Boom do lítio no Jequitinhonha restringe acesso à saúde e aumenta o custo de vida para a comunidade local

“O governador está chamando de Vale do Lítio, sendo que aqui é Vale do Jequitinhonha. Um Vale que tem identidade, que tem povos. Não é simplesmente um espaço de exploração”, alerta Cleonice Pankararu, uma das lideranças da terra indígena Aldeia Cinta Vermelha-Jundiba, formada pelos Pankararu e Pataxó, e localizada às margens do Rio Jequitinhonha, em Araçuaí, Minas Gerais.

O projeto lançado por Romeu Zema (Novo) no ano passado, em Nova York, convidou mineradoras estrangeiras a explorar o mineral no estado. Desde então, o governo tem feito promessas de desenvolvimento e prosperidade, com a geração de empregos, pagamento de impostos e melhora da qualidade de vida das comunidades.

No entanto, esta não é a realidade que a população do Vale do Jequitinhonha tem enfrentado desde o “boom” do lítio no governo de Jair Bolsonaro (PL), que abriu o mercado nacional via decreto, em julho de 2022, como mostrou o Observatório da Mineração

Considerado um mineral estratégico, o lítio passou a ocupar um espaço de destaque na disputa do Brasil para se tornar um dos líderes globais da transição energética. A demanda crescente e a alta lucratividade da exploração atraíram mineradoras e políticos, que fazem lobby para flexibilizar a proteção ao meio ambiente, o pagamento de impostos e a transparência dos processos.

Foto de destaque: Divulgação Sigma Lithium

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Sem saúde, moradia e segurança

“A população aumentou demais e a gente sentiu os impactos na economia porque o custo das coisas no comércio subiu muito. Os hospitais também estão superlotados, devido às pessoas que vieram para trabalhar na empresa. E tem a questão da violência, da insegurança, principalmente contra as mulheres. Piorou”, revela Cleonice.

Ainda segundo a liderança da Aldeia Cinta Vermelha-Jundiba, se tornou impossível alugar imóveis na cidade. “Os estudantes da área rural, como por exemplo aqui na minha comunidade, às vezes têm que pagar um aluguel para poder estudar e muitos não conseguem porque subiu muito mesmo. Não acha mais lugar”, disse.

Foto: Cleonice Pankararu / Arquivo Pessoal

José Nelson, agente da ONG Cáritas em Araçuaí, ratificou as denúncias feitas pela conterrânea. Enquanto conversava com o Observatório da Mineração, em uma chamada de vídeo feita pelo celular, ele percorria as ruas da cidade para cobrar transparência dos recursos oriundos da mineração nas contas públicas, em meio a uma “micareta” contratada pela prefeitura para a festa de aniversário da cidade. 

“O dinheiro está entrando com força, nos dois municípios, Araçuaí e Itinga. Por isso, a expectativa de mudança política é muito importante. O grupo que está hoje aí tem um corporativismo muito forte, de comerciantes, empresários. E eles andam a ‘tiracolo’ com os CEOs das empresas, tomam whisky nas noitadas”, contou.

De acordo com o integrante da Cáritas, o volume de recursos é “muito violento” e a maior parte da população não faz essa leitura porque mede as questões “por baixo”, se contentando com os poucos empregos que são oferecidos a familiares, por exemplo, , já que há muita demanda por serviços braçais e terceirizados em geral

“Agora o que é bom mesmo, que é o volume de recursos que está passando no território, a cidade está ficando fora dessa distribuição de recursos para a coletividade. O hospital não evoluiu, a saúde não evoluiu. Se a gente precisa de ser atendido em uma especialidade médica tem que ir para Belo Horizonte ou Diamantina”, criticou Nelson.

O Observatório da Mineração pediu um posicionamento da prefeitura de Araçuaí, mas não recebeu nenhum retorno até a publicação desta reportagem. Já a prefeitura de Itinga pediu para entrar em contato novamente “após o período eleitoral, devido à agenda do prefeito”.

Mercado atrai mineradoras australianas e americanas

As medidas de flexibilização assinadas por Bolsonaro e Zema provocaram um aumento drástico da exploração de lítio e da pesquisa mineral na Região do Vale do Jequitinhonha. Até então, apenas a Companhia Brasileira de Lítio (CBL), que é 100% nacional, operava uma mina e uma planta química, desde 1991.

Enquanto algumas mineradoras estão com projetos em fases iniciais, a canadense Sigma Lithium iniciou a exploração em abril do ano passado, com a meta de figurar entre as cinco maiores produtoras de lítio do mundo. Já a norte-americana Atlas Lithium e a australiana Latin Resources estão em fase de implantação.

A Latin foi comprada pela conterrânea Pilbara Minerals por US$ 370 milhões, com o anúncio da aquisição de 100%  da empresa feito durante a Exposibram 2024, realizada em Belo Horizonte no mês passado. O projeto vai ser executado no município de Salinas, outro dos 14 que integram o agora chamado de “Vale do Lítio”, e tem investimento previsto de US$ 313 milhões.

“Este é um marco fundamental na nossa estratégia de diversificação e expansão global. O Projeto Salinas Lithium, com seu potencial de se tornar uma das maiores operações de lítio de rocha dura do mundo, será vital para consolidar nossa posição de liderança nos mercados de baterias da América do Norte e Europa. Estamos entusiasmados em trazer nossa expertise técnica para o Brasil e contribuir para o desenvolvimento sustentável da região”, disse o CEO da mineradora, Dale Henderson, durante uma coletiva para a imprensa, no evento. 

Apresentação na Exposibram / Ígor Passarini

O crescimento do setor é visto com animação por Henrique Tavares, gerente da área de Mineração, Metalurgia e Siderurgia da Invest Minas, uma agência de promoção criada pelo governo estadual com o objetivo de atrair e desenvolver investimentos.

“Algumas empresas estão em fase de pesquisa, outras de licenciamento ambiental. A gente imagina que na virada de 2024 para 2025 pelo menos mais uma entre em operação e, no decorrer de 2025, uma segunda. Ou seja, teremos quatro empresas operando. É um cenário bastante promissor e que vai colocar Minas Gerais já em patamar de produção considerável”, projetou. 

O aumento de empreendimentos na região também impulsionou a criação do “Lithium Business”, um evento idealizado pelo professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ) Rossandro Ramos, no qual as mineradoras fomentam o setor por meio de debates com a presença de especialistas, políticos, empresários e moradores. 

De acordo com ele, o Brasil precisa estar preparado quando “o momento da festa chegar”, se referindo ao déficit global no fornecimento de lítio, previsto para 2028.

Natural de um município próximo a Araçuaí, Rossandro se mudou do Rio de Janeiro para a cidade durante a pandemia e aproveitou para fazer lives de discussão sobre o lítio no Vale do Jequitinhonha. “Eu prometi que quando acabasse o isolamento nós faríamos um encontro presencial e em uma tarde o telefone tocou. Era o CEO da CBL, Vinícius Alvarenga, me cobrando. Aí eu fui e entrei em contato com a CEO da Sigma, Ana Cabral, e ela também disse que valia a pena fazer”, revelou.

O primeiro evento foi realizado em 2023, durante três dias, e terminou com a segunda edição marcada para julho deste ano. Conforme Rossandro, o público foi três vezes maior, com representantes de 19 países, tais como China, Portugal, Inglaterra, Chile e Austrália. 

“Um evento internacional em uma cidade que teoricamente não tinha condições, que nunca teve um evento assim. É fácil fazer no Rio de Janeiro, em BH, São Paulo. Aqui a cidade não consome conhecimento. É um território esquecido pelo estado, abandonado”, disse o professor.

Rossandro também destacou a importância do poder público olhar para as comunidades e devolver o investimento que recebe com impostos e arrecadações, incluindo universidades, moradia e saúde. Segundo ele, Araçuaí nunca teve em seu quadro de servidores um engenheiro de mineração e nem um departamento para pensar o setor.

“A gente tem que entender que na mineração, antes de virem os benefícios, vêm os custos. Ela impõe custos ao território antes de colocar os benefícios porque a primeira fase é a pesquisa mineral. A cidade recebe as empresas, uma população flutuante e vem os custos, como demanda por aluguel”, concluiu. 

Mineração suga água dos rios e gera questionamentos sobre a transição justa

“É com ‘duras penas’ que a gente consegue articular uma política pública de captação de água de chuva e, por outro lado, as empresas conseguem articular outorgas de água para tirar um grande volume do rio. A outorga que elas têm de uma hora, talvez dê para o consumo da cidade em um ou dois dias. Além de ter outorga fácil, eles estão lá contaminando a água, então que transição energética e que energia limpa é essa?”, questionou Rodrigo Pires Vieira, que é um dos coordenadores da Cáritas em Minas Gerais.

No ano passado, uma denúncia feita pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) alegou que a atividade da Sigma pode impactar diretamente o acesso à água dos moradores. “Enquanto as comunidades rurais do Vale do Jequitinhonha dispõem de uma caixa d’água de 16.000 litros para consumo doméstico por 8 meses (estiagem), ou seja, 2 mil litros por família/mês, a outorga da Agência Nacional das Águas (ANA) para a Sigma na região de Itinga é de 3,8 milhões de litro/dia (100 milhões de litros mês), o que daria para abastecer 34.000 famílias”, afirmou o movimento.

Cleonice também alertou sobre o uso da água dos rios pelas mineradoras. “O Ribeirão Piauí, que deságua no Rio Jequitinhonha, está diretamente impactado porque a plataforma ficou bem ao lado dele e da comunidade Poço Dantas, que também têm indígenas e quilombolas”, revelou.

Até a publicação desta reportagem, as mineradoras Sigma e CBL não responderam os questionamentos feitos pelo Observatório da Mineração. Caso respondam, o texto será atualizado.

Jazidas do Jequitinhonha respondem por 85% das reservas de lítio brasileiras

De acordo com estudos realizados pelo Serviço Geológico do Brasil (SGB), o Vale do Jequitinhonha” tem cerca de 45 depósitos de lítio descobertos e concentra cerca de 85% das reservas do país, pois o potencial de cada um deles compreende 20 vezes mais que as de outros locais, garantindo matéria-prima a longo prazo.

A lavra no Jequitinhonha é feita em pegmatitos, que são rochas formadas a partir do resfriamento e solidificação do magma, como explicam os autores Paulo Braga e João Alves Sampaio no livro “Rochas e Minerais Industriais no Brasil: usos e especificações”, publicado pelo Centro de Tecnologia Mineral (Cetem), em 2008. Uma das referências usadas pelos brasileiros foi a definição do geólogo especialista em lítio Ihor Kunasz, na sétima edição do estudo “Industrial Minerals and Rocks”.

“O lítio é um metal branco-prateado, pouco mais duro que o sódio, porém mais macio que o chumbo. É o mais leve de todos os metais, com peso específico de 0,534 g/cm3, ou seja, a metade da água. Como os outros metais alcalinos de seu grupo (sódio, potássio, rubídio e césio), o lítio é quimicamente muito ativo e nunca ocorre como um elemento puro na natureza. É encontrado na forma de um mineral ou como um sal estável”, explicou Kunasz.

O relatório Dinamite Pura, feito pelo Observatório da Mineração em parceria com o Sinal de Fumaça, mostrou que até o decreto de Bolsonaro, a exploração e comercialização de lítio no Brasil era voltada para abastecer o mercado interno, via CBL, que supria especialmente o setor médico-hospitalar e a indústria química. 

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