“Nós não precisamos de mineração, mas de território para produzir alimento orgânico”, entrevista inédita de Merong Kamakã, encontrado morto em Brumadinho

Texto: Maurício Angelo
Foto: Isis Medeiros
Entrevista: Gabriela Sarmet e Isis Medeiros

O cacique Merong Kamakã, 37 anos, liderança de uma retomada em Córrego de Areias, Brumadinho (MG), foi encontrado morto na manhã da última segunda-feira com indícios de enforcamento. A Polícia Militar informou que a causa da morte foi suicídio. A Polícia Civil de Minas Gerais, porém, não confirmou a informação e diz que está investigando o caso em conjunto com a Polícia Federal.

O sepultamento ocorreu na madrugada desta quarta, no território, 06 de março. A área em que o cacique vivia com seu povo desde outubro de 2021 está em litígio com a Vale, que move uma ação de reintegração de posse e, por causa disso, tentou impedir o sepultamento na justiça, que atendeu ao pedido da mineradora. O sepultamento, porém, ocorreu antes mesmo que a comunidade soubesse da decisão judicial. Diante dos fatos, a Vale recuou.

Merong Kamakã era uma respeitada liderança indígena tanto na luta pelos direitos do seu povo, Kamakã-Mongoió, quanto na luta de outros povos indígenas, como os Xokleng, Kaingang, Guarani, Xukuru-Kariri, Pataxó, Pataxó Hã-Hã-Hãe, entre outros.

Em abril de 2022, Merong Kamakã concedeu uma entrevista ao Observatório da Mineração durante o Acampamento Terra Livre em Brasília. Diante do seu falecimento, em respeito à sua memória, publicamos a entrevista inédita.

Kamakã relata as dificuldades que o seu povo viveu durante a pandemia e alerta que, caso a humanidade siga destruindo a natureza, outras doenças virão. O cacique afirma que sofria ameaças de seguranças da Vale, intimidação, que o povo indígena era vigiado por drones, acusa a Vale de se apropriar do território, incluindo as nascentes de água.

“Um mês depois os seguranças da Vale nos descobrem (onde estávamos) e assim começa as repressões. Chegamos ali por causa da água potável. A gente vem passando ameaças com drone, seguranças que vão em peso nos intimidar. Para nós indígenas, não estamos invadindo nada de ninguém, porque a terra, nem a mata, nem a água pode ser vendida. O criador, nosso grande Espírito deixou para que nós pudéssemos viver. E com o passar do tempo, no desenrolar dessa luta, a gente descobre que a mineradora está comprando todas as áreas de nascente da região”, afirma Kamakã.

Para o cacique, a necessidade de mineração e do plantio de soja transgênica, por exemplo, precisa ser urgentemente revisto pela sociedade. “A gente precisa de território, de produzir alimento orgânico para ficar aqui no nosso país”, ressaltando a agricultura familiar praticada por seu povo.

O cacique afirmou, na época, que “se for preciso morrer na luta pelo território eu vou morrer, mas eu não saio dali. Porque eu sei o que o meu povo passou na pandemia. (…) Quem vai fazer a recuperação ambiental será nós, que somos originários. Território é para ser preservado com floreta sustentável. Chega de mineração. Acorde o povo brasileiro que está dormindo. Essa luta não é só nossa, é de todos”, disse.

Merong Kamakã afirma, por fim, que o seu povo é reprimido e perseguido pela Vale, chama a mineradora de assassina e pede a saída da Vale do território. Assista a entrevista completa abaixo.

O Observatório da Mineração solicitou um posicionamento da Vale, não enviado até a publicação desta matéria. O texto será atualizado assim que a mineradora se manifestar. À Agência Brasil, a Vale disse que o terreno ocupado pelos indígenas em Brumadinho se destina à recuperação ambiental e se tornou objeto de discussão na Justiça. “A Vale lamenta a morte do cacique Merong e se solidariza com seus familiares e a comunidade indígena”, diz a empresa.

Nota do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) lembra que, no relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2022, a média de suicídios indígenas é três vezes maior que a população em geral, “na medida também que avançam os processos de violências contra os territórios, em especial os ainda não demarcados ou regularizados”.

Para o Cimi, é necessário que todas as possibilidades sobre a morte de Merong Kamakã sejam investigadas com rigor e seriedade por parte do poder público. “Mas sem perder de vista que os suicídios indígenas também devem ser vistos como um processo de violência contra os povos originários enquanto um projeto de extermínio. Os povos indígenas não estão se suicidando, estão sendo suicidados. Pois antes da morte acontecer, a sociedade já os matou muito antes e por fragmentos. Os matam quando negam o território, quando negam a possibilidade de viver a espiritualidade, os matam quando negam seus direitos, quando os ameaçam e os constrangem, os matam quando roubam a possibilidade de ser sujeito e coletivo”, ressaltam.

Atualização: a Vale enviou a seguinte nota ao Observatório da Mineração às 18:09h desta quarta (06).

A Vale reitera seu pesar pelo falecimento do cacique Merong Kamakã e se solidariza com seus familiares e a comunidade indígena. Jamais houve, por parte da Vale, qualquer tipo de ameaça ou violência aos indígenas, uma vez que a empresa repudia esse tipo de ação.

A ação de reintegração de posse decorre de uma ocupação ocorrida em 2021 em uma área pertencente à Vale. Essa área está destinada para fins de compensação ambiental. A Vale busca uma solução para a questão, em conjunto com a comunidade, dentro da legalidade. Por fim, a Vale reitera que tem como compromisso atuar alinhada ao respeito aos direitos humanos.

AJUDE A MANTER O OBSERVATÓRIO

O Observatório da Mineração precisa do apoio dos nossos leitores com o objetivo de seguir atuando para que o neoextrativismo em curso não comprometa uma transição energética justa.

É possível apoiar de duas formas. No PayPal, faça uma assinatura recorrente: você contribui todo mês com um valor definido no seu cartão de crédito ou débito. É a melhor forma de apoiar o Observatório da Mineração. Aceitamos ainda uma contribuição no valor que desejar via PIX, para o email: apoie@observatoriodamineracao.com.br (conta da Associação Reverbera).

Siga o site nas redes sociais (Twitter, Youtube, Instagram, Facebook e LinkedIn) e compartilhe o conteúdo com os seus amigos!

E buscamos novos parceiros e financiadores, desde que alinhados com o nosso propósito, histórico e perfil. Leia mais sobre o impacto alcançado até hoje pelo Observatório, as aulas que ministramos e entre em contato.

Sobre o autor