Maior mineradora do Brasil, entre as 5 maiores mineradoras do mundo e com um lucro líquido superior a R$ 121 bilhões registrado em 2021 – recorde na história de uma empresa de capital aberto no Brasil – o gigantismo da Vale se manifesta também em seu consumo de eletricidade.
Com certo orgulho, a Vale afirma em sua própria página que a mineradora é responsável, sozinha, por consumir 2% de toda a energia elétrica produzida no Brasil.
A demanda de energia contratada pela Vale é equivalente à demanda de todo o estado do Espírito Santo.
A Vale detalha que cerca de 54% de seu consumo é com geração própria, com destaque para as fontes hidrelétrica e eólica. Porém, de toda a base de consumo da Vale, além da eletricidade, 24% é a diesel, 17% a carvão e 12% outros óleos, o que dá mais de 50% de consumo de fontes poluentes.
Toda essa energia é gasta essencialmente para produzir e transportar minério de ferro, o principal produto da Vale, em Minas Gerais e no Pará.
Em 2021, a Vale produziu 315 milhões de toneladas de minério de ferro. A mineradora espera chegar a 370 milhões de toneladas de minério de capacidade de produção no fim de 2022.
Esse minério, exportado sobretudo para a China, alimenta diversas usinas siderúrgicas ao redor do planeta e incrementa o consumo de energia e as emissões de gases responsáveis pela crise climática no mundo.
No Brasil e fora do Brasil, a Vale tem peso direto e indireto no consumo energético, no balanço de emissões e influência em toda a cadeia de valor do setor minero-siderúrgico.
Como mostrei na primeira matéria da série, mesmo representando apenas 3% do PIB, somando toda a Indústria Extrativa Mineral, com 1,2% de participação e a siderurgia, levando em conta toda a Indústria da Transformação Mineral, com 1,9% no PIB, o setor minero-siderúrgico consome 11% de toda a eletricidade produzida no Brasil.
Para especialistas, o tamanho da Vale no setor energético e o alto consumo da cadeia mineral e siderúrgica revela problemas crônicos, agrava a crise climática e, em contrapartida, oferece muito pouco para a sociedade mesmo em termos puramente econômicos.
Quando colocamos na balança a necessidade de aumentarmos drasticamente a eficiência energética e a contribuição para o Brasil atingir as metas do Acordo de Paris somada com as inúmeras violações socioambientais do setor extrativo, o resultado é desastroso e preocupante.
“A escala da Vale é assustadora”, diz Otto Hebeda, pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Existe uma concentração de mercado muito grande em poucas empresas e a Vale tem uma responsabilidade enorme nessa estrutura”, afirma Hebeda.
Em resposta ao Observatório da Mineração, a Vale afirmou que “para endereçar o desafio das mudanças climáticas, a Vale assumiu o compromisso de 100% de energia renovável no Brasil (2025) e globalmente (2030)”.
Medindo o avanço dessa meta, a Vale diz que está “com 98% de energia renovável no Brasil, em relação ao consumo estimado para o ano de 2025, e 88% globalmente, em relação ao consumo estimado para o ano de 2030”.
Ainda que a sua matriz de consumo energético divulgada em sua própria página conte uma história diferente, como já detalhado anteriormente.
Para Hebeda, é difícil para a sociedade e para a academia mensurar a efetividade e o impacto real das metas e compromissos assumidos por empresas como a Vale porque a narrativa acaba se concentrando no que é anunciado.
“E o que é publicado muitas vezes não traz informações que permitam que a gente tenha uma compreensão completa do que tem sido feito”, alerta o pesquisador da UFRJ.
Dona de centrais hidrelétricas, Vale recebe dezenas de subsídios cruzados
O portfólio energético da Vale no Brasil é composto por três pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) próprias e participações em consórcios de três usinas hidrelétricas e em duas empresas de geração.
Isso inclui sociedades com a Cemig, empresa de geração de energia de capital misto de MG, em Minas Gerais e no Pará. A mineradora, via Aliança Norte, divide com a Cemig 9% das ações de Belo Monte, usina hidrelétrica símbolo de ineficiência, desastre ambiental, violação de direitos indígenas e corrupção.
Além do impacto cumulativo causado pelas PCH’s – estudos mostram que, a depender do caso, esses impactos podem ser ainda maiores que os de uma grande hidrelétrica – todas essas operações recebem generosos subsídios fiscais.
Na prática, a Vale paga energia mais barata e conta com subsídios, incentivos, isenções e regimes tributários especiais desde o início da sua cadeia de produção, na geração de energia, até a exportação de produtos como o minério de ferro.
A falta de transparência para saber a real extensão desse emaranhado de benesses concedidas por diversos governos, porém, é total. Até hoje o Brasil não sabe o tamanho do buraco causado na arrecadação federal – e nas esferas estaduais – de todos os benefícios dados para mineradoras e siderúrgicas.
Estudos independentes de universidades, pesquisadores e organizações da sociedade civil e do terceiro setor, porém, estimam a conta em bilhões de reais.
É o caso de um estudo coordenado pelo Observatório da Mineração e publicado em maio, que revelou que, só na exportação do minério de ferro, o rombo total pode chegar a 1,26 bilhão de dólares por ano.
Para Alessandra Cardoso, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), que pesquisa subsídios para o setor mineral há anos, parte central do problema é que existem muitos subsídios não avaliados e sem transparência.
A Vale, inclusive, é beneficiária de uma série de regimes especiais. Com departamentos jurídicos e tributários robustos, grandes empresas como a Vale conseguem atuar para pagar o menor imposto possível e contestar na justiça dívidas, cobranças e multas.
“Tem um problema estrutural no Brasil de não rever e não avaliar subsídios que vem de longa data”, afirma Cardoso.
Para a assessora do Inesc, não há dúvida de que os subsídios atuais são excessivos, mas a sociedade brasileira não sabe qual é a carga tributária efetiva sobre o setor mineral, por exemplo, porque faltam estudos oficiais do governo e da Receita Federal para detalhar a questão.
A própria Receita, aliás, não computa como gasto tributário uma série de regimes e isenções concedidos para empresas como a Vale.
Além dos subsídios, incentivos e regimes especiais sem transparência alguma na sua aplicação, empresas como a Vale contam com várias brechas no sistema tributário brasileiro para, por exemplo, tentar reembolsar bilhões de reais no cenário de reparação do desastre de Mariana.
Outro dado muito relevante é que a dívida total da Vale com a União e estados como Pará, Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro ultrapassa R$ 44 bilhões.
Segundo dados da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), a dívida atual da Vale com o governo brasileiro ultrapassa R$ 41,4 bilhões, considerando todas as modalidades de dívida, sendo os benefícios fiscais disparado o principal, com R$ 39 bilhões, títulos em garantia ou suspensos por decisão judicial.
Em nota, a Vale disse que encerrou este ano o processo de venda das pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) de Mello, Glória e Nova Maurício, localizadas em Minas Gerais.
Na siderurgia, a Vale tinha uma joint venture com a ThyssenKrupp Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA) no Rio de Janeiro e com a Dongkuk Steel Mill Co. e a Posco na Companhia Siderúrgica de Pecém (CSP) no Ceará. A Vale disse que não tem mais participação na ThyssenKrupp CSA.
A mineradora informou que “vem realizando importantes investimentos em energia eólica e solar, com destaque para o projeto Sol do Cerrado, maior planta solar em construção no país, com capacidade instalada de 766 megawatts. O projeto produzirá, em média, 193 megawatts de energia por ano para as operações da Vale, o que corresponde a 13% da demanda para 2025. A Sol do Cerrado tem previsão para entrar em operação no fim de 2022”, disse a empresa.
Vale recebeu R$ 500 milhões de usina hidrelétrica que é sócia, mesmo interditada por sua própria lama de rejeitos
A central hidrelétrica de Risoleta Neves, conhecida como Candonga, em Rio Doce/Santa Cruz do Escalvado (MG), foi interditada em 2015 assim que foi atingida pela lama de rejeitos do rompimento da barragem de Mariana, de propriedade da Vale em sociedade com a mineradora anglo-australiana BHP.
A Vale é sócia majoritária, com a Cemig, da usina de Candonga. Mesmo interditada e sem gerar energia, a usina recebeu mais de R$ 500 milhões em repasses pelo Mecanismo de Realocação de Energia (MRE), criado para reduzir os impactos causados por momentos de escassez de chuvas, fazendo com que usinas em condições mais favoráveis mantenham outras afetadas pela crise hídrica em caso de necessidade.
Não é o que acontece com Candonga. E quem paga a conta desse mecanismo é o consumidor final.
O caso foi destacado pelo jornal Estado de S. Paulo em abril de 2021. A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) entrou na justiça para travar os pagamentos para o consórcio Vale/Cemig e exigir ressarcimento dos valores recebidos.
Após decisão inicial no Superior Tribunal de Justiça (STJ) favorável à Vale, a mineradora perdeu no colegiado do STJ e a mineradora se comprometeu a devolver R$ 781 milhões de reais em valores corrigidos até dezembro de 2022.
Perguntada pelo Observatório da Mineração sobre quanto foi de fato devolvido até agora e por que a Vale não se prontificou a não receber esses valores antes da ação judicial, a mineradora disse que “os valores foram integralmente quitados” pela Vale e Cemig.
Ainda segundo a mineradora, o compromisso proposto pela Vale à Aneel, de interrupção dos repasses via MRE, “não interferiria na discussão judicial entre o Consórcio e a Aneel sobre o MRE e, tampouco, conferiria direitos de ressarcimento ao Consórcio, à Aliança ou à Cemig”.
A Vale registrou que “pretensões idênticas àquelas manifestadas pela Cemig estão sob apreciação do Judiciário, na ação ajuizada pela Aliança Geração contra Samarco, Vale, BHP Billiton Brasil e Fundação Renova, sobre a qual ainda não há decisão”.
Minerais “essenciais”, fortes no portfólio da Vale, miram a “transição energética”. Violações costumam ser esquecidas.
Além do minério de ferro, outros produtos produzidos pela Vale são relevantes: foram 168 mil toneladas de níquel em 2021, metal considerado essencial para a “transição energética” e produzido pela Vale no Canadá e na Amazônia, no Pará, no projeto Onça Puma e 296 mil toneladas de cobre, produzido principalmente em Carajás (PA), na mina de Salobo.
O cobre também entra na lista dos minerais “críticos” e “estratégicos” para a mudança da matriz energética mundial e são usados fartamente na indústria de carros elétricos, liderada pela Tesla de Elon Musk.
O problema é que esses “minerais estratégicos” vem do tal “Sul Global”, o antigo “Terceiro Mundo”, em especial da América Latina e África, e trazem com eles uma infinidade de violações socioambientais e violações de direitos humanos.
O níquel de Onça Puma acumula um longo histórico de problemas causados ao povo indígena Xikrin no Pará. Os indígenas acusam a Vale, entre outras coisas, de contaminar o Rio Cateté, fundamental para o modo de vida dos indígenas. Diante dos fatos, a Vale foi obrigada a fazer um acordo com os Xikrin e iniciar um difícil processo de reparação.
Como a demanda por níquel está explodindo em todo o mundo e os esforços de Jair Bolsonaro e Arthur Lira para aprovar o PL 191, que autoriza mineração em terras indígenas, não obtiveram sucesso até o momento, a Vale retirou os requerimentos que tinha para minerar dentro da terra indígena Xikrin e fez com que as poligonais dos pedidos registrados na Agência Nacional de Mineração fiquem no entorno da TI.
A mudança continua implicando em potenciais impactos diretos e indiretos para o povo indígena.
Já o cobre da mina de Salobo também registra os seus problemas.
No início de março, por exemplo, o Ministério Público do Trabalho (MPT) ingressou com uma Ação Civil Pública na Justiça, exigindo que a Vale retire com urgência os 1.806 funcionários que trabalham em instalações localizadas abaixo da barragem Mirim, na mina Salobo, mostrou a Repórter Brasil.
O problema é similar ao que aconteceu em Brumadinho, quando 270 trabalhadores morreram após o rompimento da barragem. A alta letalidade se explica porque o refeitório da Vale ficava justamente no caminho previsto da lama de rejeitos em caso de rompimento, a chamada “zona de auto salvamento”. É o que está acontecendo em Salobo.
Carvão, impactos em série e necessidade da sociedade participar do debate
A cadeia global de produtos da Vale revela problemas também globais.
A Vale produziu 8,5 milhões de toneladas de carvão em 2021, 44% a mais que em 2020. A mineradora brasileira detém uma das maiores minas de carvão do mundo, em Moçambique, na África.
O carvão é o principal responsável pelo índice de até 7% das emissões globais dos gases que causam o efeito estufa via ação humana de responsabilidade da mineração e uma das fontes de energia mais poluentes do planeta.
Matéria especial publicada pelo Observatório em janeiro (em inglês), revela detalhes sobre a Vale ter se desfeito do negócio após décadas de lobby e os inúmeros conflitos deixados de herança para a população moçambicana, que nunca viu algo remotamente parecido com as promessas de “desenvolvimento” se cumprirem.
Em nota enviada para o Observatório, a Vale disse que concluiu a venda da mina de carvão Moatize e do Corredor Logístico Nacala (CLN) à Vulcan Resources em dezembro de 2021. Segundo a mineradora, “esta transação reforça o compromisso da Vale de reshape e descarbonizar seu portfólio de forma responsável, mantendo um processo de alocação disciplinada de capital”.
Para Otto Hebeda, da UFRJ, resolver o problema do carvão – algo que as empresas e os governos em todo o mundo tem falhado drasticamente – é essencial.
“Para reduzir o consumo energético é preciso reduzir o consumo de carvão mineral”, lembra, seja com eficiência energética na cadeia seja com outras fontes como o gás natural e a biomassa.
Mesmo com tanta tecnologia disponível, as medidas anunciadas pelas empresas e a efetividade dos processos ainda é uma incógnita.
“O quanto essas tecnologias irão conseguir ajudar na descarbonização…é muito cedo para ter essa resposta”, diz o pesquisador.
De modo geral, o debate sobre essas questões centrais precisa ser expandido e a sociedade precisa participar. Afinal, é literalmente o nosso presente e o nosso futuro que está em jogo.
“A gente precisa entender onde que a gente quer chegar. Que preço a gente quer pagar e como que a gente quer fazer isso. E para isso é preciso o debate. A sociedade não pode ficar à margem”, lembra Hebeda.