Fundação Renova impõe sistema de indenização criado por juiz em toda a bacia do Rio Doce

Quase 6 anos depois do rompimento da barragem da Vale e BHP em Minas Gerais, a Fundação Renova, criada para reparar o desastre, está forçando pessoas atingidas a aderir ao sistema de indenização simplificado criado pelo juiz federal Mário de Paula Franco Júnior para a bacia do Rio Doce.

Surgido com o objetivo de atender situações em que a comprovação de danos é difícil, na prática, o novo sistema tem sido usado como a única opção oferecida a quem sofre diariamente as consequências do maior desastre ambiental do Brasil.

Após negar a indenização mesmo a quem consegue comprovar o dano sofrido, a Renova tem enviado cartas “sugerindo” que a pessoa recorra ao sistema criado pelo juiz no meio da pandemia.

Abraçado pelas mineradoras, este sistema exige que o atingido dê quitação total para as empresas, abrindo mão de reclamar na justiça brasileira e no exterior qualquer outro direito. O que deveria ser mais uma opção vira o único caminho.

Matérias do Observatório que mostraram vídeos do juiz Mário orientando advogados antes e depois da criação do sistema serviram de base para um pedido de suspeição que está nas mãos do plenário do TRF1.

Agricultores ouvidos por mim relatam a perda drástica de renda, a morte de animais, a água contaminada, lavouras destruídas e uma produção duramente reduzida pelos efeitos dos metais tóxicos liberados no Rio Doce.

A Renova também cortou 3.515 auxílios financeiros em 2021. Boa parte dessas pessoas tiveram o auxílio mensal cortado por aderirem ao novo sistema simplificado.

Relatos confirmam que muitos se arrependeram da escolha, já que não foram informados corretamente sobre as consequências de aceitar a quitação total, o que inclui o encerramento do AFE (Auxílio Financeiro Emergencial).

Têm direito ao AFE pessoas que sofreram impacto direto na sua atividade econômica e produtiva. O valor corresponde a um salário mínimo mais 20% para cada um dos dependentes, acrescido de valor equivalente a uma cesta básica na referência do Dieese.

Atualmente, a Renova paga o AFE a 10.515 pessoas, cerca de 5 mil no Espírito Santo e 5 mil em Minas Gerais. Já o “novo sistema indenizatório” atinge agora 20,4 mil pessoas, o dobro do AFE, em pagamento único.

Agricultores e pescadores de subsistência, porém, tiveram o AFE cortado em 50% desde janeiro de 2021. O corte irá até dezembro. A Renova tentou ainda substituir o pagamento por um “Kit Proteína e Kit Alimentação”, o que foi suspenso até nova decisão judicial. Dependendo da família, esse kit poderia representar míseros 33 gramas de proteína por dia para cada pessoa, calculou a Força-Tarefa do Rio Doce.

Hoje, 12 de agosto, o prazo de adesão ao Sistema Indenizatório Simplificado foi prorrogado por decisão judicial para até 31 de outubro para 28 localidades em Minas Gerais e no Espírito Santo.

Ao mesmo tempo, a Vale lucrou R$ 70 bilhões no primeiro semestre de 2021. E a BHP lucrou 14,7 bilhões de dólares no segundo semestre de 2020. A Samarco, dona da barragem e controlada pelas duas mineradoras, enfrenta recuperação judicial e é acusada de servir como meio para que Vale e BHP recebam de volta R$ 24 bilhões que deveriam ter gasto para reparar o desastre de Mariana.  

Foto de destaque: Avener Prado/Folhapress

“Não posso assinar quitação definitiva”

Joelma Fernandes é agricultora, moradora de Governador Valadares, maior cidade da bacia do Rio Doce, com quase 300 mil habitantes. Junto com as 4 filhas, Joelma trabalha há 2 décadas na terra, é fundadora de uma associação agroecológica na cidade e vende os seus produtos em uma feira de pequenos produtores.

Joelma cultiva diversos tipos de frutas e verduras, como abóbora, mandioca, limão, alface, manga, couve, brócolis, laranja e outros. Antes da lama chegar, sua renda familiar alcançava R$ 7 mil reais. Hoje, foi reduzida a um terço disso.

Sem opção, continua a usar a água contaminada do Rio Doce, já que planta em uma ilha no meio do rio. “A lama mudou tudo. As pessoas dizem que é produto contaminado. Perdemos muito freguês. A produção diminuiu muito”, conta.

Joelma na feira com as suas filhas. Arquivo Pessoal.

Sem poder nadar no rio, o que fazia diariamente e cortando o consumo de peixe, base da alimentação, Joelma atribui o surgimento de uma diabete e a piora dos níveis de colesterol à mudança forçada do seu estilo de vida.

Segundo ela, muitas pessoas da sua comunidade até hoje não receberam o AFE. No seu caso, o ingresso no Programa de Indenização Mediada (PIM), voltado ao ressarcimento de danos comprovados de pessoas que tiveram as suas atividades econômicas afetadas e pela falta de abastecimento de água potável, foi negado.

Mesmo com Joelma sendo uma produtora modelo e após várias visitas de equipes da Renova para verificar todas as perdas que ela teve. Em sua visão, o motivo é claro: a negativa é uma forma de forçá-la a ingressar no sistema indenizatório simplificado criado pelo juiz.

Joelma recebeu uma carta da Fundação Renova sugerindo exatamente isso. Essa carta tem sido enviada a vários agricultores e pescadores da bacia do Rio Doce.

“Não posso assinar quitação definitiva. Não me reconhecer é uma forma de me forçar a entrar no sistema do juiz. Isso não contempla os atingidos”, diz Joelma.

Os impactos se acumulam. Na enchente de 2020, a lama da Vale e BHP atingiu novos locais na bacia do Rio Doce. Um dano que se renova e espalha. Para Joelma, não há como abrir mão de direitos adquiridos vivendo diariamente a contaminação e sabendo que uma solução definitiva talvez nunca chegue.

Pior: Joelma relata que a Renova tem fornecido dados de atingidos, como telefone e endereço, para advogados. Esses advogados tem assediado as pessoas para entrar no novo sistema de indenização, já que eles recebem no mínimo 10% do valor. Muitos fecham acordos levando até 30%.

Como a Renova já pagou quase R$ 2 bilhões no “Novel”, os advogados levaram oficialmente R$ 200 milhões até o momento. Se considerarmos os acordos por fora, estamos falando de uma soma que pode atingir até R$ 600 milhões de reais. Em pouco mais de um ano. Em cidades pequenas e médias do interior.

“Não é só o meu caso não, tanto aqui quanto no Espírito Santo. Um assédio tremendo. Esses advogados enchem as pessoas de mentiras, dizem que não há opção, agem de má fé. Ameaçam”, denuncia.

Joelma também faz parte de uma pequena comissão de atingidos que tentou se reunir com a desembargadora Daniele Maranhão, do TRF1.

No pedido de suspeição do juiz Mário de Paula Júnior, da 12ª Vara Federal de Belo Horizonte, Daniele já decidiu a favor do juiz e do sistema indenizatório. O caso está nas mãos do plenário do Tribunal.

Após confirmar a reunião numa sexta-feira, diz Joelma, Daniele avisou que sairia de férias e o encontro virtual ocorreu com o substituto, juiz Roberto Carlos de Oliveira, em 25 de maio.

Joelma também confirma que os atingidos conversaram com a conselheira Maria Tereza Gomes, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), presidido por Luiz Fux, para ouvir as demandas do grupo. O CNJ está liderando um novo acordo para o desastre de Mariana.

Como contei aqui, para entrar nessa negociação, ignorando tudo que foi firmado nos últimos 6 anos, Vale e BHP conseguiram suspender três processos: a Ação Civil Pública do MPF que pede R$ 155 bilhõeso pedido de extinção da Fundação Renova, criada para reparar o desastre e o processo contra a Renova por publicidade indevida.

“Essa repactuação disse que iria nos ouvir. Mas fomos riscados do processo. Nós não estamos de acordo, somos contra a quitação definitiva, fechamento do cadastro, corte do AFE, a favor de assessorias técnicas. Que juiz é esse? Que imparcialidade é essa? Tudo que ele tá fazendo é só as empresas que estão levando vantagem?”, questiona Joelma Fernandes.

“O Rio Doce está morto. A quitação definitiva traz um colapso muito grande para cada território”

Patrícia Barreto mora em Naque (MG). Faz parte do grupo que questiona a maneira como esse processo foi conduzido, vindo de dentro dele. Patrícia integra uma comissão de Naque que pleiteou a indenização que se tornou o modelo criado por Mário de Paula.

Durante o desenrolar dos acontecimentos, porém, Patrícia passou a discordar da forma como as coisas estão acontecendo. Para ela, a quitação definitiva exigida pelo “Novel” traz um colapso enorme para cada território.

Endividadas, as famílias atingidas acabam aceitando por não verem outra opção.

A cada ano se agrava a saúde e o sustento dessa família. A Renova está fazendo da forma que ela quer fazer com os atingidos, cortando o AFE, fazendo com que o atingido não tenha escolha e entre no novo sistema. Mesmo quem tem como comprovar, o pedido é negado e a pessoa fica sem opção”.

Para Patrícia, o Rio Doce está morto e os atingidos tem certeza “que nunca vão conseguir” recuperá-lo. Há casos, inclusive, de gente que não consegue comprovar um dano porque a lama arrastou os seus documentos. “Várias famílias que eu conheço estão nessa situação”, diz.

Após entrar na Comissão de Naque e acompanhar o processo, Patrícia viu as mineradoras se favorecendo. “Hoje, pela experiência de tudo que passei, a única convicção que eu tenho é que assessoria técnica é o início de tudo. É fazer todo o levantamento. Território sem assessoria técnica está morto”, crava.

As assessorias técnicas foram previstas na repactuação do acordo em 2018, mas não foram contratadas porque as mineradoras alegaram “custo muito alto” e Mário de Paula não decide nada sobre isso desde junho de 2020.

O objetivo de contratar essas instituições é justamente para que pudessem assessorar os atingidos a buscar os seus direitos com um suporte técnico, direto, sem que as pessoas afetadas pelo rompimento da barragem fossem duplamente prejudicadas. Quase 70% das regiões previstas continuam sem contratação enquanto o novo sistema indenizatório avançou pelo Rio Doce.

Produção devastada e morte de animais

Maria Célia de Andrade mora em Conselheiro Pena (MG). Na fazenda às margens do rio e na ilha no meio do Doce, a família planta goiaba, coco, milho e cria gado há quase 100 anos.

Desde que a lama das mineradoras chegou, porém, a exemplo de vários dos seus colegas, a sua produção de goiaba e coco foi exterminada. A goiaba, que produzia 45 toneladas por ano, passou a 1 tonelada. Insuficiente para pagar mesmo a energia. O coco acabou.

Em 2020, na enchente, a lama atingiu até 90 centímetros em alguns locais. Nem as partes altas escaparam. Maria Célia conta que entrou em depressão, perdeu dezenas de cabeças de gado. E luta ainda hoje para manter parte da sua produção de leite. Muitos animais tem morrido atolados no Rio Doce, o que antes raramente acontecia. Os abortos nas vacas se tornaram comuns.

“A sensação é de lutar, lutar e ficar no mesmo lugar. É mentira que a água do rio está própria. As doenças nos animais são frequentes. A água corrói até os motores que usamos. Continuo aqui porque não tenho outra profissão”, diz Maria Célia.

Mesmo com parte dos seus danos reconhecidos pela Fundação Renova, a produtora até hoje não recebeu o pagamento. Vários produtores tem recebido cartas da Renova sugerindo a entrada no sistema do juiz. Ela confirma que a Renova tem fornecido dados de atingidos para advogados.

E convive com as ameaças diárias de cortes e o assédio desses advogados, que já montaram todo um esquema em Conselheiro Pena, preparando tudo para entrar no “Novel” assim que possível.

Maria Célia também é contra a quitação definitiva. “A Renova tirou o escritório. Não dá esperança de ninguém receber. Fala que vai reabrir o PIM, mas não diz quando. Coloca a culpa na pandemia. Forneceram meu nome e contatos para advogados. Eles vêm atrás dia e noite”, conta.

Segundo a produtora, todas as reuniões com os Ministérios Públicos, com a desembargadora Daniele Maranhão ou no CNJ foram infrutíferas até hoje. Maria Tereza, por exemplo, do CNJ, concordou em ouvi-los por apenas 10 minutos.

“Não sei o que acontece, as empresas tem uma força muito grande. Todo mundo fica de olhar, ver a situação. Pediram que apontássemos uma solução. A solução é o PIM reabrir, indenizar a gente, tirar a judicialização do Novel e acabar com o corte do AFE”, cobra Maria Célia.

Sem esmorecer, ela considera que o novo sistema “foi um caminho aberto para fraudes”. Toda a papelada que a Renova pediu para ela levar, diz, foi levada. E mesmo assim está sem receber.

Já o “Novel” caminha de outra maneira. “Como vou dar quitação definitiva com a minha terra do jeito que tá? Não dá. Os atingidos que não querem entrar acabam sofrendo ameaças”, denuncia.

Renova confirma o envio das cartas

Em resposta à reportagem, a Renova confirmou que está enviando as cartas mencionadas. Confira a resposta sobre essa questão:

“Desde que foi criada, a Fundação Renova vem trabalhando na construção de soluções indenizatórias pelos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, em novembro de 2015. Mesmo após a flexibilização de critérios e da criação de políticas próprias para algumas categorias, o Programa de Indenização Mediada (PIM), deparou-se com a realidade de pessoas que não conseguem comprovar perda material ou de renda cujos pleitos relatados não têm relação com o rompimento da barragem de Fundão. Dessa maneira, essas pessoas não têm como ingressar no PIM.

Neste momento, a Fundação Renova realiza a devolutiva para os pleitos não indenizáveis.

A comunicação da negativa aos pleitos está sendo realizada por meio de carta, enviada pelos Correios com Aviso de Recebimento e disponibilizada no Portal do Usuário, no site www.fundacaorenova.org.

Na comunicação, essas pessoas serão informadas que não é possível o ingresso no PIM, pois o pleito relatado não é indenizável. Também na carta, a Fundação Renova informa sobre a implementação, por determinação do Poder Judiciário, do Sistema Indenizatório Simplificado com critérios próprios para atender casos de difícil comprovação de danos. Para acesso a esse novo fluxo, é necessário que a localidade onde a pessoa morava à época do rompimento esteja coberta por uma decisão judicial.

Cumprindo o seu compromisso em manter o atingido a par dos processos de reparação e compensação pelos danos causados pelo rompimento de Fundão, a Fundação Renova informa sobre a implementação do Sistema Indenizatório Simplificado para tratar os casos de difícil comprovação de danos”.

Sobre o assédio de advogados e o envio de informações de atingidos, a Renova afirmou que:

“Ter um advogado, um representante legal, é obrigatório e ele não precisa ser o mesmo de ações anteriores. O atendimento pode ser feito gratuitamente pela Defensoria Pública estadual. A plataforma só pode ser acessada pelos advogados, também por determinação da Justiça. 

Quando é feito o pagamento, a Fundação Renova faz desconto máximo de 10% a título de honorários advocatícios, conforme a sentença, e não interfere, controla ou fiscaliza a negociação entre cliente e advogado.

A Fundação Renova esclarece que não fornece o serviço de advogados para atender aos atingidos. Alguns casos de pessoas se passando por representantes da Renova já chegaram ao nosso conhecimento e esclarecemos que isso não é verdade”.

Leia a íntegra das respostas da Fundação Renova.

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