Minerais estratégicos para a transição energética viram argumento para tentar aprovar mineração em terras indígenas

Além de uma série de medidas para tentar reduzir os direitos dos povos indígenas dentro do debate pautado pelo agronegócio e pela mineração sobre o Marco Temporal, a minuta apresentada na última sexta-feira (14) pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, usa como justificativa para permitir a mineração em terras indígenas o argumento de “relevante interesse público” e retira a necessidade de anuência prévia das comunidades indígenas em todos os casos.

Segundo a proposta, o uso das áreas demarcadas ou ainda em processo de demarcação podem, entre outros interesses da União, servir para a “exploração de recursos minerais estratégicos”. Esta ampla lista de minerais foi definida por decreto e resolução de 2021 e inclui desde o minério de ferro, principal produto da indústria mineral brasileira até substâncias como cobre, nióbio, níquel, terras raras e outros, usados massivamente em energias renováveis e carros elétricos.

Ou seja, é o argumento da transição energética que está sendo usado como principal vetor do “interesse público” que poderia abrir as terras indígenas para a mineração industrial, pauta que desde os anos 90 corre no Congresso em diferentes projetos de lei, sendo o último o PL 191/2020, de autoria de Jair Bolsonaro, Bento Albuquerque e Sérgio Moro, engavetado definitivamente apenas em 2023 após manifestações indígenas e a derrota do projeto de extrema-direita nas eleições.

O encaminhamento da mesa de negociação traz de volta os mesmos argumentos usados pelo governo Bolsonaro com a criação da Política Pró-Minerais Estratégicos, firmada em 2021. A menção está no artigo 21 da minuta que vem sendo rechaçada pelas principais organizações indígenas e por pesquisadores que estudam o tema.

É o que defende a análise elaborada por pesquisadores da UFPA, UFJF e UFF, que fazem uma comparação entre o texto proposto, que pode servir de base para um projeto de lei no Congresso Nacional, e o decreto de 2021.

O citado artigo 21 estabelece, por exemplo, uma série de atividades que poderiam ser usadas pelo Ministério da Justiça para interromper o processo de demarcação. Em outras palavras, dizem os especialistas, se houver tentativa de demarcação de uma área onde há pedidos de pesquisa ou lavra mineral, ela poderá ser negada baseado no argumento de que a exploração de recursos minerais seria prioritária.

“Essa priorização é inconstitucional, dada a natureza originária do direito indígena à terra tradicional”, afirmam Ana Alfinito, pesquisadora do Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares, da Universidade Federal do Pará (INEAF/UFPA), Bruno Milanez e Luiz Jardim Wanderley, ambos do grupo de Pesquisa Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade, da Universidade Federal de Juiz de Fora (Poemas/UFJF). Para os pesquisadores, “os interesses minerários são reiteradamente priorizados sobre os direitos territoriais indígenas apesar do status originário e constitucional dos últimos; o “interesse nacional” é usado reiteradas vezes para permitir a restrição dos direitos indígenas, podendo levar à legitimação do não reconhecimento de terras tradicionais e à abertura de TIs demarcadas para atividades de alto impacto socioambiental”.

Como mostrou o relatório “Dinamite Pura: Como a política mineral do governo Bolsonaro (2019-2022) armou uma bomba climática e anti-indígena”, lançado no final de março de 2023 pelo Observatório da Mineração e Sinal de Fumaça, o decreto de 2021 também instituiu a criação do Comitê Interministerial de Análise de Projetos de Minerais Estratégicos (CTAPME), que analisaria os projetos apresentados pelas mineradoras e daria apoio aos processos de licenciamento ambiental.

Além do garimpo ilegal, há muitas décadas responsável por inúmeros crimes dentro de terras indígenas, a abertura para a grande mineração poderá comprometer definitivamente o papel de salvaguardas ambientais e climáticas que as TI’s representam, de acordo com diversos estudos científicos.

A política Pró-Minerais Estratégicos adotada no governo Bolsonaro serviu para que as grandes corporações da mineração acelerassem o licenciamento de projetos para extração de minerais mesmo com impactos sobre o meio ambiente e povos indígenas.

“O uso do termo ‘minerais estratégicos’ neste caso serve para criar um falso sentimento de prioridade uma vez que a Resolução 02/2021 do Comitê Interministerial de Análise de Projetos de Minerais Estratégicos estabelece critérios muito amplos para definir o que são minerais estratégicos”, lembram os pesquisadores. O Comitê não conta com a participação do Ministério dos Povos Indígenas, Ministério da Justiça e tampouco o Ministério do Meio Ambiente.

A perspectiva de normatizar as regras para exploração mineral em terra indígena, a depender do que for deliberado pelo Congresso Nacional, amplamente dominado por ruralistas e aliados de mineradoras, tem sido usada historicamente para ignorar o direito de povos originários.

A Constituição de 1988 “reconhece no artigo 231 o direito dos povos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Ela traz uma palavra que é significativa: os direitos dos povos indígenas são originários. Ou seja, esses direitos antecedem a própria ordem jurídica constitucional”, afirmou o advogado Bruno Moraes, professor substituto na Universidade Federal do Pará (UFPA), em entrevista ao Observatório ainda em matéria especial de 2022.

Foto de destaque: Alass Derivas – @derivajornalismo para a APIB 

Mesa de negociação no STF foi controlada por interesses contrários aos indígenas e isenção do tribunal é questionada

Maurício Terena, advogado na Articulação dos Povos Indígenas (APIB) e do Conselho do Povo Terena, avalia que o STF pode perder a legitimidade para julgar casos que envolvam o direito indígena depois da apresentação desta proposta de lei. Segundo Terena, desde que o debate começou no Supremo a entidade já sinalizava que existiam comportamentos adotados pelo ministro relator que “fogem de uma lógica processual razoável, previsível, dentro das conferências legais que o Código de Processo Civil e a Constituição preveem”.

A APIB, relembra Terena, vem “sistematicamente agravando as decisões judiciais exaradas pelo ministro Gilmar Mendes e, até o presente momento, nenhum desses recursos foi analisado pelo ministro”.

“É com muita preocupação que a gente percebe que essa Câmara de Conciliação chega ao final com uma leniência por parte dos colegas do ministro Gilmar Mendes, pois o prevento para julgar o assunto do Marco Temporal no Supremo é o ministro Edson Fachin, e o próprio ministro Luiz Roberto Barroso não conheceu essa ação feita pela APIB”, explica Terena. 

Para o advogado da APIB, por mais que seja “surpreendente e escandaloso” o ministro apresentar uma proposta que é “muito pior do que a Lei 14.701 (a que tenta estabelecer o Marco Temporal para as demarcações)”, a sensação é que “vale tudo” para retirada de direitos dos povos indígenas.

“A gente está dentro do âmbito da Suprema Corte, e isso é um comportamento esperado, por exemplo, dentro do Congresso Nacional, de passar um projeto de lei no tapetão, manobras legislativas da presidência da casa. Isso é muito comum e a gente viu isso muito na presidência do Arthur Lira. Mas agora, dentro da Suprema Corte, a gente considera, acima de tudo, como um atentado à Constituição Federal. É a máxima expressão da colonialidade, de todas as violências que ocorreram nesse período tão nefasto contra os povos indígenas, e se materializa de modo muito evidente nesse processo”, argumenta Terena.

Na reta final da mesa criada no STF para discutir o assunto, causou surpresa a substituição da deputada indígena Célia Xakriabá (PSOL-MG) pela bolsonarista Silvia Waiãpi (PL-AP), de legitimidade questionada inclusive por seu próprio povo no Amapá, que participou de um governo abertamente anti-indígena e teve seu mandato de deputada cassado até decisão final por uso de verba pública para harmonização facial.

Foto: Matheus Alves/APIB

Para Maurício Guetta, coordenador Adjunto de Política e Direito do Instituto Socioambiental (ISA), a minuta de Mendes pode acabar com a isenção do STF para analisar o tema.

“A apresentação de proposta legislativa pelo STF para uma revisão geral dos direitos dos povos indígenas é absurda. Se assim o fizer, comprometerá a sua principal função, a de analisar a constitucionalidade de leis e garantir a proteção de direitos fundamentais. Jamais poderia ser seu papel oferecer projeto de lei e negociar direitos dos povos indígenas. Resta perguntar: o STF está disposto a ser a casa iniciadora do que pode ser tornar a aprovação do maior retrocesso nos direitos dos povos indígenas desde a Constituição Federal de 1988?”, questiona Guetta.

Coordenador do Centro de Sensoriamento Remoto da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o professor de cartografia Britaldo Soares-Filho defende que devem ser considerados os impactos negativos da mineração em terras indígenas.

Soares Filho é um dos autores do estudo que analisou os impactos do Projeto de Lei 191/2020, que tentou abrir, também no governo Bolsonaro, as terras indígenas para a mineração.

A conclusão do levantamento publicado na revista científica One Earth era de prejuízo de US$ 5 bilhões de dólares anuais em serviços ecossistêmicos, considerando apenas a produção de alimentos como a castanha-do-pará, a extração de madeira e borracha de modo sustentável, a mitigação de gases do efeito estufa e a regulação climática. Além disso, haveria a perda de 160 mil km2 de floresta na Amazôniaárea maior que a superfície de países como a Inglaterra, afirma a estimativa da época. Mais de 200 povos indígenas que vivem nos territórios seriam afetados. 

“Parte dessa estrutura pode adentrar as terras indígenas, ou seja, é um impacto que radia por muitos e muitos quilômetros e isso acaba colocando mais pressão para invasões e desmatamento. As terras indígenas da Amazônia hoje ocupam quase um terço do bioma amazônico e são áreas vastas, pouco protegidas, embora os indígenas sejam os guardiões da floresta. Essas áreas, na verdade, têm que ser vistas como santuários, santuários das populações originais, santuário também de biodiversidade”, avalia.

Gabinete de Mendes diz que ausência de concordância indígena prévia acontece apenas em “casos excepcionais”

Frisando que a resposta enviada ao Observatório da Mineração não é uma nota oficial do STF, mas sim do seu gabinete, o ministro Gilmar Mendes diz que a proposta na audiência de conciliação “não dispensa a consulta às comunidades indígenas”. E que “qualquer mineração não autorizada sem a prévia consulta aos povos originários segue vedada”.

Porém, “o que a minuta prevê é a possibilidade de o presidente da República decidir seguir com a autorização, mesmo com oposição da comunidade, desde que fundamentado em razões de interesse público e de acordo com o princípio da proporcionalidade, com a demonstração da imprescindibilidade da medida. O objetivo é restringir a ingerência na terra indígena com essa finalidade apenas aos recursos efetivamente essenciais ao País”, argumenta.

Segundo a nota, o fundamento segue “precedente datado de 04 de julho de 2024 emitido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Pueblo Indígena U’wa y sus miembros vs. Colombia”. “Por se tratar de uma possibilidade excepcional, a medida não viola o previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho”, finaliza.

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