“Guilhotina regulatória” em curso para o setor mineral pode influenciar na entrada do Brasil na OCDE

Foi sem cerimônia que o ex-diretor da Agência Nacional de Mineração, Tomás Albuquerque, anunciou em maio de 2020 o objetivo da parceria firmada entre ANM e OCDE: passar uma “guilhotina regulatória” no setor mineral.

Agora, esse acordo entre a Agência e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, prorrogado até o fim deste mês, pode ser um dos fatores decisivos para a entrada do Brasil na OCDE, algo desejado por todos os últimos governos.

O resultado da consultoria prestada pela OCDE ainda será oficialmente divulgado até o início de 2022, mas os anúncios da ANM já dão um sinal claro sobre como essa guilhotina já está funcionando.

O relatório preliminar, de meados deste ano, aponta que a OCDE está tomando Chile e Austrália como “referências” para o Brasil. O objetivo seria “identificar as barreiras regulatórias que dificultam a implementação de políticas públicas e corrigir as ineficiências no setor mineral”.

Tomar os exemplos chileno e australiano como modelo é problemático, como mostrei aqui no Observatório em matérias recentes que revelam como funciona a mineração em terras indígenas nestes países.

No Chile, as mineradoras sequer pagam um valor de compensação – royalties – para os cofres do país, ao contrário do que acontece no mundo inteiro. O Chile lida até hoje com toda a desregulamentação causada pela ditadura de Augusto Pinochet, encerrada em 1990. Na Austrália, as mineradoras também gozam uma série de privilégios fiscais e são autorizadas a atuar quase que livremente em áreas indígenas.

O superintendente de Regulação e Governança Regulatória da ANM, Yoshihiro Nemoto, ressaltou a “extrema relevância” do relatório da OCDE, considerando que o órgão internacional está fazendo um “diagnóstico independente” que “indica o caminho a ser trilhado” a partir da “experiência acumulada por décadas pelos reguladores de outros países”.

Nas recomendações até aqui, a OCDE já pede a revisão do Código de Mineração de 1967. Tentado pelo governo de Michel Temer, que acabou alterando diversas regras do setor mineral por Medidas Provisórias e Decretos – incluindo a criação da ANM, que substituiu o antigo DNPM – o Código está sob revisão de um Grupo de Trabalho que, promete, deve entregar o seu parecer em breve.

A OCDE considerou como “ponto de atenção” o tratamento diferente que hoje é dado entre os vários tipos de mineração, como o garimpo e a operação de grandes mineradoras, que “requerem diferentes proporções regulatórias”.

Quem participou da definição dessas recomendações prévias da OCDE foi o Ministério de Minas e Energia, o Ministério da Economia, o setor privado e algumas universidades, além dos países-membros da OCDE.

Para implementar as medidas, que servirão para “embasar planos, decisões, projetos e reformas”, a OCDE realizou diversos encontros com representantes do setor mineral e a previsão é de que um plano nacional definido em conjunto coloque essas medidas em prática e “facilite a execução de reformas”.

O Brasil pediu formalmente a adesão à OCDE em 2017, no governo Temer. Para entrar no clube dos 38 países ricos, no entanto, o país precisa se alinhar às diretrizes do grupo e atender a centenas de requisitos reformistas – 246, para ser preciso. O Brasil já atendeu a 100 deles.

A “guilhotina regulatória” é parte central desse processo. Álvaro Pereira, diretor de Estudos de Países do Departamento de Economia da OCDE, elogiou as já aprovadas reformas Trabalhista e da Previdência, além do Teto de Gastos, que tem estrangulado o investimento social do governo federal e contribuído para a volta da fome em dezenas de milhões de lares de brasileiros pobres.

E o diretor da OCDE deixou claro: as reformas não devem parar por aí e é preciso manter essa “atitude reformista” para entrar no clube. “O lugar do Brasil, não tenho dúvidas, é na OCDE, uma organização que quer reformar o mundo”, disse em entrevista.

Durante a reunião anual da OCDE realizada na semana passada, o secretário-geral da organização, Mathias Cormann, reforçou o objetivo de abrir as portas do órgão para Argentina, Brasil, Bulgária, Croácia, Peru e Romênia. Para tanto, não há segredo: a cartilha do ultraliberalismo deve ser aplicada ao máximo.

“Toda democracia baseada na economia de mercado que submete um genuíno interesse em se unir à OCDE, demonstrando um compromisso genuíno de continuar as reformas necessárias para cumprir todos os requisitos da OCDE, deveria ter a oportunidade de fazê-lo”, argumentou, dizendo que os seis atuais candidatos “demonstraram claros progressos” ao adotarem os padrões e regras recomendados pela entidade.

O PL do Licenciamento, fortemente criticado pela sociedade civil, entra nesse contexto.

Leilão eletrônico, requerimentos online e automatização: novas áreas liberadas com rapidez

A ANM já modificou muitas regras importantes para o setor mineral ao longo de 2020 e 2021.

Uma mudança importante feita pela ANM é que, agora, existe o período máximo de 120 dias para anunciar a liberação ou veto dos requisitos de pesquisa mineral. Se a agência não responder até o final deste prazo, o pedido será aprovado. Antes, não havia período limite para análise. O objetivo expresso é diminuir os 120 dias para cerca de 1 mês.

A Agência também tem se empenhado em liberar dezenas de milhares de novas áreas para pesquisa e exploração mineral até 2022.

Para agilizar esse processo, a ANM implantou em 2020 o Sistema de Oferta Pública e Leilão de Áreas em Disponibilidade – SOPLE. Agora a agência libera, por rodadas, uma grande quantidade de novas áreas, tudo online. Em uma dessas rodadas, 7 mil áreas foram ofertadas de uma vez, com propostas no valor total aproximado de R$ 173 milhões.

A automatização é um dos grandes objetivos colocados em prática pela ANM. Em 2020 foi iniciado o projeto Relatório de Pesquisa Mineral (RPM), que prevê a automação do fluxo de outorga de autorização de pesquisa mineral. Nesse contexto, entram os trâmites relativos ao Relatório Final de Pesquisa (RFP), o Relatório Parcial de Pesquisa e Prorrogação de Prazo de Pesquisa.  

Em agosto de 2020 também foi lançado o Requerimento Eletrônico de Pesquisa Mineral (REPEM). Tudo passou a ser feito online e de forma autodeclaratória. Em poucos minutos a solicitação é gerada e em até um mês é aprovada. O empresário define a área que quer pesquisar e garante que não haverá interferência em áreas indígenas, por exemplo.

Isso “adequa a mineração às regras de liberdade econômica”, diz a ANM.  Com o requerimento, o solicitante assina a declaração e se responsabiliza pela veracidade das informações. Se a fiscalização constatar irregularidades, o pesquisador perde a área e responde civil, criminal e administrativamente. A capacidade de fiscalização da ANM, no entanto, com a agência sucateada e longe do número ideal de servidores, é bem reduzida.

Ainda assim, a estimativa é de que essa nova ferramenta impacte em R$ 1 bilhão por ano “em benefício do setor mineral”, acelerando o trâmite dos requerimentos e a emissão de alvarás de pesquisa.

As medidas anunciadas pela ANM até aqui causam apreensão em entidades que advogam pela proteção socioambiental e pelos direitos humanos no Brasil.

“Temos muito receio (como sociedade civil) que haja uma simplificação administrativa e isso possa reduzir a fiscalização e facilitar processos para exploração minerária”, avalia Julia Neiva, coordenadora do programa Direitos Socioambientais da Conectas.

Para a advogada, processos autodeclaratórios também representam um risco e não é as empresas que devem dizer se os seus empreendimentos causam prejuízos para as comunidades ao redor.

“Nossa experiência diz que políticas de autodeclaração não funcionam. O que deveria haver é um fortalecimento da ANM em seu quadro de funcionários, nos recursos disponíveis e na capacidade de fiscalizar”, diz Neiva.

Outro agravante é que essa parceria da OCDE com a ANM ouviu o setor mineral e os órgãos do governo federal, mas não realizou consultas públicas e não ouviu a sociedade civil e as pessoas impactadas pela mineração.

“A ausência de participação pública é importante. Contribuições, críticas e análises poderiam ser dadas. Mas não houve espaço. Isso é lamentável especialmente se considerarmos o histórico do setor mineral no Brasil”, critica Neiva.

Os números da ANM em 2020 mostram 18.232 estudos de área; 7.528 áreas em disponibilidade que voltaram ao mercado; 4.884 títulos requeridos (concessão de lavra, licenciamento, PLG, registro de extração); 3.216 relatórios de pesquisa analisados e 2.272 títulos outorgados.

Enquanto isso, mais de 1 milhão de pessoas foram afetadas diretamente pela mineração no Brasil em 2020, sobretudo nos estados de Minas Gerais, Pará e Bahia. Trabalhadores rurais, funcionários de mineradoras, ribeirinhos e indígenas são os grupos mais afetados, especialmente por empresas multinacionais.

ANM permite pesquisas sem vistoria presencial e antes do licenciamento

Dentro do contexto do Plano Lavra, anunciado como solução para os mineradores diante da pandemia, a ANM anunciou que, desde o ano passado, por exemplo, a Guia de Utilização para o minerador em fase de pesquisa passou a ser concedida sem a necessidade de uma vistoria presencial e antes mesmo do licenciamento ambiental.

Agora a vistoria não é mais condicionante e o pedido de licenciamento acontece ao mesmo tempo. Isso garante “mais agilidade”, diz a ANM e faz com que o empresário não precise aguardar numa fila. A liberação é praticamente automática.

É ao encontrar um mineral, durante a fase de pesquisa, que o potencial interessado solicita a Guia de Utilização para descobrir o valor de mercado do minério, levantar recursos e financiamentos, fazer pesquisas laboratoriais e testes tecnológicos.

Até então, esta Guia de Utilização só era emitida depois da vistoria in loco, fazendo com que o empreendedor aguardasse em fila, e apenas depois que fosse apresentado o licenciamento ambiental, atrasando ainda mais o processo.

A vistoria presencial para concessões foi substituída por “outros meios tecnológicos de vistoria”.

Outras mudanças incluem a continuidade da lavra mesmo quando há alteração do titular – caso de fusões e aquisições de empresas – a ampliação do limite máximo de área para regime de licenciamento e o sistema eletrônico de requerimento de pesquisa.

Esta série de ações foi anunciada para “minimizar efeitos da pandemia e trazer segurança aos investidores”.

Também passou por estudo a regulamentação do direito minerário como garantia para financiamento. Com a nova norma, o minerador pode colocar seu título como garantia do pagamento de empréstimos junto a instituições financeiras.

A “desburocratização” trazida no contexto do Plano Lavra partiu da premissa de que as mineradoras precisariam “recuperar os danos sofridos” com a Covid-19.

Na prática, o setor mineral brasileiro faturou em 2020 36% a mais que no ano anterior, chegando a R$ 209 bilhões. Tudo às custas dos trabalhadores. Muito deles morreram com Covid, já que a mineração, considerada essencial, não parou, ao contrário do que ocorreu em outros países. No total, foram produzidos mais de 1 bilhão de toneladas de minerais no ano passado.

A tendência de lucro recorde se mantém firme em 2021. Só a Vale teve lucro líquido de R$ 70 bilhões nos primeiros 6 meses de 2021, segundo maior resultado da história de uma empresa de capital aberto no Brasil, atrás da Petrobras.

Relatório ambiental da OCDE é vago e confuso

Paradoxalmente, um relatório da OCDE publicado este ano com uma avaliação sobre o alinhamento do Brasil às diretrizes socioambientais da entidade faz críticas ao modelo brasileiro e ao estado atual das coisas.

“A ausência de relatórios ambientais periódicos, sistematização deficiente de indicadores, limitação da integração entre bancos de dados e informações limitadas sobre o desempenho ambiental de empresas privadas indicam que Brasil precisa fazer melhorias em suas informações ambientais de gestão se quiser estar em conformidade com os instrumentos jurídicos da OCDE nesta matéria”, diz o relatório.

O texto reconhece os rompimentos de Mariana e Brumadinho, incluindo a reparação lenta e insuficiente, o derramamento de óleo no Nordeste, o desmatamento na Amazônia e a Covid-19 como problemas sérios. Mas não indica, na mineração, caminhos para mudar a realidade atual e ignora a parceria em curso entre OCDE e ANM e as medidas já colocadas em prática.

“Para melhorar o desempenho ambiental das instituições públicas, o Brasil precisa estabelecer metas claras e reviver os mecanismos institucionais projetados para orientar as ações e acompanhar o progresso. O governo federal brasileiro precisa envolver melhor suas agências executivas, bem como funcionários estaduais e locais para acelerar os avanços na implementação das boas práticas da OCDE no país”, conclui o relatório, de forma vaga e confusa.

No caso do setor mineral, o caminho traçado em conjunto pela organização intergovernamental e o Brasil mostra riscos socioambientais seríssimos adiante.

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