Ancestralidade em rede contra o racismo estrutural: povos e comunidades tradicionais de religião de matriz africana lutam por reparação

Por Sandra Silva*, para o Observatório da Mineração

“O povo ainda luta, o rio ainda corre”, citou Capitã Pedrina de Luz Santos, da Guarda de Moçambique de Nossa Senhora das Mercês do município de Oliveiras Minas Gerais (MG), também Seji Danjy do Nzo Atin Kaiango ua Mukongo (Candomblé de nação Angola-Muxikongo), de Juatuba (MG).

A líder espiritual faz parte da articulação Povos e Comunidades de Tradição Religiosa Ancestral de Matriz Africana (PCTRAM A) que luta pela reparação dos afetados pelo desastre da Vale que devastou Brumadinho (MG) em 2019.

O PCTRAMA nasceu no mesmo ano, meses depois do rompimento da barragem Mina Córrego do Feijão.

A rede é resultado da união de comunidades de Candomblé, Omolocô, Umbanda e Reinado dos municípios de Betim, Igarapé, Juatuba, Mário Campos, São Joaquim de Bicas e Mateus Leme em Minas Gerais.

“Nós, iniciados dentro do Candomblé, Umbanda ou Reinado, somos irmãos, formamos uma família dentro da nossa fé”, explicou Capitã Pedrina. Fazem parte da articulação 42 Unidades Territoriais Tradicionais (UTTs), com devotos de diferentes lugares. “[Na nossa fé] nós temos uma territorialidade que abrange vários territórios (lugares demarcados) diferentes”, apontou.

A líder afirma que o conceito de UTTs é pouco compreendido pelo poder público e pela justiça justamente por extrapolar o caráter físico e abarcar o plano espiritual.

O PCTRAMA representa os terreiros da Região 2 da Bacia Hidrográfica do rio Paraopeba. A conexão espiritual das religiões de matriz africana com a natureza é profunda. “O rio é importante. Para a gente ele é símbolo da presença da ancestralidade. O que está dentro dele, o que está nas suas margens e tudo aquilo que está ao seu redor”, explicou o ogan João Carlos Pio do Ilê Axé Alá Tooloribi (Candomblé de nação Ketu), de Juatuba (MG).

Monitoramentos apontam que o rio Paraopeba está contaminado com metais pesados. O rompimento da barragem é apontado como a principal causa da contaminação. É possível acompanhar o histórico da qualidade da água do rio Paraopeba no Boletim Informativo do Cidadão da Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam).

De acordo com a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, os mesmos são “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição”.

O ogan João Carlos Pio entende que os terreiros ultrapassam o aspecto religioso. “O terreiro é cultural e político. Então é isso que caracteriza as comunidades, a sua relação com o território, com a manutenção do seu modo de vida, do sagrado”, explicou.

A articulação conta com a Assessoria Técnica Independente (ATI) da Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas) desde 2019.

Marcados ancestralmente pela resiliência, os integrantes do PCTRAMA buscam a oportunidade de serem ouvidos e respeitados.

“Nós somos descendentes de povos que vieram escravizados para cá e viveram o terror e o caos da diáspora. A nossa tradição está marcada profundamente pela resistência, resiliência e pela crença firme de que a nossa ancestralidade é uma rede”, explicou Babá Edvaldo de Jesus do Ilê Axé Alá Tooloribi (Candomblé de nação Ketu), do município de Juatuba (MG).

Todas as fotos por Lucas Jerônimo / AEDAS / Divulgação

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Resiliência e protagonismo: a consulta é um direito

Em 25 de março de 2023, no auditório da Ordem dos Advogados (OAB), em Belo Horizonte (MG), o PCTRAMA lançou a segunda versão de seu inédito protocolo de consulta, documento que serve como instrumento de luta e defesa das comunidades tradicionais que integram a articulação.

A primeira versão do protocolo foi lançada durante a pandemia, no ano de 2020, de forma remota.

Essa é a primeira cartilha, a nível nacional, construída por povos de terreiro e Reinado.

A construção do protocolo é amparada pela legislação estadual e federal, além da Convenção 169 da OIT, que impõe ao Estado o compromisso de reconhecer e proteger os valores culturais, religiosos e sociais de povos e comunidades tradicionais.

“Somos também produtores de biodiversidade e agentes de sua proteção nesta região violentada por grandes empreendimentos do neoextrativismo”, afirma o PCTRAMA em seu protocolo de consulta.

No protocolo, os integrantes do PCTRAMA defendem que são atingidos pelo desastre de Brumadinho em diferentes frentes: na saúde física e mental, no acesso ao lazer e ao meio ambiente e nas relações socioassistenciais com as comunidades.

“Dói profundamente. Nos afeta, levando às lágrimas, perceber que o que nós podíamos fazer antes, hoje nós não podemos mais. Isso porque pensaram de maneira egoísta e capitalista em obter lucros, sem se importar com a devoção ou a fé de outros povos”, se emocionou Capitã Pedrina ao explicar como os cultos e atividades de terreiro estão prejudicados com a água contaminada. A preocupação é que os afluentes, que servem como alternativa à água do rio Paraopeba, também estejam contaminados com metais pesados.

“O mais pesaroso é que a Vale contratou empresas parceiras dela para fazer essa essa análise, e nós sabemos que é um acordo de cavalheiros. Essas empresas nunca vão afirmar contaminação”, denunciou.

Capitã Pedrina complementa que ainda não conseguiram que o governo adicione ao Sistema Único de Saúde (SUS) os exames necessários para constatar a contaminação humana, mas que “é sabido que várias pessoas estão com os corpos cheios de metais pesados, com a pele cheia de ferimentos”.

O documento significa luta e resistência. “O protocolo tem esse poder de protagonismo, de dizer o que somos e que ninguém vai dizer por nós, porque nós é que temos o saber ancestral e não é um técnico que vem de fora, que não é iniciado, que vai dizer. Ele é autodeclarado, autoaplicável e não está interferindo no poder de ninguém. É só o poder de dizer quem somos, lutando contra a invisibilidade”, explicou Babá Edvaldo de Jesus.

Ancestralidade contra o racismo estrutural

“As instituições de justiça querem nos representar, mas não nos escutam, não nos ouvem mesmo quando temos um protocolo de consulta”, denunciou o ogan João Carlos Pio.

O lançamento do protocolo de consulta contou com a participação da sociedade civil. No entanto, o evento quase foi sabotado pela Defensoria Pública de Minas Gerais (DPMG).

Em nota de repúdio, o PCTRAMA aponta como a DPMG voltou atrás, de forma injustificada, na decisão de ceder o espaço da Escola da Defensoria para a realização do evento, que estava sendo articulado há um mês.

O PCTRAMA foi informado da mudança de planos quatro dias antes do evento, no dia 21 de março de 2023. A notícia chegou na data de celebração das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé.

A situação simboliza os ataques sistêmicos que as comunidades tradicionais sofrem do Estado. “Esse ato provindo da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, enquanto instituição que responde ao Estado, se somam à outras ações igualmente racistas e violadoras de nossos direitos”, apontaram em nota de repúdio.

No trecho anterior se referiam a resolução conjunta Sedese/Semad Nº 01, de 04 de abril de 2022, que viola a Convenção 169 da OIT e regulamenta a consulta prévia em benefício de mineradoras e do agronegócio.

“A gente percebe que essa negativa da instituição [de permitir o lançamento do protocolo na Escola da Defensoria] é intercorrência de uma resolução do governo do estado de Minas Gerais, do governo Zema com a resolução de 2022”, denunciou Babá Edvaldo de Jesus. “Resolução que quer tirar dos povos tradicionais as prerrogativas apontadas na OIT. O protocolo de consulta dá protagonismo. E essa resolução do governo Zema quer tirar essa prerrogativa dos povos e comunidades e colocar nas mãos de técnicos”, concluiu.

A justiça e o Estado coordenam o acordo de reparação coletiva, mas pecam em compreender a diversidade dos povos e comunidades afetados. “A gente sente uma falta de entendimento muito grande. Eles demarcam linhas muito rígidas que reforçam a invisibilidade”, contou Babá Edvaldo de Jesus.

A Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais alegou que, por medidas de segurança, se considerou impossibilitada de sediar o evento. O motivo apresentado foi o considerável incremento no número de participantes, de “aproximadamente 200 pessoas, o que equivale ao dobro da capacidade do auditório da Instituição”.

O protocolo de consulta serve como uma ferramenta de resistência especialmente por garantir autonomia e protagonismo dos povos e comunidades tradicionais. Em um contexto em que as instituições estruturalmente falham em compreender e contemplar tais formas de vida, é a força coletiva que ganha forma e reivindica direitos.

“Nós precisamos fazer valer os nossos direitos, nós não podemos continuar vivendo como se estivéssemos numa colônia. Não podemos permitir a escravização do nosso ser. E vamos à luta. PCTRAMA presente!”, protestou Capitã Pedrina.

Falso progresso: obra do Rodoanel é criticada

“O Rodoanel é a abertura do Estado de Minas Gerais para que a mineração seja a grande soberana”, afirmou Babá Edvaldo de Jesus.

O Rodoanel, também conhecido como Rodominério, da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), teve seu contrato assinado no final de março de 2023 com a empresa italiana INC S.p.A. O projeto terá cem quilômetros de malha rodoviária e atravessará 11 cidades da região.

O acordo bilionário estabelecido entre a Vale e o Governo do Estado de Minas Gerais para reparar os danos causados em Brumadinho financiará a maior parte dos custos do projeto, que custará R$4,5 bilhões.

São mais de quatro anos desde o rompimento da barragem 1 da Mina Córrego do Feijão, causado pela Vale em Brumadinho (MG). A tragédia assassinou 270 pessoas em janeiro de 2019 e desestruturou todo o equilíbrio socioambiental da região.

A Vale estava ciente da fragilidade da barragem há, pelo menos, 16 anos antes do rompimento. A morosidade no processo de reparação é apenas mais uma das várias violências às quais as vítimas foram e são submetidas em quatro anos de tragédia.

O Acordo de Reparação Integral de R$ 37 bilhões foi firmado em fevereiro de 2021 entre governo de Minas Gerais, Ministério Público, Defensoria Pública e Vale.

Enquanto milhares de pessoas sobrevivem com os impactos da tragédia sem direito a reparação, o governador Romeu Zema utiliza os recursos, que deveriam ser dedicados às reparações sociais, econômicas e ambientais em um projeto que segue sem consultar as comunidades afetadas.

*Sandra Silva é jornalista pela Universidade de Brasília (UnB). Trabalha e tem afinidade com questões de direitos humanos e pautas socioambientais. Tem experiência de atuação junto a povos indígenas e comunidades tradicionais na Amazônia.

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