OCDE implanta “guilhotina regulatória” para a mineração em conjunto com a ANM enquanto exige condicionantes ambientais do Brasil

Por Erick Gimenes*

A Agência Nacional de Mineração (ANM) tem feito mistério sobre o que já efetivou das recomendações feitas pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento (OCDE) para passar uma “guilhotina regulatória” no setor mineral.

As sugestões foram costuradas ao longo dos últimos dois anos e meio, a partir da assinatura de um acordo de cooperação entre ambas, e tomaram forma em um relatório apresentado pela OCDE em fevereiro do ano passado.

Uma das principais diretrizes propostas é a simplificação do licenciamento, sob a justificativa de que é preciso garantir mais segurança jurídica e eficiência aos processos regulatórios para alavancar investimentos no setor.

Houve, por exemplo, sugestões para a adoção de autodeclaração para requisição de pesquisas, implementação de processos automatizados e autorizações instantâneas em alguns casos.

O projeto para derrubar as “barreiras regulatórias” do setor mineral é parte do processo de negociação da entrada do Brasil no clube dos países ricos.

O ingresso na OCDE é um desejo político que tem permeado diferentes administrações federais nas últimas décadas, com todos dispostos a cumprir as exigências para entrar na entidade.

Sem deixar claro se era parte do acordo ou não, a ANM passou a modificar regras na mesma linha das recomendações da OCDE: desde 2021, a requisição de pesquisa mineral passou a ser feita online e de forma autodeclaratória, por exemplo, e a agência passou a conceder a Guia de Utilização para o minerador em fase de pesquisa sem a necessidade de uma vistoria presencial e antes mesmo do licenciamento ambiental.

Foto de destaque: Daniel Rocha / Público.pt

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Guilhotina regulatória sugerida pela OCDE segue sendo implementada pela ANM

Questionamos a ANM sobre quais recomendações da OCDE, efetivamente, foram absorvidas. A agência nos enviou uma lista curta, na qual cita a implantação do protocolo digital, de leilão de áreas disponíveis, a implementação de concessão automática de autorizações de pesquisas, consolidação de normas relacionadas à segurança de barragens e elaboração de Planos Executivos. Pedimos acesso a esses Planos Executivos, mas o órgão negou.

Embora não se saiba exatamente quais medidas de simplificação do licenciamento propostas pela OCDE foram adotadas e quais estão previstas, é possível notar algumas pistas ao observar a agenda regulatória da ANM para o biênio 2022/2023.

Estão programados, por exemplo, vários projetos internos para “desburocratizar” e “simplificar” procedimentos, como a previsão para “facilitar” a requisição de autorização e a entrega de relatórios de pesquisas e para reduzir o “fardo regulatório” nos processos de outorga para o Regime de Concessão de Lavra. No entanto, a ANM ressalta que nenhuma recomendação do organismo internacional foi descartada.

Ainda segundo a ANM, um monitoramento das ações da agência entre 2020 e 2022 revela que “as ações de modernização e simplificação procedimental resultaram em redução de fardo regulatório de cerca de 2 bilhões de reais no período”.

Focada no resultado econômico, a agência parece ignorar os outros efeitos relevantes da desregulação em curso.

Relatórios da OCDE são contraditórios e apontam direções distintas na entidade

As recomendações da OCDE para a mineração contradizem um outro relatório, da própria OCDE, sobre avaliação do desempenho ambiental do Brasil com recomendações para o país, publicado em 2021, que incluiu críticas, por exemplo, ao projeto de licenciamento ambiental em curso no Congresso (PL 2159/2021).

O professor Luis Enrique Sánchez, da área de planejamento e gestão ambiental da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), afirma que há contradições evidentes entre os dois relatórios. Ele foi consultado pela OCDE para a produção de ambos.

“A OCDE é uma organização intergovernamental, mas naturalmente as decisões são tomadas por pessoas, por representantes de governo. Como todos os governos, existe uma multiplicidade de visões. No âmbito de um país, existem políticas e leis que são contraditórias. Em organizações intergovernamentais algo semelhante acontece. É o que observamos se lermos os dois documentos da OCDE. Me parece que o desenvolvimento de um e de outro não foi coordenado”.

Um dos sinais difusos do grupo de países ricos, segundo o professor, diz respeito aos impactos socioambientais. A própria organização cobra medidas do Brasil para reduzi-los no relatório ambiental, mas ignora as consequências de uma vasta simplificação do licenciamento.

“Há, evidentemente, uma série de procedimentos que poderiam ser simplificados, mas essa necessidade de simplificação tem sido vista por alguns setores como uma oportunidade de praticamente anular o licenciamento. A simplificação pode se dar nos empreendimentos de pequeno porte, mas há um risco grande de isso ser ampliado indevidamente a empreendimentos cujos impactos não são locais e podem ser significativos. Eles podem fracionar os empreendimentos para fugir do licenciamento, por exemplo. Isso em certa medida já é feito, mas seria facilitado com procedimentos simplificados”, diz Sánchez.

Ele critica a adoção de procedimentos autodeclaratórios pela ANM. “Infelizmente a autodeclaração, em outros setores, tem se mostrado de baixa credibilidade, de baixa confiança. É o que acontece com a declaração de boa-fé da procedência do ouro. Com esse tipo de comportamento, já dá para se desconfiar de início de qualquer tipo de autodeclaração. Esse, sim, é um ponto que deveria ter um debate muito mais aprofundado”.

Para o professor, faltou à OCDE se aprofundar no contexto infralegal brasileiro para evitar avaliações equivocadas que possam gerar consequências contraditórias. “Pela forma como eles conduziram a avaliação, o tempo e recursos disponíveis, eles não fizeram um estudo aprofundado, exaustivo, de como funcionam as políticas relativas a licenciamento e avaliação de impactos são implementadas, na prática. Na avaliação deles, por exemplo, a participação pública nos processos decisórios atende às diretrizes da OCDE. Formalmente, de fato atende. Mas, na aplicação prática, é muito diferente. Existem vários estudos acadêmicos que demonstram as várias deficiências da participação pública no Brasil nesses processos relativos ao licenciamento”, afirma.

Procurada pela reportagem do Observatório para comentar o trabalho com a ANM e as contradições entre os dois relatórios, a OCDE não se manifestou.

A parceria em curso com agência regulatória brasileira tem impacto direto em questões políticas e estratégicas relevantes. Enquanto o governo Lula está alinhando com os Estados Unidos o Grupo de Trabalho criado para explorar minerais críticos, como detalhou recentemente o Observatório da Mineração, outros países e blocos se movimentam para garantir o suprimento desses minerais essenciais para os próximos anos. A regulação da mineração é essencial para essas parcerias.

Esta foi a motivação de uma visita da vice-presidente da Comissão Europeia, Margrethe Vestager, à Brasília na semana passada. Katherine Tai, representante comercial dos Estados Unidos, também visitou a capital brasileira recentemente com o mesmo objetivo: aprofundar a parceria para o suprimento de minerais críticos.

Entre os anúncios da Comissão Europeia para minerais críticos, consta que haverá um teto de 65% de importação para qualquer matéria-prima vinda de um único país fora da UE, a meta de extrair, na região, 10% das matérias-primas críticas que consome e reciclar mais 15%. A UE também pretende aumentar o processamento para 40% de suas necessidades até 2030.

Meio ambiente é visto como empecilho pela OCDE e ANM. Clube dos países ricos quer “mostrar os efeitos positivos da mineração”.

Eugênia Rosa Cabral, professora da Universidade Federal do Pará e especialista em lobby e regulação ambiental, critica a flexibilização de regras e o foco mercantil das ações conjuntas da ANM e OCDE em prejuízo do meio ambiente.

“Eu sou terminantemente crítica em relação a flexibilização de regras ambientais, porque isso só tende a criar mais problemas. Você flexibiliza para quê? Em benefício de quem? O problema é tratar a mineração como uma atividade de suma importância para o Brasil, uma coisa quase que de utilidade pública, com uma função social muito importante. Aí você tem o dilema: se é uma atividade econômica tão importante, tão estratégica, que faz com que empresários e o próprio governo se mobilizem para isso, então é muito difícil você discutir como você vai regular essa atividade pautando a questão ambiental”.

No relatório entregue à ANM, a OCDE cita que há uma “percepção negativa” em relação à mineração no Brasil e que é preciso “mostrar os efeitos positivos das atividades para a população”. Isso é traduzido na recomendação para “assegurar a implementação das disposições do Programa Mineração e Desenvolvimento que visam melhorar a percepção do público em relação ao setor de mineração e realizar avaliações periódicas de seu impacto para complementar e aprimorar a estratégia”.

O PMD é um programa estratégico lançado pelo governo de Jair Bolsonaro com mais de 100 metas colocadas em prática até o fim da sua administração, o que inclui mineração em terras indígenas, faixas de fronteira e liberação para exploração de minerais “críticos”. Como o Observatório da Mineração mostrou em dezembro de 2020, as metas do PMD foram literalmente ditadas por representantes de mineradoras e entidades patronais do setor mineral.

Cabral julga ser muito difícil cumprir essa recomendação, dada a essência da atividade mineradora.

“É muito difícil você desmistificar a imagem da mineração depois do que ocorreu em Mariana, em Brumadinho, da questão em Barcarena, Belo Sun, os diversos problemas na Amazônia. Eu acho muito curioso a OCDE dizer que precisa desmistificar, mudar a imagem da mineração, porque a mineração é isso. Na essência, ela causa significativo impacto ambiental. Ponto. E ela tem uma característica muito importante que é a localização inelástica. Ou seja, há uma rigidez locacional dela. Se você tem bauxita em uma região da Amazônia Legal próxima de territórios indígenas, a bauxita é lá, não tem como carregar de lá. A decisão é explorar ou não explorar a bauxita. Ou seja, você decide se vai ou não dizimar os povos indígenas. Porque é inevitável o impacto que você tem no meio ambiente físico e na vida das comunidades. É inerente à atividade”, afirma Cabral.

Pesquisadores defendem autonomia do Brasil e mais regulação sobre o setor mineral

A professora defende que é preciso que o Brasil exerça sua autonomia para avaliar individualmente as recomendações feitas por organismos externos como a OCDE e acatar apenas as que julgar benéficas para a população geral.

“Há, claro, uma força desses organismos multilaterais, mas ao mesmo tempo temos autonomia no plano doméstico para calibrar o peso. A política doméstica é muito importante e é no âmbito dela que você estabelece o contraponto. Os organismos internacionais continuam pontuando, pautando, definindo regras que às vezes são boas, às vezes nem tanto. Portanto, cabe ao Estado, aos vários níveis de poder no Brasil e à sociedade brasileira estabelecerem o contraponto. Se o governo brasileiro tiver uma política que seja absolutamente construída à luz desses nortes dados de fora para dentro, então não tem como se pensar em autonomia. É o que as elites locais querem”, diz.

Fabio de Sa e Silva, professor da Universidade de Oklahoma (EUA) com mais de 15 anos de experiência na formulação e análise de políticas, ressalta que a mera adesão do Brasil à OCDE tem consequências antagônicas, como a perda de soberania nacional em troca de acesso a mercados globais.

“Fazer parte da OCDE pode trazer algumas vantagens para o Brasil (em tese a adoção de padrões compatíveis com os das economias avançadas daria maior acesso a esses mercados), mas também traz um ônus, pois reduz significativamente o espaço que o país tem para formular diversas políticas em áreas como social, econômica e ambiental”, pontua Silva.

O professor lembra que o objetivo primordial da OCDE sempre foi claro: o de fomentar o livre comércio e investimentos. Ou seja, as ações são pautadas no sentido de promover a “liberalização/desregulação de atividades econômicas”, e não necessariamente na proteção do meio ambiente e de populações afetadas, de acordo com Silva.

Ele diz ter boa expectativa em relação ao governo Lula, que tem feito ponderações para seguir com o processo para participar da OCDE. Em encontro com o chanceler da Alemanha, Olaf Scholz, no fim de janeiro, o presidente afirmou estar disposto a discutir os termos do ingresso com a condição de que o Brasil não participe como “um país menor”.

“O acesso à OCDE não parece ser prioritário no governo Lula, mas também não há sinal de que as negociações serão interrompidas. De todo modo, na medida em que, sob Lula, o Brasil não apenas recupera a sua soberania, mas também o seu compromisso com o desenvolvimento e a sustentabilidade, espera-se que nas futuras negociações de acesso a essa organização o país saiba navegar melhor esses requisitos e se posicionar com mais altivez diante daquilo que, sob a ótica do interesse público, não seja admissível. Para um país que viveu e ainda vive o trauma de Brumadinho e dos garimpos em terras Yanomami, é óbvio que não se pode abrir mão de poder regulatório sobre a indústria mineral; ao contrário, é preciso recuperar esse poder”, avalia Silva.

*Erick Gimenes é repórter freelancer com trabalhos para G1, Jota, Brasil de Fato, The Intercept Brasil e outros.

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