Divididos pela mineração: indígenas no Pará lutam para manter a identidade do seu povo contra a ferrovia que alimenta a siderurgia global

Por Maurício Angelo e Sarah Sax*

Fotos: Ingrid Barros

Saindo de Marabá, no sudeste do Pará, maior cidade da região, em direção a Bom Jesus do Tocantins, fica a terra indígena Mãe Maria. A BR-222 corta toda a TI.

Dirigindo para fora do núcleo urbano de Marabá, que é sede de siderúrgicas e mineradoras, cidade que fica bem no meio do chamado “Arco do Desmatamento” e onde é possível ver inúmeras bandeiras do Brasil em fazendas e comércios, representando o apoio que o ex-presidente Jair Bolsonaro ainda tem na região, é nítido o cinturão verde que a TI Mãe Maria representa em uma área fortemente devastada da Amazônia.

Na TI, homologada em 1986, vivem cerca de 1000 indígenas dos povos Gavião Akrãtikatêjê, Gavião Kyikatejê e Gavião Parkatêjê em uma área de 62 mil hectares dividida em 22 aldeias. A proximidade com o núcleo urbano de Marabá, porém, que está a menos de 30 minutos de carro, impõe uma segurança reforçada.

A entrada de cada aldeia é protegida e vigiada por portões de ferro, postos de segurança e vigias indígenas, que só permitem a passagem de estranhos após checagem de informações e indicações prévias de lideranças do povo Gavião.

Foi após meses de conversa que conseguimos permissão para acessar a TI Mãe Maria. Apesar de tanta segurança, porém, o maior inimigo dos indígenas está permanentemente dentro do território: a Vale.

A Estrada de Ferro Carajás rasga a parte sul da TI Mãe Maria, instalada ali desde os anos 80 por uma excrescência tipicamente brasileira: a parte ocupada pela ferrovia, mesmo dentro da terra indígena, não é considerada oficialmente parte da TI.

A entrada de cada aldeia é protegida e guardada por portões de ferro, postos de segurança e vigias indígenas. Desde que os pagamentos mensais às aldeias foram introduzidos, os líderes indígenas dizem que a criminalidade, os sequestros e os roubos aumentaram muito. Foto: Ingrid Barros.

A Vale conseguiu uma exceção, um estado paralelo dentro da TI, para garantir o escoamento de centenas de milhões de toneladas de minério de ferro por essa ferrovia que é essencial para os negócios da empresa e a cadeia global da mineração e da siderurgia.

É pela Estrada de Ferro Carajás que os minerais extraídos da Serra dos Carajás, que abriga a maior mina de minério de ferro a céu aberto do mundo e jazidas também de cobre, manganês, níquel e ouro, atravessam quase mil quilômetros até o Porto do Itaqui, em São Luís, no Maranhão.

De lá, os minérios são exportados em gigantescos navios graneleiros principalmente para a China.

É a expansão contínua da operação em Carajás, em especial o S11D, uma das maiores obras privadas da história do Brasil, que garante o posto da Vale entre as 5 maiores mineradoras do mundo. Nos últimos anos, a Vale bateu recordes seguidos de lucro: foram R$ 95,9 bilhões em 2022 e R$ 121 bilhões em 2021.

Ao longo da ferrovia, que carrega a doutrina do desenvolvimento defendida arduamente pela Vale, a realidade é um rastro de violações de direitos humanos. É o minério exportado pela ferrovia que garante a pujança da indústria siderúrgica global, especialmente da China, que transforma o minério brasileiro em mais de 1 bilhão de toneladas de aço por ano, metade da produção mundial.

Para os indígenas da TI Mãe Maria, a ameaça permanente dos trens que rodam ininterruptamente dentro do seu território tende a piorar: após anos de negociações, os indígenas aceitaram, no fim de 2022, um acordo para autorizar a duplicação da ferrovia.

A história sobre como esse acordo foi atingido, porém, revela antigas práticas coloniais que grandes mineradoras, como a Vale, são especialistas.

A ferrovia conecta a maior mina de minério de ferro a céu aberto do mundo, em Carajás, ao porto de Ponta da Madeira, em São Luís, Maranhão. Foto: Ingrid Barros.

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Dividir para conquistar

“Muitas comunidades não se entendem. A Vale faz a cabeça de um, faz a cabeça de outro, vai jogando um contra o outro e assim que ela conseguiu dominar, ficou difícil da gente brigar. Por isso eu desisti”, contou à reportagem Zeca Gavião, 55 anos, cacique da aldeia Gavião Kyikatêjê, em uma tarde agradável na Amazônia, após o treino do time de futebol profissional majoritariamente indígena que dirige, o Gavião Kyikatejê Futebol Clube.

Zeca, que há muitos anos comanda a aldeia e mora com a esposa e 8 filhos na TI, era uma das únicas vozes dissonantes dentro da TI Mãe Maria em relação a aceitar o acordo proposto pela Vale para a duplicação da ferrovia.

Zeca Gavião, que treina um time de futebol formado em grande parte por jogadores indígenas, pretende continuar brigando com a Vale na Justiça pela expansão da ferrovia. Foto: Ingrid Barros.

A falta de apoio entre os seus pares vem de um histórico complicado com a mineradora desde a implantação da ferrovia em 1985, a homologação da TI e os diversos formatos de acordos feitos desde os anos 80.

Diante da insatisfação de parte da comunidade e do rompimento do convênio mantido em 2015, indígenas chegaram a bloquear a ferrovia e a Vale passou a não cumprir parte dos repasses mensais às aldeias. Na pandemia, o cenário se agravou. Os indígenas da Amazônia foram mais afetados pela Covid-19 do que a população em geral.

A pressão aumentou e Zeca Gavião acabou aceitando os termos propostos pela Vale, contrariado.

“Fiquei sozinho e usaram isso como argumento, que só eu ia brigar pelo convênio. Fui obrigado a aceitar. Não foi um acordo. Acordo é quando você diz: olha, tenho essa condição, não concordo, mas quero isso. A Vale disse: tenho essa possibilidade de te ajudar, se não quiser, vai para a justiça. Aí chegaram com aquele cifrão. É muito dinheiro, foram aceitando, aceitando e a Vale venceu pelo cansaço”, relata Zeca.

Os problemas causados pela ferrovia, de acordo com o cacique, são vários, a começar pela própria desestruturação do povo Gavião, avalia. “Hoje o Gavião não é mais como era antigamente. A Vale viciou meu povo de uma forma que demorou a entenderem o que acontecia”, diz Zeca.

Katia Silene mostra a castanha-do-brasil produzida na Terra Indígena Mãe Maria. Antes da ferrovia, a castanha era uma das mais importantes fontes de renda do povo Gavião. Foto: Ingrid Barros.

Kátia Silene, cacique da aldeia Akrãtikatêjê, concorda. “A Vale não é legal, não é nossa amiga, a Vale não é boa”, diz a cacica Silene. “A Vale é um dragão de ferro que quando for embora deixará apenas um cemitério. Ela acabou com a vida dos povos Gavião e Xikrin e abriu uma brecha no meio da sociedade indígena. Nenhum dinheiro vai curar o que a Vale trouxe. Eles nos deram uma ninharia.”

Ela viu em primeira mão como as empresas multinacionais podem acabar com comunidades e territórios inteiros. Sua aldeia foi obrigada a se mudar para o território Mãe Maria na década de 1980, quando a Eletronorte criou uma barragem e desalojou mais de 30 mil pessoas, muitas delas indígenas e camponeses.

Silene foi uma das últimas caciques restantes a se recusar a assinar a negociação com a Vale, protestando por mais de 10 anos até finalmente ceder. “Nós nos seguramos muito, adiando de 2011 até 2023”, disse ela. “Mas nunca houve um tribunal que dissesse ‘não, os indígenas ganharam, não pode duplicar a ferrovia, não pode fazer isso’.

Ela diz que os efeitos da ferrovia já são amplamente sentidos e serão ampliados quando um trilho adicional for construído. “Nossos rios, nosso território, nosso meio ambiente, nossa flora não são como eram antes por causa do pó de minério e por causa do combustível que desce para o nosso rio, nossos peixes estão contaminados”, disse.

O cacique Kuia Parkategê diz que é impossível colocar um preço no rico ambiente da Amazônia dentro da TI Mãe Maria. Ele sente que a Vale conseguiu um acordo com métodos enganosos e antiéticos. Foto: Ingrid Barros.

Antes de falarmos com o cacique Kuia Parkategê, outro cacique que até recentemente se recusou a assinar o acordo com a Vale, nós visitamos a ferrovia, acessível por uma estrada de terra de quilômetros de extensão que corta a espessa folhagem verde. Emergindo do meio das enormes árvores, a ferrovia corta uma linha reta através do território, com dezenas de hectares desmatados ao lado do trecho de 15 quilômetros de trilhos.

Os impactos na flora e na fauna, o som, o desmatamento e a degradação nunca foram mencionados integralmente nos relatórios da empresa, disse-nos o cacique Kuia. “A Vale quer nos dar dinheiro para desmatar uma grande faixa ao lado da ferrovia existente para que ela possa aumentar seus lucros”, disse. “Mas como você pode colocar um preço nessas árvores, em todos os animais que vão morrer atravessando os trilhos da ferrovia ou fugir do barulho? Não há preço para isso.”

A forma como as negociações aconteceram foi muito irregular, conta. A compensação para as aldeias individuais não foi feita de maneira lógica e, em vez disso, o dinheiro foi usado para jogar diferentes aldeias umas contra as outras, avalia o chefe indígena.

O recurso de compensação recebido pelos indígenas da Vale, além de provocar conflitos e desunião, também causa problemas internos e externos, como assaltos em dias de pagamento, piorado com a rodovia que corta o território. Zeca Gavião chegou a ser sequestrado anos atrás. A caça e o direito de ir e vir também foram afetados. As guaritas, então, foram uma forma encontrada para tentar amenizar os riscos.

Apesar de se ver obrigado a aceitar o acordo de duplicação da ferrovia, Zeca Gavião pretende continuar a brigar na justiça para que a Vale deixe de ter legalmente a área ocupada pela ferrovia como sua propriedade e não dos indígenas.

“Eu não parei, vou brigar de novo. Minha luta é pela Constituição, que diz que a terra indígena é inegociável. Nós seguimos aqui dentro. Mas a Vale vê que a terra é dela. Quero que isso seja revisto, que a área da ferrovia pertença à terra indígena”, cobra.

Treino do time profissional de futebol Gavião Kyikatejê Clube, treinado por Zeca Gavião, dentro da TI Mãe Maria, acompanhado pela reportagem. Foto: Ingrid Barros

O cacique afirma que está em fase final de ver com o seu advogado como podem recorrer para que o decreto da TI seja revisto, o que também impacta no formato da compensação feita pela Vale, que ele questiona como “injusto e irregular”.

O decreto original de homologação, publicado pelo ex-presidente José Sarney em 1986, excluiu dos limites da TI a estrada de ferro da Vale, os linhões de energia da Eletronorte e a faixa da rodovia BR-222. Na época, não havia necessidade de consulta prévia aos indígenas, como prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada em lei nos anos 2000 pelo Brasil. A época do decreto também é anterior aos direitos indígenas conquistados pela Constituição de 1988.

Hoje, a consulta prévia é obrigatória, assim como os estudos de impacto ambiental e as anuências da Fundação Nacional do Índio (Funai) e o processo de licenciamento do Ibama. 

Enquanto a mineradora avança com o licenciamento para dar continuidade na obra da duplicação, o acordo de 10 anos – chamado de PBA, Plano Básico Ambiental – feito com as comunidades, é questionado por Zeca pela falta de autonomia indígena sobre os rumos dos projetos, o fato de a avaliação sobre resultados futuros ficar na mão da Vale e a possibilidade do acordo não ser renovado em uma década.

“Meu objetivo era o convênio, que seria o futuro do meu povo. Não era nem o termo de compromisso nem o PBA. Se a comunidade não souber fazer a gestão para rentabilidade econômica, fica sem nada. Fui em aldeias que tem esse modelo (o PBA), fui pesquisar para ter argumento com a Vale, vi que não é bom, não é seguro para a comunidade. Sei que meu povo vai aumentar, crescer e não terá apoio como tinha”, diz Zeca.

A Terra Indígena Mãe Maria é uma área verde de 62 mil hectares cercada por fazendas e pastagens de gado nos arredores de Marabá, a maior cidade do sudeste do Pará. Foto: Ingrid Barros.

No convênio, que durou de 1986 a 2015, havia previsão de apoio para saúde, educação, atividades produtivas, vigilância da reserva, administração e cultura. Isso incluía equipe multidisciplinar de médico dentista, cirurgião, enfermeiro, técnico agrícola, técnico em educação, consultor financeiro, com uma equipe por aldeia.

Em todo esse tempo houve retrocessos, como a retirada de apoio da Vale nos procedimentos de saúde em alta complexidade, que não é coberto pela saúde indígena especializada oferecida pelo Ministério da Saúde, focada em atenção básica. Nos últimos anos, na gestão de Jair Bolsonaro, Zeca também reclama que os órgãos da administração federal ficaram ao lado da Vale.

“O convênio garantia isso para nós e ao longo do tempo foi cortando, cortando, meu povo não entendeu, fui brigando sozinho. Não tivemos apoio nenhum de Funai e Ibama no governo Bolsonaro. Na hora da negociação com a Vale, não vi a Funai falar por nós e sim pela Vale. Era difícil. Ficamos à mercê”, conta.

O Ministério Público Federal foi chamado como interveniente. O procurador Luís Eduardo Araújo, que atua em Marabá, conta que a Vale adicionou um gatilho de reajuste automático de 20% no acordo de compensação normal a partir do momento que a duplicação fosse aprovada. Uma forma de pressionar e “incentivar” os indígenas. Assim, o acordo acabou acontecendo.

O procurador Luís Eduardo Araújo, do Ministério Público Federal, foi convocado como interveniente entre a Vale e o povo Gavião. Para ele, as compensações da ferrovia original e da duplicação deveriam ter sido tratadas como acordos separados. Foto: Ingrid Barros.

“O MPF sempre disse que não era de bom tom misturar dois assuntos distintos. Uma coisa é o acordo padrão e outra é a duplicação. A Vale falou que não e colocou esse gatilho”, conta.

Segundo o procurador, os indígenas reclamam dos impactos cumulativos que tendem a piorar com a duplicação, como a fuga de animais, o barulho, a trepidação, e o acesso ao principal rio da região, que é o Tocantins, limitado pela ferrovia.

Zeca se preocupa com o futuro.

“Os antropólogos não tiveram a visão de dizer qual seria o nosso custo de vida com a ferrovia passando. Não existe garantia de nada pela Vale. Qual a garantia para o meu povo, filhos, netos?”, questiona.

Silene (à esq.) resistiu durante vários anos a um acordo com a Vale sobre a expansão das ferrovias, mas sentiu que não havia apoio dos governos locais, estaduais ou federais para ajudá-los a resistir e, finalmente, aceitou os termos da Vale. Foto: Ingrid Barros.

Sem a Estrada de Ferro Carajás, seria impossível para a Vale alcançar o lucro recorde dos últimos anos e a operação contínua de exportação que, do início até o fim da cadeia de valor, mantém a produção global de aço e o fluxo de commodities essencial para diversas indústrias, da siderurgia aos carros elétricos e a tecnologia de ponta.

Um dos principais financiadores do chamado Projeto Grande Carajás, ainda nos anos 70 e 80, foi o Banco Mundial.

Hoje, grandes investidores americanos tem participação expressiva na Vale, caso da Capital Group, com mais de 14% das ações e a BlackRock, maior fundo de investimento do mundo, que tem 5,7% do controle acionário da Vale. O conglomerado japonês Mitsui, parceiro histórico da mineradora em diversos negócios, tem 6,3% das ações.

De 2016 a 2021, a Vale também recebeu mais de US$ 35 bilhões de empréstimos e investimentos de vários grupos financeiros mundiais, incluindo Vanguard, Crédit Agricóle, Commerzbank, Citigroup, Bank of American, JPMorgan Chase e outros, de acordo com o relatório “Cumplicidade na Destruição IV”, da Amazon Watch e Observatório da Mineração.

Todas essas instituições se beneficiarão direta e indiretamente com a duplicação da ferrovia na TI Mãe Maria.

No fim de 2020, a Vale conseguiu, junto ao governo Jair Bolsonaro, a renovação antecipada da concessão federal da Estrada de Ferro Carajás por mais 30 anos. Agora, a mineradora pode usufruir da ferrovia até 2057. No acordo feito, que envolve ainda outras ferrovias da Vale, a mineradora pagará R$ 11,8 bilhões em outorga ao governo federal.

O procurador Luís Eduardo Araújo mostra no mapa onde a Estrada de Ferro Carajás cortando a TI Mãe Maria. Foto: Ingrid Barros.

Assolados pela ditadura, povo Gavião vê a Vale sofisticar as suas estratégias

A TI Mãe Maria é cortada também pelo linhão da Eletronorte, instalada após a construção da hidrelétrica de Tucuruí. A série de grandes empreendimentos industriais explica o contexto de conflito histórico que os indígenas Gavião vivem.

O povo Akrãtikatêjê, por exemplo, foi expulso da área de Tucuruí nos anos 70 e trazido à força para onde atualmente é a região da TI Mãe Maria.

A ditadura militar foi responsável por violar direitos indígenas em série para favorecer esses grandes empreendimentos: a hidrelétrica e os linhões de transmissão, a rodovia e Projeto Grande Carajás, da Vale. O relatório da Comissão Nacional da Verdade, publicado em 2014, provou uma série de violações.

A exemplo de vários outros povos indígenas que quase foram dizimados pela ditadura militar, as grandes obras na Amazônia, as perseguições, remoções, doenças trazidas pelos brancos e ataques diretos, inclusive com armas químicas despejadas por aviões, os Gavião perderam 70% da sua população. E sobreviveram.

Mas os conflitos e as divisões internas e históricas entre o povo Gavião, porém, foram muito bem aproveitados pela Vale, pondera o pesquisador Giliad Silva, professor da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa).

“A Vale sabe o quanto isso afeta a imagem, especialmente com sócios minoritários. E a mineradora aprendeu nos anos 80 e 90 que não dava para buscar um consenso entre os indígenas, porque assim eles ficavam muito fortalecidos. Por isso passou a destacar funcionários para o que chamam de relacionamento com as comunidades”, conta Giliad.

Giliad Silva, professora da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, que acompanhou de perto o conflito, disse que a Vale aproveitou as divisões internas e históricas entre o povo Gavião para levar adiante sua proposta. Foto: Ingrid Barros.

A Vale passou a estimular a divisão dos indígenas em mais aldeias e mais famílias, para facilitar a negociação fragmentada e tornar mais fácil pressionar aldeias menores. Na pandemia, a situação se agravou.

“Na pandemia alguns ficaram em situação muito difícil. Sem o repasse da Vale, com receio e pressão da mineradora. A Vale bateu o pé para unificar os processos”, confirma Giliad.

Reunindo em uma mesma mesa de negociação a linha original e o processo de duplicação, com a crise econômica e pandemia, a Vale ficou em situação muito favorável e, no fim, conseguiu o que queria.

A TI Mãe Maria também é cortada pela linha de energia da Eletronorte, instalada após a construção da hidrelétrica de Tucuruí. Foto: Ingrid Barros.

As disputas sobre o direito sobre o território e o fatiamento dado para a Vale, a Eletronorte e a rodovia federal também atraem a ação de madeireiros, grileiros e outros criminosos.

Tudo isso, incluindo o tempo, energia e a articulação necessária para negociar e brigar com a Vale, impede ainda que os indígenas consigam planejar efetivamente o futuro e se dedicar a ampliar o horizonte das discussões, como dito por Zeca Gavião, presos em pautas imediatas. A Unifesspa tem um grupo de pesquisa, coordenado por Giliad Silva, que tenta ajudar nesse processo.

“Os indígenas da Amazônia querem planejar o futuro para daqui 20, 30, 50 anos. Querem discutir pautas como o Bem Viver. Mas nos últimos anos isso não avançou. Eles acabam impedidos de pensar pautas que julgam importantes”, afirma Giliad.

Cerca de 35 comboios passam diariamente pelos trilhos da Vale, incluindo um dos maiores trens de carga em operação regular no mundo: 30 vagões que, de ponta a ponta, se estendem por 3,3 km. Foto: Ingrid Barros.

Vale diz que respeita autonomia indígena

Procurada pela reportagem, a Vale afirma que segue todas normas vigentes, que tem um relacionamento longo com a comunidade, que as obras de duplicação já começaram e devem ser concluídas em 2024 e que respeita a autonomia dos indígenas. Leia a nota da mineradora:

“O processo de licenciamento do Projeto de Expansão da Estrada de Ferro Carajás respeitou todos os normativos vigentes, dentre eles a realização de consulta livre, prévia e informada, com a produção de Estudo de Componente Indígena (ECI) e seu Plano Básico Ambiental (PBA-CI), os quais foram aprovados pela Comunidade Indígena e pela FUNAI, enquanto órgão de promoção da Política Indigenista. Quanto às ações estabelecidas no acordo, a Companhia ressalta que são fruto de um relacionamento de longo prazo estabelecido com a comunidade, resultante de um processo permanente de diálogo, discussões e deliberações, desta forma, não se configurando ação de compensação do mencionado projeto.

A área da EFC pertence à União, sendo a Vale concessionária do serviço público. As obras do Projeto de Expansão da estrada serão executadas dentro da faixa de domínio da ferrovia no município de Bom Jesus do Tocantins em trecho vizinho à terra indígena Mãe Maria. A expansão compreende a construção de uma segunda linha ao lado da principal já existente, com cerca de 15 quilômetros, entre o km 694 e o km 712 da EFC. As obras tiveram início e envolverão atividades de infraestrutura como terraplanagem e superestrutura ferroviária (colocação de trilhão e dormentes) com previsão de conclusão em 2024.

Sobre os aspectos ambientais gerados pela operação ferroviária, a Vale ressalta que são estabelecidos controles ambientais e programas de monitoramento (sejam eles relacionados a ruído, qualidade do ar, entre outros) cumprindo os parâmetros legais, atestados pelo próprio órgão ambiental fiscalizador. 

A Vale mantém diálogo aberto e constante com os indígenas, ouvindo-os de forma contínua. Porém, a Companhia não se envolve nos processos políticos das comunidades. Os processos rescisórios do passado foram realizados dentro da legalidade e legitimidade dos ajustes celebrados, sendo substituídos por novos acordos estabelecidos entre a Vale e a comunidade indígena”.

A duplicação aumentará a capacidade da ferrovia para 230 milhões de toneladas de minério de ferro transportadas anualmente. No total, 10.756 vagões e 217 locomotivas transportam cargas na Estrada de Ferro Carajás. Foto: Ingrid Barros.

Essa investigação foi possível com o apoio do Journalismfund Europe.

Maurício Angelo é fundador, diretor, editor-chefe e repórter especial do Observatório da Mineração. Pesquisador vinculado ao Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (UnB). Professor e palestrante de jornalismo. Repórter com centenas de matérias publicadas na mídia brasileira e internacional (Reuters, UOL Notícias, Mongabay, Repórter Brasil, Pulitzer Center, OCCRP, Folha de S. Paulo, Deutsche Welle, El País, Intercept e outros). Eleito um dos três jornalistas mais relevantes do Brasil no setor de Mineração, Metalurgia e Siderurgia pelo Prêmio Especialistas de 2022 e 2021. Vencedor do Prêmio de Excelência Jornalística da Sociedade Interamericana de Imprensa (2019).

Sarah Sax é jornalista investigativa freelance focada em desmatamento, conflitos de terra e commodities nas Américas. Anteriormente, trabalhou no Vice News Tonight no departamento de clima e meio ambiente da HBO e foi bolsista de reportagem sobre justiça climática no High Country News. Ela recebeu o prêmio Front Page de melhor artigo de revista investigativa em 2022, e seu trabalho foi homenageado por diversas associações, como a Society for Environmental Journalists e a National Association of Science Writers.

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