Belo Sun se movimenta para explorar ouro em terras indígenas no Pará mesmo com batalha judicial

As ações civis públicas que enfrenta não tem impedido a mineradora canadense Belo Sun de continuar a pesquisar ouro em limites que ficam dentro de terras indígenas no Pará.

Dados exclusivos e um mapa obtidos via Lei de Acesso à Informação mostram que a mineradora tem 11 processos de pesquisa abertos na Agência Nacional de Mineração (ANM) que incidem diretamente sobre as TI’s Arara da Volta Grande do Xingu e Trincheira Bacajá.

Mesmo com o licenciamento suspenso, os dados revelam que a Belo Sun continua a prospectar ouro e coleciona avanços burocráticos em 2019 e 2018.

A mineração em terras indígenas não é permitida no Brasil e não está regulamentada. O governo Bolsonaro, no entanto, tem se empenhado em aprovar um projeto que libere a exploração. Empresas como a Vale e a Belo Sun se aproveitam dessa brecha e da permissividade da ANM para avançar com as pesquisas. Veja em detalhes os 11 processos da Belo Sun em TI’s no Pará.

Planejado para ser a maior de exploração de ouro a céu aberto da América Latina, com a extração de 74 toneladas de ouro em 20 anos de operação, o projeto está localizado entre as cidades de Altamira e Senador José Porfírio, na Volta Grande do Xingu.

A região já é duramente afetada pelos impactos da hidrelétrica de Belo Monte, o desmatamento, a especulação fundiária e a escalada da violência recente.

Mineradora nega impacto a povos indígenas

De 2012 até hoje, a mineradora canadense não foi capaz de apresentar um Estudo de Componente Indígena (ECI) satisfatório.

Para cumprir com a condicionante, a Belo Sun teria que visitar terras indígenas e realizar entrevistas com representantes das comunidades tradicionais da região. No início do projeto, porém, a mineradora chegou a negar que o empreendimento traria qualquer impacto sobre povos indígenas.

Ainda em 2012, quando o projeto foi apresentado, o Ministério Público Federal (MPF) do Pará encontrou inconsistências no relatório de impacto ambiental apresentado pela Belo Sun. O estudo da mineradora ignorava completamente a vasta presença de povos indígenas na região, detalhados inclusive no projeto de Belo Monte, vizinha.

“Não há menção porque não tem nenhuma comunidade indígena na região”, disse na época Hélio Diniz, vice-presidente de exploração da Belo Sun.

Diniz também negou que os planos da mineradora afetariam diretamente o rio Xingu. O local previsto para receber a mina está localizado na margem direita do rio, poucos quilômetros abaixo da barragem de Belo Monte. A exploração da jazida, segundo Diniz, não avançará sobre o leito do rio. “A mina fica próxima do Xingu, mas não há nenhuma ação direta no rio”, afirmou o executivo. A mina visada pela Belo Sun é o maior depósito ainda não explorado de ouro no Brasil.

A contradição flagrante entre a realidade, os processos minerários registrados na ANM e os fatos mostrados pelos órgãos responsáveis revelam que a mineradora sabia muito bem sobre a presença indígena na região.

Procurada pela reportagem para comentar os processos minerários em terras indígenas, as recentes movimentações de pesquisa e as ilegalidades apontadas pelas ações que responde, a Belo Sun optou por não se posicionar.

No blog que mantém sobre o projeto, a Belo Sun diz que realizou “voluntariamente” estudos sobre a presença indígena e que já respondeu “a todos os questionamentos” da Fundação Nacional do Índio (FUNAI).

A Belo Sun afirma que uma equipe liderada por antropólogos indigenistas usou dados, entrevistas e atuou várias semanas na região do projeto. “Não foram identificados impactos nos meios físico e biótico, assim como interações socioeconômicas e culturais que afetem o meio ambiente e os indígenas que ali vivem”, alega a mineradora.

Em nota, a ANM disse que “todos os processos estão no entorno das Terras indígenas, no entanto como a FUNAI vem revendo os limites destas Tis, é possível verificar que às vezes há uma pequena sobreposição, devido a modificação da base pela FUNAI. Mas fica claro pelo contorno dos processos que a ANM está limitando a área fora da TI”. Mesmo com essa justificativa técnica, não é isso, no entanto, o que mostra o mapa e os registros da Agência.

Procurada para comentar as alegações da ANM, a FUNAI respondeu que “de acordo com a Coordenação-Geral de Identificação e Delimitação (CGID/Funai), não há reivindicações de revisão de limites nas Terras Indígenas Trincheira Bacajá e Arara da Volta Grande do Xingu”.

Competência estadual ou federal para o licenciamento é questionado

Com a licença de instalação concedida pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) do Pará em 2017, iniciou-se uma batalha judicial que envolve ações civis públicas do Ministério Público Federal, do Ministério Público do Pará, da Defensoria Pública da União e da Defensoria Pública do Pará.

Os órgãos questionam legalmente não só os impactos diretos e indiretos em terras indígenas localizadas na região, como a aquisição de terras federais feita pela mineradora em assentamentos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a expulsão de moradores de suas casas e a degradação ambiental.

A competência da Semas em ser responsável pelo licenciamento é outro problema: a tentativa de federalizar a questão e levar a análise para o Ibama acumula decisões contrárias e favoráveis na justiça. No momento, está valendo a decisão de manter o licenciamento na esfera estadual, o que favorece a Belo Sun.

Em decisão de novembro de 2019 pela suspensão da licença de instalação, a Defensoria Pública do Pará afirmou que a suspensão demonstra a inviabilidade do empreendimento em função dos inúmeros danos que causará a comunidades tradicionais, ribeirinhos, povos indígenas e também pelo não cumprimento de condicionantes fundamentais do processo.

Cenário político favorável

Andreia Macedo Barreto, Defensora Pública Agrária do Estado do Pará que atua na região de Altamira, disse em entrevista à reportagem que os indígenas impactados não estão apenas dentro das terras citadas, mas espalhados ao longo do Rio Xingu e que a Belo Sun tem, também, a obrigação de respeitá-los e consultá-los.

Barreto afirma que o estado do Pará sabe que existem várias pesquisas minerais em curso, mas que “a Belo Sun age como se estivesse entrando em terra de ninguém”. Mesmo com o licenciamento suspenso, a Belo Sun teria “uma ingerência maior no Tribunal de Justiça do Pará”, além da proximidade com o governador, o secretário de Meio Ambiente, os prefeitos e políticos locais. “Isso ajuda o empreendedor a viabilizar os projetos”, acredita.

Além disso, as movimentações da Belo Sun na ANM levantam suspeitas. “Essa falta de controle principalmente das pesquisas é um problema. A ANM não tem comunicação com os órgãos ambientais que estão com os processos de licenciamento, que são diferentes. Às vezes isso é trágico porque ninguém consegue monitorar direito em função de milhares de coisas para fazer. Cada órgão fica no seu trabalho e as coisas vão sendo aprovadas”, conta Andreia.

A falta de comunicação relatada pela defensora pública se agrava pelo sucateamento de órgãos como a ANM, o Ibama e as secretarias estaduais, que não possuem equipe suficiente para arcar com os processos em curso. A própria ANM afirmou para a reportagem, respondendo a uma pergunta sobre um dos processos da Belo Sun, que “é preciso ter em vista que no Pará nós temos 21.707 processos minerários e esse é apenas um que está na fila para ser analisado”.

Para Andreia Barreto, as empresas se utilizam da falta de regulamentação da Constituição para realizar as pesquisas. A insegurança jurídica e política beneficia as mineradoras, que entram com pedidos, pesquisam, definem projetos e esperam a primeira brecha já com tudo pronto para encaminhar a exploração.

“Assim eles já sabem onde tem o minério. E essa pesquisa acontece muitas vezes até de forma escusa. Eles entram lá, ninguém sabe que é de uma empresa de mineração, mas a ANM autorizou. No caso das terras indígenas o ataque é claro”, afirma Barreto.

Para a defensora, é muito difícil ao poder político local resistir à mineração. As empresas encontram um ambiente muito favorável em função dos royalties milionários que a atividade gera, dividido entre os municípios, o estado e a União.  

“Essa questão financeira é muito forte. A empresa se organiza e encontra aliados. Isso faz com que tenham interesse de manter o licenciamento no âmbito estadual, não só juridicamente, mas na sua esfera de influência”, analisa.

O aspecto econômico foi fartamente utilizado pela Secretaria de Meio Ambiente do Pará ao aprovar a instalação da Belo Sun. Listando uma série de supostos benefícios financeiros e econômicos, a Semas afirmou na época que “serão mais de 60 milhões de reais somente em royalties de mineração em 12 anos, ou seja, R$ 5 milhões ao ano. Desse total, 65% serão destinados ao município. Em impostos, o empreendimento vai gerar cerca de 130 milhões de reais, em nível federal, estadual e municipal, durante o período de instalação. Uma vez operando, serão 55 milhões ao ano, também para impostos nas três esferas”.

Estado do Pará não comenta, MPF alerta para riscos em série

Procurada para comentar a situação, a Secretaria de Meio Ambiente do Pará se limitou a dizer que “desde 2017 o empreendimento segue com a Licença de Instalação suspensa até que seja apresentado o Estudo de Componente Indígena, conforme determinado pela justiça Federal em 2017. Sobre a competência do licenciamento, a Semas esclarece que em 2018 a Justiça Federal determinou que a responsabilidade é estadual”.

A secretaria não respondeu aos questionamentos da reportagem sobre os processos minerários e a sobreposição em terras indígenas.

Quando concedeu a licença para a Belo Sun, em 2017, a Semas afirmou que “solicitou para a empresa a elaboração de estudo de componente indígena, cuja medida é garantir a segurança das comunidades da região, apesar dos povos indígenas existentes estarem acima do o raio de 10km  de distância do projeto, o que não tornaria exigível tal estudo com fundamento na legislação que regulamenta a matéria.  O que também foi objeto de condicionante dentro do ato licenciatório”.

O Instituto Socioambiental alerta há muitos anos sobre os impactos definitivos sobre a Volta Grande do Xingu e que produtos químicos e rejeitos de mineração envolvidos no projeto da Belo Sun, como o cianeto, poderiam representar sérios riscos para o modo de vida dos indígenas da região.

Em outubro, o MPF recomendou ao governo do Pará a suspensão de todos os licenciamentos na Volta Grande do Xingu em função dos impactos em série que a obra de Belo Monte trouxe. No fim de novembro, o MPF pediu o cancelamento urgente dos processos minerários em 48 terras indígenas no estado.

Enquanto aguarda o julgamento na 2ª instância, no entendimento do MPF, a Semas e o governo paraense devem tomar medidas de cautela para proteger a Volta Grande, considerando que órgãos federais já se pronunciaram sobre a fragilidade da região.

O MPF alerta que o período de testes do chamado hidrograma de consenso, previsto nas licenças de Belo Monte, ainda nem começou. A previsão é que dure seis anos, a contar da conclusão total das obras da usina, que deve ocorrer agora em dezembro.

“Durante esse prazo, tanto Ibama, quanto Funai consideram que a instalação de qualquer novo empreendimento na mesma região representa riscos ecológicos e sociais muito altos. O MPF também realizou estudos técnicos que apontam para a mesma conclusão”, diz a nota.

Os procuradores também lembram que o projeto da Belo Sun prevê a construção de uma barragem de rejeitos e uma pilha estéril e, segundo a análise técnica do corpo de peritos do MPF, há risco real de rompimento que exige “cautela excepcional”, principalmente pela “potencialidade lesiva das substâncias armazenadas que, em contato com o curso d’água de um rio interestadual, pode assumir consequências incalculáveis, em especial no caso de estar o Xingu com a vazão reduzida”.

Em seu site, a Belo Sun afirma que a barragem prevista terá capacidade para 35 milhões de metros cúbicos de rejeitos ao fim de 12 anos de operação. Erroneamente, a empresa informa que isso seria “um terço” da barragem da Vale e BHP que se rompeu em 2015 em Mariana. Na verdade, essa capacidade pode ser até maior, já que as estimativas apontam que entre 32 e 43,7 milhões de metros cúbicos de rejeitos vazaram da barragem de Fundão.

O projeto da barragem da Belo Sun ainda contou com as mesmas empresas, VogBR e Brandt Meio Ambiente, que trabalharam para a Vale em Mariana e também em Brumadinho.

Um rompimento de barragem atingiria diretamente as comunidades da Volta Grande do Xingu e da Ilha da Fazenda até as terras indígenas Paquiçamba e Arara da Volta Grande, afirma o MPF.

Controladora da Belo Sun tem negócios no Brasil

A Belo Sun pertence ao grupo canadense Forbes & Manhattan Inc., uma empresa de capital fechado que desenvolve projetos internacionais de mineração. Fundado pelo engenheiro Stan Bharti, a Forbes & Manhattan explora ouro na África, metais ferrosos na Ucrânia, cobre, óleo e gás na América do Norte, e tem um vasto portfolio pelo mundo, incluindo a extração de xisto no sul do Brasil e de potássio no Amazonas.

A Belo Sun também está listada na bolsa de valores de Toronto. A mineradora canadense pretende investir R$ 4 bilhões no projeto de ouro no Pará, com a expectativa de extrair 4.684 quilos de ouro por ano. Na cotação atual, isso significaria um faturamento anual aproximado de R$ 904 milhões. Os investidores avaliam desde o início duas possibilidades: a de abrir o capital da Belo Sun na Bovespa e a de obter empréstimos do BNDES.

Não é a primeira vez que Stan Bharti explora ouro no Brasil. O executivo teve participação na mina de Jacobina na Bahia, uma das maiores do país, e depois vendeu o capital para a Yamana Gold. “Os preços do ouro se fortaleceram nos últimos meses e acredito que este é apenas o começo. Parece que estamos novamente à beira de uma grande corrida por ouro”, declarou Bharti em agosto de 2019.

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