4ª e última reportagem da série do Observatório da Mineração e do Instituto Socioambiental (ISA) sobre mineração em terras indígenas mostra a desigualdade nas negociações entre indígenas e empresas no país que é o maior produtor mundial de minérios
A australiana Rio Tinto é uma das maiores empresas de mineração do mundo. Disputa tonelada a tonelada com a Vale o posto de maior produtora de minério de ferro do planeta.
E tem operações no Brasil, Canadá, Chile e Estados Unidos, entre outros países. O centro do projeto de minério de ferro da mineradora na Austrália fica na região de Pilbara, no oeste do país.
É lá que a Rio Tinto, em maio de 2020, destruiu cavernas sagradas milenares de povos indígenas datadas de 46 mil anos, em Juukan Gorge, área que abriga um conjunto de montanhas, formações rochosas e grutas e também está próxima ao Parque Nacional de Karijini. A repercussão gerou a queda do CEO da mineradora e a renúncia de diversos executivos.
A Rio Tinto explodiu as cavernas durante o projeto de expansão da sua mina de minério de ferro. O fato causou reação imediata na Austrália. Inicialmente, a empresa negou que os seus executivos “estavam cientes da importância cultural” do local para os povos indígenas.
O conjunto de cavernas e desfiladeiros de Pilbara é sagrado para os povos indígenas e constitui um dos mais relevantes sítios históricos e arqueológicos da Austrália e do mundo, com indícios contínuos de ocupação humana de milhares de anos, parte fundamental do quebra-cabeça científico que busca entender a história da Oceania e da humanidade.
A região viu um aumento exponencial na exploração minerária nos últimos anos. A produção aumentou incríveis 500% nas últimas duas décadas, de 200 milhões de toneladas de minério de ferro por ano para quase 1 bilhão de toneladas. “Isso teve um impacto devastador sobre a herança indígena”, afirma Paul Cleary, do programa indígena da Oxfam Austrália.
A mineração está na base da economia da Austrália, que é um dos maiores exportadores do mundo de minério de ferro, carvão, bauxita, chumbo, diamante, ouro e alumínio, entre outros.
Comparado com os Estados Unidos, o Canadá e o Chile, é na Austrália que a mineração ocupa o papel mais destacado na economia do país, o que traz impactos significativos para os povos indígenas.
A mineração representa mais de 5,4% do PIB australiano e emprega quase 150 mil pessoas.
Vem desse colosso econômico o enorme poder que as mineradoras têm no governo para que os seus interesses sejam atendidos. Uma relação público-privada questionada por pesquisadores e ativistas.
Escrutínio público e mudanças legislativas
A National Native Title Council (NNTC), órgão que representa os povos indígenas da Austrália na questão dos títulos de terras, fez pressão pela demissão do CEO da Rio Tinto, Michael L’Estrange, e comemorou a sua saída.
“Não só assistimos ao trágico roubo do patrimônio cultural em Juukan, mas a forma como o conselho da Rio Tinto lidou com o desastre foi profundamente decepcionante e um insulto aos proprietários tradicionais [os indígenas] que continuaram a agir de boa-fé, mesmo depois que seu patrimônio foi intencionalmente destruído”, afirmou Jamie Lowe, da NNTC e também representante do povo indígena Gundjitmara Djabwurrung.
Para Lowe, a mineradora finalmente percebeu que os executivos responsáveis pelo desastre da destruição das cavernas não poderiam ser os mesmos incumbidos de repará-lo. “É uma pena que eles só executem essas reformas necessárias quando estão sob intenso escrutínio público ou dos acionistas”, afirmou.
Para mudar o cenário e evitar novos desastres, a NNTC tem advogado por uma mudança legislativa que favoreça os povos originários australianos diante das regras tão desiguais em vigor atualmente. “É fundamental que vejamos uma reforma legislativa significativa. Sem isso, não importa quantas mudanças de liderança veremos no setor de mineração”, disse Lowe.
O caso levou o governo da Austrália Ocidental a acelerar seu novo Projeto de Herança Cultural Aborígine 2020 para substituir o desatualizado Ato de Herança Aborígine de 1972, que permitiu que as cavernas fossem legalmente destruídas contra os desejos dos proprietários tradicionais.
Iniciativas estão em curso tanto para tentar garantir que episódios como esse não ocorram novamente quanto para resgatar artefatos históricos dos indígenas australianos que estão em outros países. Mas há um ceticismo justificado.
“As mudanças propostas não impedirão que [um caso como o de] Juukan aconteça novamente. Na verdade, fica mais fácil. O novo projeto precisa ser coescrito por representantes das Primeiras Nações para preservar nosso patrimônio cultural de acordo com os padrões de direitos humanos”, defende Kado Muir, presidente da NNTC, antropólogo, arqueólogo e liderança indígena histórica da comunidade Ngalia.
Investidores tem papel central em cobrar mudanças
A Rio Tinto tinha recebido permissão legal para demolir as cavernas em Juukan Gorge em 2013, mas foi fortemente criticada por não mudar de planos quando a importância arqueológica dos locais ficou clara.
Alguns investidores criticaram publicamente as ações da Rio Tinto e investigações mostraram que a mineradora estava ciente dos riscos. Um desses investidores foi o Hesta, um fundo de pensão australiano para profissionais de saúde.
“A responsabilidade pela destruição em Juukan Gorge deve recair nos níveis mais altos da Rio Tinto, mas uma questão mais ampla e sistêmica de como a empresa e o setor de mineração negociam acordos com os proprietários tradicionais precisa ser tratada com urgência”, disse o fundo, que detém US$ 182 milhões em ações da mineradora.
A pressão do mercado costuma ser a única que as mineradoras aceitam. É o caso da Vale, Glencore e Anglo American, que foram excluídas do portfolio do Fundo Soberano da Noruega, maior do mundo, com mais de US$ 1 trilhão sob a sua gestão. Ou o de uma coalização de 110 fundos de investimento também trilionária que tem colocado as mineradoras sob escrutínio público, obrigando-as a rever práticas danosas ao meio ambiente e às comunidades no seu entorno.
Para Paul Cleary, da Oxfam Austrália, as evidências do inquérito de Juukan Gorge forneceram um “raro insight” sobre o comportamento agressivo das mineradoras em relação às comunidades indígenas.
O povo Guruma, por exemplo, enfrenta intimidação constante e ameaças legais quando tenta defender os seus direitos, relata. “No fim, as empresas podem destruir rotineiramente o patrimônio aborígine, por meio de procedimentos governamentais que permitem que essa destruição ocorra”, critica.
CEO foi demitido e mineradora busca “reconciliação”
Respondendo ao desastre, a Rio Tinto nomeou Ben Wyatt, ex-ministro do estado da Austrália Ocidental para os assuntos aborígenes, como diretor, em abril de 2021.
“O que aconteceu em Juukan foi errado e estamos determinados a garantir que a destruição de um patrimônio de tão excepcional importância arqueológica e cultural nunca mais ocorra em uma operação da Rio Tinto. Também estamos determinados a reconquistar a confiança dos povos Puutu Kunti Kurrama e Pinikura e de outros proprietários tradicionais”, disse a Rio Tinto, em comunicado após o dano causado e a pressão recebida.
Não é para menos: cerca de 90% do lucro da Rio Tinto em minério de ferro vem da mina em Pilbara.
Escavações arqueológicas mostraram a importância da região atingida. Em um dos locais foi descoberto o exemplar mais antigo conhecido de uma ferramenta na Austrália – um osso de canguru afiado que remonta a 28 mil anos – e uma trança de cabelo de 4 mil anos, que teria sido usada como cinto.
Testes de DNA do cabelo mostraram uma ligação genética com os ancestrais dos povos indígenas que ainda vivem na área. Também foi encontrado um dos exemplares mais antigos de pedra para afiar já descobertos na Austrália.
Reafirmando o seu interesse em “reatar laços”, a Rio Tinto se desculpou. “Pedimos desculpa ao povo Puutu Kunti Kurrama e Pinikura (PKKP). Lamentamos o sofrimento que causamos. O relacionamento com o PKKP tem muita importância para a Rio Tinto, pois trabalhamos juntos há muitos anos. Continuaremos a trabalhar com o PKKP para aprender com o que aconteceu e fortalecer a nossa parceria. Com urgência, estamos a rever os planos de todos os outros locais na área do desfiladeiro de Juukan”, disse a mineradora.
A PKKP Aboriginal Corporation, que representa os povos Puuntu Kunti e Pinikura, disse em relatório que a destruição dos locais sagrados pela Rio Tinto foi “chocante e insensível”, parte de um contexto mais amplo de destruição da cultura ancestral, agora “em pedaços”.
Isso causou “profunda angústia” aos povos indígenas, afirmou. As cavernas eram importantes não somente para este povo como para as futuras gerações e continham parte da própria história da Austrália e da humanidade.
Desde então, a organização tem se somado aos esforços de mudanças nas leis e continua a pressionar por mais proteção para locais sagrados e mais respeito aos direitos indígenas e às heranças culturais de inestimável valor material e imaterial que carregam.
“Nós esperamos que essa experiência sirva de exemplo para um relacionamento mais aberto e construtivo entre os indígenas, a Rio Tinto e o setor extrativo em geral, não apenas para os indígenas em Pilbara, mas para outros ao redor da Austrália”, afirma a PKKP.
Para Bruno Milanez, pesquisador da Universidade Federal de Juiz de Fora que tem se dedicado a entender os impactos da mineração em terras indígenas fora do Brasil, é perigoso que as mineradoras assumam o papel do Estado, oferecendo empregos e serviços públicos como saúde e educação. “Isso gera uma dependência muito forte dos indígenas em relação à mineradora. E a aumenta ainda mais o poder de barganha dela para expandir seus negócios no futuro”.
O caso emblemático da Rio Tinto e as cavernas de Juukan Gorge mostra que não há caminho fácil na relação entre indígenas e mineradoras e que muito precisa mudar para que direitos mínimos sejam garantidos.
No Brasil, um caso em andamento guarda alguma semelhança com o exemplo australiano. A cervejaria Heineken quer instalar uma fábrica que pode soterrar o sítio arqueológico onde foi encontrado o esqueleto mais antigo das Américas, conhecido como Luzia. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que precisa autorizar a obra, demonstra preocupação e cobra autoridades envolvidas no caso.
Poder das mineradoras
Um exemplo do poder político e econômico das mineradoras na Austrália é o fato de que, até 1975, títulos de propriedade obtidos por meio da remoção de Povos Aborígenes, expropriação ou outros meios violentos eram considerados legais. Não havia nenhum impedimento legal para que projetos minerários fossem feitos dentro de terras indígenas, mesmo quando isso incluía a expropriação.
A justiça tem papel preponderante nisso. Em questões sobre mineração, a Suprema Corte australiana costuma decidir que os interesses comerciais prevalecem sobre interesses tradicionais dos Povos Aborígenes. Ou seja: os indígenas acabam subjugados pelo poder econômico, cenário comum em todos os países analisados pela série de reportagens sobre o assunto produzida pelo ISA.
A história diz muito sobre isso.
Entre 1910 e 1970, as políticas governamentais de assimilação levaram entre 10% e 33% das crianças aborígenes australianas a serem removidas à força de suas casas. Somente em 1967, os australianos votaram para que as leis federais também se aplicassem aos aborígenes. A maioria deles não tinha cidadania plena ou direitos de voto até 1965.
Mesmo com os indígenas australianos representando cerca de 800 mil pessoas no país hoje, 3% da população, que falam 250 línguas distintas, na prática pouco mudou.
Desde os anos 1970, muitas leis, como a Lei de Direitos à Terra Indígena (ALRA, de1976), Lei de Título de Nativo (NTA, de1993) e a Lei de Alteração de Título de Nativo (NTAA, de 1998), que criaram os Acordos de Uso de Terras Indígenas (ILUAs), tentam estabelecer alguns direitos indígenas sobre concessões de mineração.
Além disso, a legislação estadual pode conceder direitos sobre alguns minerais subterrâneos em terras indígenas ou apenas garantir consulta prévia, sem caráter obrigatório, no entanto.
Paul Cleary, da Oxfam Austrália, explica que as mineradoras devem “negociar de boa-fé” com as comunidades indígenas afetadas por suas propostas. Mas, se o acordo não for alcançado dentro de seis meses, a questão vai para um tribunal criado pela Lei de Título Nativo.
“Na maioria dos casos, o Tribunal aprova a proposta. A situação que a lei gerou é definitivamente uma melhoria, embora os direitos garantidos aos povos indígenas sejam muito tímidos”, avalia Cleary.
É dessa forma que o princípio do consentimento livre, prévio e informado, um dos elementos-chave da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, basicamente não é respeitado na Austrália.
Propostas de mudanças nas normas sobre o assunto que garantiriam às comunidades indígenas o direito de vetar projetos na fase de exploração foram vistos como “politicamente inatingíveis”, afirma Cleary.
O pesquisador acredita que uma maneira de começar a mudar a situação seja pressionar por mais transparência, porque as mineradoras conseguem muitos acordos sob sigilo, além de manter eventuais líderes indígenas dissidentes afastados. Outra cobrança é pelo pagamento de royalties mínimos aos povos indígenas, o que hoje sequer acontece.
Para Bruno Milanez, o caso da Austrália é emblemático e mostra bem que aos indígenas é garantido apenas o direito de “dizer sim” aos projetos minerários, já que não tem poder de veto. Existe apenas um verniz de “liberdade” e “autonomia” dado aos aborígenes.
“Com isso não há o menor equilíbrio nas negociações. O que os indígenas conseguem fazer é demandar alguma condicionante, uma compensação mínima, mas está longe de ser um acordo entre partes iguais”, afirma Milanez.
A grande dependência econômica da mineração observada na Austrália faz com que “o Estado seja um promotor direto da mineração, com interesse na expansão das atividades extrativas”.
Na verdade, diz Milanez, as leis australianas evoluíram no sentido de dar mais segurança jurídica para as mineradoras e evitar que sejam questionadas. “Essa foi a preocupação principal, e não proteger os direitos indígenas”, critica.