca Binda

“Ausência de amparo legal”

O juiz Vinicius Cobucci não poupa críticas ao sistema criado pelo seu antecessor e adotado imediatamente pela Renova e mineradoras, que facilitaram os trâmites criando um Portal do Advogado com todas as informações e pressionaram atingidos na bacia do Rio Doce a aderir ao Novel.

Cobucci ressalta que as críticas que faz “são realizadas sob um ponto de vista estritamente técnico, de acordo com o direito processual vigente” e que ele tem a “plena convicção de que a atual sistemática adotada não atende plenamente às normas do Direito Processual Civil”.

O Novel chegou a ser celebrado pelo TRF1, que, em notícia (agora removida do site), afirmou que o juiz da época, Mário de Paula Franco Júnior, resolveu aplicar ao caso Samarco o conceito de “Rough Justice”, importado do direito norte-americano, que foi utilizado “de forma inédita no Brasil” através da matriz indenizatória simplificada, que “prioriza a efetividade do sistema de justiça”.

Cobucci vai em sentido oposto e afirma que discorda “de qualquer abordagem utilitarista no âmbito do processo civil, pois a legislação deve ser observada para que os atos sejam praticados com a devida segurança jurídica e previsibilidade, com observância do devido processo legal.”

Segundo o atual responsável pelo Caso Samarco, “o sistema se encontra em esgotamento, com ausência de regras claras, justamente pela ausência de amparo legal”.

Em clara avaliação distinta da celebração que até então foi feita sobre o Novel e sua inspiração no direito dos Estados Unidos, Cobucci afirma que “por maiores que sejam as consequências do desastre, tanto a justiça quanto a legislação processual brasileira dispõem de métodos adequados para a solução dos inúmeros conflitos daí decorrentes”

Procurada para comentar a decisão do juiz Vinicius Cobucci, a Fundação Renova informou que “não foi intimada sobre a decisão.”

A decisão também deve impactar o processo de renegociação por um novo grande acordo pelo desastre de Mariana que está sendo analisado pelo governo Lula com valores superiores a R$ 100 bilhões e “95% concluído”, segundo Carlos Bruno.

Cobucci reafirma, nas conclusões e deliberações, a “nulidade absoluta” e ausência de legitimidade das “Comissões de Atingidos” – que colecionaram desmandos, incluindo falsificação de assinaturas e foram criadas às pressas por uma indústria de advogados que enriqueceram facilmente na bacia do Rio Doce.

A decisão, diz Cobucci, pode não ser “bem-recebida” pelos advogados, mas que o sistema está “esgotado” e “não permite a devida cognição judicial de acordo com o direito processual positivo”, além de apresentar “uma série de inconvenientes”.

Na avaliação de Cobucci, “passados quase oito anos desde o rompimento da barragem, há muito trabalho a ser feito”.

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