Entrevista: “é preciso mudar o nosso próprio modo de desenvolvimento”, afirma pesquisador da UnB sobre os riscos que a transição energética enfrenta

Por Pedro Sibahi e Maurício Angelo*

O lobby do setor mineral, a pressão da indústria de combustíveis fósseis para que o mundo siga dependente de petróleo, carvão e gás e o greenwashing histórico que eventos como a COP proporcionam, a despeito da sua relevância, oferecem também janelas de oportunidade para pensar o cenário amplo e urgente da transição energética.

Os riscos de seguirmos patinando em soluções paliativas e insuficientes, ignorando questões centrais enquanto a crise climática se aprofunda, é imenso. Na entrevista a seguir, Alexandre Strapasson, professor do Centro de Desenvolvimento Sustentável (CDS) da Universidade de Brasília (UnB) e PhD em Ciências Ambientais pelo Imperial College de Londres, oferece uma perspectiva crítica do panorama complexo no qual o mundo se encontra.

Strapasson reconhece que “o jogo é pesado” e o setor de fósseis faz de tudo para manter seus negócios sem interferências. Ao mesmo tempo, parte do setor mineral, que tem forte influência sobre decisões legislativas, tem evitado fomentar discussões nas COP’s por ver riscos aos negócios.

Mudar o modelo de desenvolvimento global fiado no alto consumo de energia e carbono, porém, é possível e a única forma de evitar um colapso climático.  

O caminho passa tanto por melhorar e calibrar a regulação do setor mineral, garantindo o direito de comunidades afetadas, como por reduzir a demanda de produtos do setor mineral com eficiência energética, o desenvolvimento de tecnologias menos dependentes de minerais críticos e o aumento da reciclagem de componentes, afirma Strapasson, que também foi Pesquisador do Belfer Center da Universidade de Harvard e Professor Visitante do IFP School em Paris e é especialista em mudança do clima, transição energética, tecnologias de emissões negativas, biomassa e uso do solo, modelagem de sistemas integrados, educação ambiental, inovação tecnológica e dinâmicas globais.

Leia a entrevista completa.

Observatório da Mineração – Se o mundo precisa tanto mudar a matriz energética fóssil para uma matriz renovável e limpa e os minerais críticos (cobalto, níquel, lítio e cobre, entre outros) são essenciais nesse processo, por que a mineração não ocupa papel central nas discussões ainda? Como você avalia os debates da COP 28 nesse sentido?

Alexandre Strapasson – A Conferência das Partes é uma espécie de arena, onde diferentes interesses estão envolvidos. Em tese, todos os países membros deveriam buscar uma rápida e efetiva descarbonização da economia global, mas nem sempre é assim que as coisas funcionam. As decisões são tomadas por consenso e há fortes resistências a mudanças mais céleres em setores tradicionais e de alto impacto econômico, como o setor de petróleo, gás natural e carvão mineral. Um marco importante da COP28 em Dubai, entre outros, foi a inclusão do termo transitioning away from fossil fuels no documento final. Isso é um compromisso oficial da necessidade de nos afastarmos dos combustíveis fósseis nos sistemas de energia, embora ainda não tenham sido incluídas metas efetivas para sua eliminação gradual, ou seja, metas de phase out.

O resultado poderia ter sido melhor? Sim, mas para quem acompanha as COPs sabe que isso foi um passo relevante. Ao mesmo tempo, essa transição demandará novas tecnologias, muitas delas altamente dependentes de minerais críticos, por exemplo, para construção de painéis fotovoltaicos, baterias, reformadores, catalizadores, cabeamentos, geradores eólicos, estruturas para transporte e armazenamento de hidrogênio, indústria eletroeletrônica em geral, equipamentos para novas biorrefinarias etc. A meu ver, ambas as questões precisarão ser geridas de forma célere e integrada: a transição energética e a gestão sustentável de minerais críticos.

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Imagem de destaque: COP28 / Neville Hopwood

Observatório da Mineração – É possível mudar o modelo de desenvolvimento atual baseado em fósseis diante do lobby e das pressões do setor?

O jogo é pesado e é preciso estar atento, pois tudo o que o setor de fósseis mais conservador quer nas negociações são justificativas para manterem suas atividades business-as-usual, ou seja, sem interferências externas. Isso inclui, por exemplo, dizer que as renováveis também são poluentes, que há impactos e limites no setor de mineração. Esses argumentos são verdadeiros em parte, mas isso não pode ser utilizado como desculpa para se protelar ainda mais o processo de descarbonização global.

Houve alguns debates nessa COP sobre minerais críticos, porém, restritos a eventos paralelos da conferência, sem haver considerações mais explícitas nas decisões finais acordadas. Ademais, parte do setor de mineração tem preferido não fomentar essas questões nas COPs, por ver potenciais riscos aos seus negócios. Discussões importantes têm ocorrido no âmbito da Agência Internacional de Energia.

Ao se discutir minerais críticos, não se pode perder de vista, porém, que há um problema concreto que precisa ser enfrentado: a produção de combustíveis fósseis é o principal causador do aquecimento global e sua produção segue aumentando, embora as energias renováveis tenham avançado ainda mais rapidamente nos últimos anos. Há uma percepção de que as renováveis estão substituindo as fontes fósseis, porém, isso não é de todo verdade.

Alexandre Strapasson / Arquivo Pessoal

Estamos presenciando mais uma “adição energética” do que propriamente uma “transição energética”. Portanto, é preciso aumentar as renováveis em efetiva substituição às fontes fósseis e, paralelamente, reduzir desperdícios e mudar o nosso próprio modo de desenvolvimento, sobretudo os estilos de vida superintensivos em uso de energia e carbono, adotados pela população mais rica. Evitar enfrentar essa questão pode nos levar a um colapso climático com impactos não apenas socioeconômicos, mas também sobre a biodiversidade do planeta.

Portanto, a questão não é sobre se devemos ou não fazer uma transição energética, mas sobre como fazê-la, isso incluí o desenvolvimento de estratégias para gestão de minerais críticos.

Ao longo das próximas COPs, a questão de se atribuir metas de phase out para os combustíveis fósseis será retomada, pois a pressão para que sejam atribuídas metas de “desfossilização” tende a se intensificar. Países como Brasil, Azerbaijão (país que sediará a COP-29) e Arábia Saudita se comprometeram a seguir nesse debate. Por outro lado, a transição energética tem trazido outros problemas, alguns antigos, outros novos, mas que precisam ser geridos, incluindo a produção de minerais críticos e seus impactos socioambientais. Esses assuntos precisam estar mais presentes nas próximas COPs.

Observatório da Mineração – De acordo com relatório recente da Agência Internacional de Energia (IEA), de 2017 a 2022, a demanda do setor energético foi o principal fator responsável pela triplicação da procura global de lítio, além de um salto de 70% na procura de cobalto e por um aumento de 40% na procura de níquel. E a previsão é de que a demanda geral por esses minerais mais do que dobre até 2030. Já não seria o momento de aprofundar e ampliar os debates sobre os impactos da mineração destes materiais?  Como avalia as políticas públicas do Brasil para o setor? E a atuação das mineradoras, está dentro dos padrões esperados de impacto ambiental e de relações trabalhistas?

Alexandre Strapasson – Com certeza precisamos avançar, não apenas nos debates sobre os impactos da exploração de minerais críticos como lítio, cobalto, níquel, cobre, nióbio e outros, mas também na busca por ajustes regulatórios, melhoria dos procedimentos de monitoramento, relato e verificação (MRV) das empresas, de fiscalização de empreendimentos, de gestão de riscos e de compensação por perdas e danos.

O forte crescimento de veículos elétricos tem sido a principal causa do aumento da demanda de baterias de lítio, por exemplo, mas há vários outros setores e minerais envolvidos. Há uma forte tendência pela eletrificação de processos, aumentando a demanda por cobre e outros elementos. Precisamos descarbonizar também setores complexos, como aviação, transporte de rodoviário de carga, navegação, cimento, ferro e aço, que provavelmente levarão mais tempo para zerar suas emissões. Por isso, precisaremos avançar também em tecnologias que removam carbono da atmosfera.

O Brasil historicamente tem sido conivente com uma série de práticas insustentáveis observadas em grandes empreendimentos no setor mineral, desde o período quando o setor era predominante estatal até o presente, com participação de grupos privados tanto do Brasil quanto do exterior.

Essas contradições são reflexo da forma como se faz política em nosso país e de nossa própria sociedade. Há problemas que remontam ao período colonial e aos processos de escravidão. As grandes empresas de mineração possuem forte influênciasobre decisões legislativas e estão amparadas por forte assessoria jurídica em suas operações. Isso dificulta a defesa pelo interesse de comunidades atingidas e de organização de seus trabalhadores, incluindo a mitigação de danos, aplicação de multas, medidas de adaptação local, compensação e contensão de impactos.

A atuação das mineradoras ainda está muito distante do que se espera em termos de uma gestão eficaz de impactos ambientais e trabalhistas. Basta se observar as várias ocorrências pelo país nos últimos anos, muitas delas criminosas, como a mineração ilegal em áreas indígenas e impactos de empreendimentos desastrosos, a exemplo de Mariana, Brumadinho e Maceió.

Há exceções, claro. Algumas empresas realmente têm avançado, mas as incidências são muitas e frequentes. Daí a importância do Ministério Público e dos órgãos de fiscalização ambiental sobre esses empreendimentos.

Delegação indígena brasileira na COP 28 / Divulgação / Mahmoud Khaled

Observatório da Mineração – O crescimento na extração de minerais críticos necessários para a transição energética gera impactos socioambientais variados, tanto pelas próprias emissões de gases do efeito estufa da própria operação, como pelos impactos em fontes e cursos de água, além de eventuais disputas territoriais. Como esperam contribuir de fato para a transição energética?

Alexandre Strapasson – Há duas premissas importantes que precisam ser consideradas. A primeira é de que a transição energética precisa ser acelerada, devido à emergência climática. A segunda é de que há outros limites planetários que precisam ser respeitados, isso inclui o uso sustentável de minerais críticos.

As fontes renováveis podem ter impactos significativos em emissões de gases de efeito estufa sob a lógica de análise de ciclo de vida? Sim, mas, regra geral, as fósseis emitem muito mais.

Por exemplo, construir um painel fotovoltaico gasta energia, inclusive nos processos de mineração envolvidos, mas essa energia é recuperada com o funcionamento do painel, ao passo que construir uma plataforma de petróleo também gasta energia e a combustão dos derivados de petróleo em seus vários usos finais emitem ainda mais. Isso tem sido demonstrado em diversos estudos comparados na literatura científica.

Quando a tecnologia dita “renovável” mais emite do que ajuda, ela precisa ser reconsiderada. A ideia é reduzir cada vez mais a pegada de carbono associada a uma dada tecnologia ou empreendimento, assim como impactos sobre o uso da água e exploração de minerais críticos, e a melhoria de condições trabalhistas.

Divulgação COP28 / Walaa Alshaer

Observatório da Mineração – Que caminhos a indústria e os políticos apontam para superar essa contradição evidente?

Alexandre Strapasson – Alguns caminhos podem ser seguidos. É importante, por exemplo, haver uma diversificação das cadeias de suprimento do setor de mineração. Situações de monopólio e oligopólio de empresas e países não têm se mostrado adequados, com riscos à segurança da própria transição energética, haja vista as possíveis manipulações de mercados, com negligência de interesses socioambientais pela concentração de poder, assim como o agravamento de relações geopolíticas sensíveis.

Outro ponto é tentar reduzir a demanda de produtos do setor mineral, por meio do aumento da eficiência energética, desenvolvimento de tecnologias menos dependentes de minerais críticos, aumento da reciclagem de componentes e mudanças comportamentais, sobretudo de estilos de vida consumistas.

Minerais críticos precisam ser bem geridos, dentro de cadeias produtivas integradas, pois estão dispostos em reservas distribuídas de forma heterogênea em nosso planeta e de abundância limitada, frente às novas demandas da sociedade global. O descarte inadequado de baterias e eletrônicos, por exemplo, pode fazer com seus minerais críticos presentes sejam depositados em lixões ou até mesmo nos oceanos, dificultando ou até inviabilizando a sua recuperação por gerações futuras. Daí a importância da economia circular, ou seja, de se pensar de forma cíclica os processos envolvidos.

Os empreendimentos que ainda assim se fizerem necessários (e serão) devem cada vez mais se atentar a parâmetros socioambientais. Algumas medidas importantes são: certificações internacionais, incluindo sobre pegada de carbono e pegada hídrica, análise de ciclo de vida, ajustes no licenciamento ambiental, uso da avaliação ambiental estratégica (AAE), engajamento de comunidades envolvidas, sobretudo de povos e comunidades tradicionais, restrições ao financiamento para projetos inadequados, benefícios tributários para boas práticas, uso de blockchains para rastreabilidade de materiais, entre outras possibilidades.

O próprio estado e sociedade civil precisam estar mais atentos. É preciso não apenas diagnosticar o problema, mas encontrar soluções. As comunidades atingidas, por exemplo, precisam estar mais bem assistidas. Nesse sentido, a imprensa tem um papel fundamental em denunciar, debater e cobrar os atores responsáveis.

Por fim, penso que seria importante haver um maior alinhamento internacional nos arranjos regulatórios. De nada adianta um país ser rigoroso e isso estimular degradações em outros países mais vulneráveis socialmente e com instituições precárias.

É preciso desenvolver novas parcerias e arranjos internacionais que visem não apenas assegurar um suprimento regular desses materiais, mas aumentar a transparência dos mercados, inclusive quanto a aspectos éticos. Para se avançar de verdade, a proteção ambiental deveria ser a norma no mundo inteiro. Isso ainda está distante, mas é possível, sobretudo para grandes empreendimentos, que são mais facilmente verificáveis e possuem maior capacidade técnica e econômica para gestão socioambiental de suas atividades. É uma transformação necessária, um mundo novo que precisa ser construído.

Pedro Sibahi é jornalista com mais de 10 anos de experiência e passagens por Folha, Estadão e Repórter Brasil.

Maurício Angelo é fundador e diretor-executivo do Observatório da Mineração.

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