Empresas brasileiras estão sendo beneficiadas com autorizações para extração de substâncias marinhas sem licenciamento ambiental.
E estão conseguindo aprovar seus pedidos, antes mesmo de conseguirem o direito de lavra, com o uso de uma brecha no Código de Mineração aprovada em 1996 por meio de autorização classificada pela Agência Nacional de Mineração (ANM) como de “caráter excepcional”.
O mecanismo, ratificado por decretos presidenciais nos últimos anos, é a guia de utilização.
Os dados fazem parte de um cruzamento inédito de informações da ANM entre os processos que têm suas áreas de extração com incidência total ou parcial no Mar Territorial, Plataforma Continental e Zona Econômica Exclusiva com os de licenciamento ambiental para este tipo de exploração no mar do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), ambos obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) pelo Observatório da Mineração e confirmados pela apuração e checagem junto aos órgãos.
Os casos em que a extração sem o aval do Ibama estão sendo legitimadas por pareceres e decisões colegiadas da ANM aconteceram antes e depois da publicação de um acórdão do Tribunal de Contas da União (1368/2024) que analisou o uso das guias de utilização em julho de 2024, considerado ilegal.
Entre as seis determinações do TCU está a de “condicionar a emissão de guias de utilização à prévia apresentação do licenciamento ambiental”. O prazo para o atendimento de 180 dias venceu em janeiro deste ano e neste período, um pedido de extração no mar recebeu parecer favorável mesmo sem o licenciamento estar concluído no órgão federal ambiental e sem estudo de impacto na área requerida.
Os casos no mar não são os únicos, segundo o TCU, e revelam o descontrole da ANM no uso das guias, concedidas em casos não excepcionais, como previsto e inclusive sobre as quantidades acima das permitidas das substâncias requeridas por empresas e mineradoras.
“No período auditado de 2017 a 2021, as 4.777 guias de utilização emitidas pela ANM equivalem, em média, a 205,4% em relação às 2.326 portarias de concessão de lavra outorgadas, consoante levantamento realizado no site da ANM”, revela a auditoria.
Imagem ilustrativa de destaque: Navio de Socorro Submarino “Guillobel” no apoio logístico e científico na Ilha da Trindade, no Espírito Santo – Imagem: 2ºSG-MEC Leal / Fonte: Agência Marinha de Notícias
Diretoria da ANM suprimiu texto que exigia apresentação prévia de licença ambiental
A investigação do TCU também mostra que a Diretoria Colegiada da ANM suprimiu o inciso III do art. 107 da Portaria-DNPM 155/2016, por meio da Resolução-ANM 37/2020, em junho de 2020, possibilitando que as guias de utilização pudessem ser emitidas e publicadas sem a prévia apresentação da licença ambiental.
Com a mudança, apenas a eficácia da guia ficou condicionada ao licenciamento ambiental e não a sua própria emissão. O novo texto diz que o licenciamento deve ser apresentado pelo empreendedor dentro de 10 dias da emissão da guia. Em caso negativo, a eficácia se perde.
Esse espaço gerou uma brecha utilizada por empresas que, com a guia em mãos, não apresentam o licenciamento, apostam na ilegalidade e na baixa capacidade de fiscalização da ANM.
Os auditores do TCU identificaram guias de utilização em que esse prazo de apresentação da licença ambiental à ANM, de dez dias, foi descumprido “e há indícios de lavra ilegal mediante guia de utilização sem eficácia, caracterizados pela declaração de produção no relatório anual de lavra e pelo recolhimento da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (Cfem)”, afirmam.
Um dos resultados desta ação da agência, segundo o relatório da auditoria, foram de quase 90 casos de exploração sem controle em uma amostra que vai apenas até outubro de 2023: “Constataram-se 88 casos de extração irregular de substâncias minerais relativa a guias de utilização emitidas no período de 8/6/2020 a 31/10/2023, mediante o cruzamento de dados extraídos do Cadastro Mineiro com dados da arrecadação da Cfem”.
Sugestões posteriores para revogar o prazo de 10 dias e retornar com a exigência prévia de licenciamento para emissão da guia, como sugerido por Ronaldo Lima, diretor da ANM, em janeiro de 2022, reforçado por nota técnica e parecer, acabaram não sendo aceitas de imediato e se perderam em pedidos de vistas que consumiram anos, sem resolução até a publicação do acórdão do TCU, em 2024.
Ao contrário, em retrospecto, a resolução de 2020 que mudou algo tão relevante foi aprovada por unanimidade em apenas 21 dias, lembrou o Tribunal de Contas.
Na ANM, a guia é utilizada para liberar a extração de determinadas substâncias antes da outorga de concessão de lavra. A lista de substâncias permitidas por este mecanismo é longa e inclui desde conchas calcárias até minério de ferro, cobre, diamante, níquel e ouro, variando as quantidades permitidas.
O levantamento revela que a exploração de substâncias minerais por meio da mineração marítima já acontece no Brasil, mas ainda sem alarde e informações detalhadas e claras publicamente disponíveis.
ANM e Ibama, órgãos federais que deveriam controlar e fiscalizar o mercado, responsáveis por autorizações, checagens e licenciamento ambiental, estão sucateados, com orçamento insuficiente, falta de pessoal e ainda tentando se reerguer após o desmonte feito durante o governo de Jair Bolsonaro.
A exploração feita com o uso de guia e sem o licenciamento devido aumenta o risco de danos ambientais, segundo especialistas no tema, além de poder ser enquadrada em crime ambiental.
A possibilidade de extrair em caráter excepcional sem a lavra definitiva foi aberta em novembro de 1996, em lei sancionada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso e pelo então ministro de Minas e Energia, Raimundo de Brito.
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Calcário e fosfato lideram a exploração no mar. Maranhão, Bahia e Espírito Santo são os principais estados.
A exploração atual no mar está concentrada na extração de calcário e fosfato, a maior parte feita a partir da retirada de algas marinhas e produtos usados na indústria de fertilizantes e nutrição animal.
Esse mercado vive um boom após a guerra na Ucrânia, já que é da região que sai boa parte do fertilizante importado pelo Brasil e o governo federal tem incentivado a expansão da produção de fertilizantes em solo nacional.
Fosfato, potássio e calcário lideram a lista de requerimentos para exploração no mar, como mostramos na primeira matéria da série.
O levantamento do Observatório da Mineração identificou que a lithothamnium, uma alga marinha calcificada e conhecida como alga vermelha, encontrada em águas profundas na costa brasileira, é a substância mais citada nos pedidos de licenciamento ambiental.
As empresas que dizem explorar ou exploraram, pelo menos desde 2007, de acordo com a apuração, estão concentradas especialmente nos litorais do Maranhão, Bahia e Espírito Santo.
Guia de utilização, precedente aberto no direito minerário, tem sido ratificada nos últimos anos
O uso destas guias sem licenciamento ambiental ou sem a conclusão dos processos no Ibama viola até mesmo os dois decretos mais recentes que ratificaram essa possibilidade, o primeiro editado em 2018 no governo Temer (9.406/2018) e o segundo já na gestão Bolsonaro (10.965/2022), simplificando critérios de análise da ANM.
Tanto os dois decretos mais recentes quanto a resolução da ANM de 2020, que regula o uso das guias e uma extensa portaria de 2016, afirmam que é preciso “respeitar a legislação ambiental vigente” e entregar um relatório anual de lavra.
No caso da resolução, porém, como destacado pelo TCU, a supressão da obrigatoriedade de apresentação prévia do licenciamento ambiental permite essa zona cinzenta que acaba favorecendo as empresas.
Para Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama, a guia de utilização deveria ser utilizada em situações previstas no regulamento, como análises de viabilidade ou testes, não para ignorar o licenciamento ambiental.
“Ela gera a dispensa temporária da outorga da concessão de lavra, não do licenciamento ambiental. Se a atividade for em escala insignificante ou de pequena escala, pode ser afastado o licenciamento ambiental ou aplicado processo simplificado”, afirma.
Para Araújo, “usar a guia para eliminar o licenciamento perante os órgãos do Sisnama (Sistema Nacional do Meio Ambiente) é inadmissível e, na minha opinião, pode gerar inclusive aplicação de sanções penais, com base na Lei de Crimes Ambientais. Isso também vale para minerações no offshore”, avalia.
Licenças experimentais são usadas por mineradoras na Bahia e no Espírito Santo.
Analisando os dados do Ibama sobre o licenciamento ambiental das empresas que exploram ou pretendem explorar no mar brasileiro, Luigi Jovane, professor associado do Departamento de Oceanografia Física, Química e Geológica do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (USP), faz outros alertas sobre lacunas nos processos, além da falta de estudos científicos.
O primeiro deles é que em várias licenças classificadas de operação são na verdade de “operação para lavra experimental”. O pesquisador afirma que mineradoras estão extraindo “há muitos anos desta forma”, especialmente na Bahia e no Espírito Santo. E aponta possíveis violações nos processos sobre as declarações sobre o material lavrado.
“As empresas podem comercializar o material na fase de teste e, portanto, é vantajoso fazer este tipo de licença. Outro ponto é a descrição do material lavrado. Eles chamam de lithothamnium porque com este termo se representam as algas mortas, mas na verdade a maioria das vezes o que é lavrado são algas vermelhas vivas e rodolitos que são o substrato dos recifes de corais no atlântico. É quase impossível diferenciar o lithothamnium das algas vermelhas e dos rodolitos. São diferenças biológicas e mineralógicas mínimas”, afirma.
Segundo o especialista, esse material biológico pode ajudar a reduzir os efeitos das mudanças climáticas. “Além de ter uma grande importância para a biodiversidade, algas vermelhas vivas e rodolitos estão entre os maiores sequestradores de CO2 no mar. E tem uma função reguladora da temperatura e do PH do mar em tudo. Portanto, a retirada destes materiais pode influir no equilíbrio marinho e nas mudanças climáticas. Mas isso precisa de muitos mais estudos”, avalia Jovane.
Já o Ibama afirma que não há autorização para a extração de algas vermelhas. Se empresas usam esse expediente, estariam indo além do permitido, causando impactos.
“Grande parte dos processos relacionados se refere à extração de Lithothamnium, não havendo autorização de extração de algas vermelhas, rodolitos ou substâncias associadas a corais. Para entender a dinâmica da área objeto da atividade de extração é solicitado o diagnóstico, de forma a se evitar que haja impactos ou danos à biota”, respondeu o Ibama ao Observatório da Mineração.
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Falta de legislação específica e estudos podem comprometer biodiversidade, afirmam especialistas
O cruzamento de informações e as respostas pela LAI revelam que não existem normas ou leis específicas para o setor na área ambiental e o licenciamento tem como base apenas a Resolução Conama nº 237/1997.
A norma não trata especificamente de extração mineral no mar, mas atribui ao Ibama no seu artigo 4º a responsabilidade por liberar empreendimentos e atividades com “significativo impacto ambiental de âmbito nacional ou regional, localizadas ou desenvolvidas”, também “no mar territorial; plataforma continental e na zona econômica exclusiva”.
Por parte da ANM, não há regra diferente da concessão de mineração em terra e as referências são “Código de Mineração, sua regulamentação e legislações acessórias ao código”, que inclui o uso das guias, informou a agência.
“A legislação não é forte. Porque a legislação da mineração se baseia em cima do que acontece no continente. No mar, não existe, de verdade, uma legislação pronta que consiga responder a algumas características. A Conama mesmo é feita para áreas continentais, não é feita para a área marinha”, pondera Jovane, da USP.
Segundo o pesquisador, as empresas não querem que as informações sejam divulgadas. “Tem um vácuo de conhecimento gigantesco que precisa ser resolvido. Os recifes no Atlântico Sul são fundamentalmente formados por algas vermelhas, rodolitos e algumas vezes esponjas”, alerta.
Para Suely Araújo, o Ibama não precisa de regramentos específicos “e analisa processo a processo”. Em resposta ao Observatório da Mineração, o Ibama reforçou que “não há normativa específica sobre o tema”. De acordo com o Ibama, “o licenciamento ambiental de atividades de mineração marítima observa a legislação ambiental, inclusive a relativa à mineração continental” e afirmou estar em “contínuo aprimoramento em todos os procedimentos a partir da experiência acumulada em licenciamentos anteriores”.
Luigi Jovane lembra que a proteção de áreas marinhas ainda é frágil no Brasil e não se exige mitigação das empresas que querem explorar o fundo do mar.
“Precisamos fazer mais estudos sobre o impacto que a retirada desse material do fundo e a reposição de outros materiais em outras áreas possa criar”, avalia. Para o pesquisador, se o Brasil passar a ter muita atividade de mineração no oceano podem ser formados “agentes cumulativos e os impactos podem ser gigantescos”. “O risco aumenta em forma exponencial também. E tudo isso tem que ser estudado. Não existem muitos estudos científicos, são pouquíssimos”, completa.
Alex Bastos, professor do Departamento de Oceanografia e Ecologia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), faz análise parecida. “Quando se fala de ambiente marinho, um dos principais riscos é não ter um bom estudo usando o que há de mais moderno para minimizar os riscos e avaliar ações mitigadoras, uma vez que o fundo dos oceanos é ainda pouco conhecido”, diz Bastos.
O pesquisador da UFES afirma que o conhecimento sobre os processos ecossistêmicos e a biodiversidade em mar profundo (>200m) ainda é pequeno e que “é preciso ter todas os dados na mesa para que se possa tomar decisões com base na ciência”.
De acordo com Bastos, que é PhD em Geologia e Geofísica Marinha pela Universidade de Southampton, na Inglaterra, outra questão que agrava o cenário brasileiro são os ataques políticos que órgãos como o Ibama sofrem, o que afeta a capacidade de cumprir devidamente o seu papel, como no caso do licenciamento ambiental.
“Com o desmonte que foi feito e o assédio que ocorreu no governo anterior (Bolsonaro), você pode ter a melhor legislação, mas se o órgão for fragilizado politicamente, não adianta. Hoje está melhorando, existem ações de capacitação, mas isso precisa ser constante”, lembra.
Para Bastos, a definição de áreas de exploração e áreas protegidas é papel do planejamento espacial marinho, que começou há pouco tempo no Brasil. “Criar um zoneamento do fundo dos oceanos, de forma responsável e equilibrada, é a única forma de buscar a sustentabilidade”, acredita.
O Observatório da Mineração pediu informações e esclarecimentos adicionais ao Ibama e à ANM, porém os órgãos não responderam, após semanas de tratativas. O espaço segue aberto para manifestação.