Por Luisa Campos*
Se as consequências para o meio ambiente do rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, que completa 4 anos neste 25 de janeiro, são evidentes, o abalo na saúde mental das populações atingidas é mais difícil de ser percebido.
A negligência por parte da Vale e do poder público se agrava com a ausência de reparação digna e com a morosidade no julgamento dos responsáveis pelo rompimento. Atualmente, os crimes podem prescrever.
Em dezembro de 2022, o Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria para que o julgamento da ação sobre os 270 homicídios passasse a ser de competência federal.
No último dia 18 de janeiro, Rosa Weber, ministra do STF, determinou que a Justiça Federal de Belo Horizonte dê prosseguimento imediato à ação penal que apura os crimes relacionados ao rompimento, que está sob risco de prescrição dos danos ambientais. O MPF ratificou a denúncia, que foi aceita pela justiça.
16 pessoas físicas, incluindo o ex-presidente da Vale, Fabio Schvartsman, foram denunciadas por homicídio qualificado (270 vezes), crimes contra a fauna, crimes contra a flora e crime de poluição. A Vale e a empresa alemã Tüv Süd, responsável por atestar a estabilidade da barragem, foram acusadas por crimes contra a fauna, contra a flora e crime de poluição.
Comprometimento da saúde mental agravado pela expectativa de justiça
“Há quatro anos a população de Brumadinho está em processo de adoecimento. A lama continua na cidade, a empresa que matou 270 pessoas está na cidade, as pessoas que deixaram o crime acontecer não foram julgadas”, afirma Kenya Lamounier, psicóloga na Prefeitura de Brumadinho há 20 anos e que, há dez, está na Coordenação de Saúde Mental do município.
Esposa de Adriano Lamounier, funcionário da Vale morto no rompimento, Kenya é, também, membro da Diretoria da Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem Mina Córrego do Feijão (Avabrum), associação criada em agosto de 2019 para manter viva a memória das vítimas fatais e fortalecer a luta das pessoas atingidas de Brumadinho por justiça.
Vivenciar o cenário da perda de familiares no rompimento, das bruscas mudanças no cotidiano e dos impactos no meio ambiente, por si só, já é traumático. Entretanto, a ausência de justiça reforça o estado de espera em que grande parte dos moradores de Brumadinho está imerso desde 2019, aprofundando o trauma.
“Tudo que aconteceu já facilita o processo de adoecimento. E a ausência de justiça, o aguardo por punição, alimenta uma ansiedade. A cada dia mais, isso traz quadros de adoecimento, como atingiu e atinge os familiares, como uma marca cirúrgica que não tem como curar. A única coisa que temos são as 270 pessoas mortas e, de resto, a expectativa de justiça”, explica.
Um estudo desenvolvido pela Fundação Oswaldo Cruz, em parceria com a Faculdade de Medicina e com a Faculdade de Farmácia, ambas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), examinou a prevalência de sintomas psiquiátricos e seus fatores associados na população adulta de Brumadinho após o rompimento da barragem.
Foram entrevistadas 2.740 pessoas acerca dos sintomas de estresse pós-traumático, depressão, ansiedade, ideias de morte/automutilação e piora na qualidade do sono. O estudo identificou uma prevalência de todas as condições, com maior presença da depressão (29,3%), seguida pelos sintomas de estresse pós-traumático (22,9%) e sintomas de ansiedade (18,9%).
A pesquisa ressalta que a magnitude do acontecimento, o alto número de óbitos, a destruição de casas e espaços públicos, além da exposição direta e indireta da população à lama, água e poeira contaminada por metais pesados, juntamente da destruição ambiental, são importantes fatores de impacto negativo na saúde mental de quem sobreviveu ao rompimento.
Para a psicóloga, os números relacionados à saúde mental representam apenas uma ponta de uma complexa cadeia de consequências que, muitas vezes, se manifestam anos depois de um acontecimento traumático.
“Os casos de depressão, ansiedade, uso de álcool e outras drogas são altamente preocupantes. E sabemos que fazem parte de uma série de problemas: o aumento dos crimes, da insegurança pública, a falta de motivação das crianças para irem à escola porque vivenciam situações delicadas em casa desde o rompimento. São várias camadas de uma complexa problemática”, afirma.
Atuando há duas décadas no setor de Saúde Mental da Prefeitura de Brumadinho, Kenya participou da estruturação de uma equipe composta por psicólogos e psiquiatras nas unidades de saúde, com o objetivo de acompanhar as pessoas que adoeceram a partir do rompimento.
O que está nítido para a profissional é que o dinheiro recebido como indenização às famílias que perderam parentes trabalhadores da mineradora auxilia a disfarçar a seriedade do adoecimento e a urgência de cuidados específicos para essas questões: “Quando o dinheiro da indenização acabar, os sintomas estarão bem mais crônicos e agravados. Temos uma população que toma muito mais remédio para dormir, por exemplo. E detalhe: as questões psiquiátricas alteram o funcionamento orgânico do corpo. Por consequência, vemos um número maior de casos de diabetes, de problemas no coração, obesidade”, conta Kenya.
Mortes violentas aprofundam sofrimento mental
“Dói demais o jeito que vocês se foram”. Os dizeres estampam blusas de familiares, e cartazes nos momentos de manifestação e homenagem às vítimas fatais. A maneira em que as pessoas morreram no rompimento, as dinâmicas de busca e identificação dos restos corpóreos, o velório e o enterro do que foi possível encontrar de um parente, aprofundam o trauma.
Dificilmente quem enterrou um amigo ou familiar nessas condições consegue viver os dias posteriores sem sentir abalos na saúde.
“A morte já é um processo difícil porque é para sempre. Mas quando a forma vem imbuída de um crime, e esse crime não tem justiça, é quase impossível elaborar o luto, além da forma brutal que as vítimas nos foram entregues. Enterrei meu marido no dia 20 de fevereiro de 2019 e me dei conta que ele foi todo minerado, não tinha nada para enterrar. Enterrei o nada que eles me deram do meu marido. E agora?”, relembra Kenya.
Mesmo em casos em que seria possível a família fazer a identificação visual das vítimas, o Instituto Médico Legal de Minas Gerais optou por fazer a identificação por meio científico – ainda que alguns corpos chegassem completos ao IML, estavam muito prejudicados pela densidade da lama, composta por metais pesados. Nos meses seguintes ao rompimento, dos 950 casos analisados pelo IML, somente 28% correspondiam a novas identificações, o que constatou o grau de violência da lama de rejeitos ao segmentar os corpos das vítimas.
A psicóloga e atingida Kenya comenta que no IML ainda constam muitos segmentos corpóreos que as famílias se recusam a enterrar enquanto não encontrarem o restante. Para evitar que a destinação seja para valas comuns, a Avabrum estruturou a ideia de um memorial. O espaço será reservado para manter os restos corpóreos em Brumadinho e preservar a memória das vítimas.
Entretanto, há um novo conflito em cena: a Vale, que inicialmente ficaria responsável apenas pelos recursos financeiros necessários para viabilizar o memorial, agora disputa a governança da construção.
“A Vale diz que o memorial é uma homenagem dela para as vítimas, mas a nossa briga é que não autorizamos a existência do memorial se a governança não for da Avabrum. O memorial não é um sonho, o nosso sonho era que a barragem não tivesse rompido. Mas é uma esperança de finalizar o pesadelo que vivemos. Enquanto procuram, sei que podem encontrar mais coisas do meu marido, do marido da outra, do filho da outra. Se a morte ainda não foi consumada, o ciclo da morte nunca é fechado”, desabafa Kenya.
“A lama atravessou a minha alma”
Em 2016, Fernanda Perdigão se mudou de Belo Horizonte para Piedade do Paraopeba, distrito de Brumadinho, para realizar o sonho de trabalhar com agricultura familiar. No projeto “Amor se espalha”, Fernanda buscava as frutas e verduras produzidas pelas famílias da região e vendia à população produtos livres de agrotóxicos. Dois anos mais tarde, o projeto já rendia frutos e a empreendedora social, que antes atuava como técnica em segurança do trabalho, também se tornou sócia de uma pousada, trabalhava em um restaurante, além de criar os dois filhos pequenos.
Com o rompimento, tudo que a empreendedora construiu junto da comunidade de Piedade foi destruído. Além dos ganhos financeiros, houve um abalo completo nos modos de vida, sonhos e perspectivas de futuro.
“A secretária de agricultura de Brumadinho me questionou se a lama havia chegado no meu quintal e destruído minha plantação, uma vez que estávamos distante da mancha de inundação. A lama não atravessou o meu quintal, ela atravessou a minha alma. Ela destruiu tudo que construí em cinco anos”, conta Perdigão.
A pousada que Fernanda era sócia já não tinha mais recursos financeiros, os turistas brasileiros e estrangeiros não faziam mais reservas diante do medo de novos rompimentos e do estigma da contaminação por metais pesados, o que também cancelou o projeto de agricultura familiar e colocou em risco toda uma cadeia de pequenos produtores.
A dor de uma comunidade virou mobilização. Ainda em 2019, foi criado o Comitê Popular de Piedade do Paraopeba e organizado o primeiro fórum de atingidas e atingidos pelo crime da Vale, que concentrou as lutas de vários grupos sociais por justiça e reparação. Nesse período foi estruturado, também, o Paraopeba Participa, rede de articulação de pessoas atingidas da Bacia do Paraopeba. Entretanto, a forte atuação de Fernanda enquanto defensora dos direitos das pessoas atingidas começou a gerar retaliações. Inserida em um programa de proteção a defensores de direitos humanos, a empreendedora social precisou se mudar de Brumadinho.
Diante de tantos impactos, Fernanda acredita que é quase impossível conseguir manter a saúde física e mental intactas. “Falo por mim, mas isso se estende a todas as pessoas atingidas. Investi em um sonho, me dispus a sair de um centro urbano em busca de qualidade de vida, do nada tudo foi tirado de mim. Me adaptar à nova realidade que está sendo imposta é muito brutal. Você vê seus negócios, seus investimentos parados e não tem o que fazer”.
Suicídios aumentam em Brumadinho após o crime da Vale
O impacto na cadeia econômica, a destruição de perspectivas de futuro, além das constantes dificuldades de comprovação dos danos do rompimento, são outros fatores que contribuem para o adoecimento.
Em setembro de 2022, o melhor amigo de Fernanda, que também atuava como chefe de cozinha ao lado da empreendedora, cometeu suicídio.
“Piedade do Paraopeba ficou isolada, a única rota de acesso foi destruída. Era muito difícil conseguir qualquer tipo de amparo. Naquele dia acordei às 4 da manhã com a mãe do Jhonny me ligando. Em função da perda econômica, a Vale estava se recusando a reconhecê-lo como atingido e não parava de pedir documentos, mesmo ele já tendo comprovado que era morador e trabalhador do distrito. Ele se suicidou e isso é muito traumático. Tem a perda de vidas, do meio ambiente, dos projetos. Mas também tem as perdas das pessoas depois do rompimento. É um contexto tão pesado que é impossível não ter impacto na saúde mental”, desabafa.
O exemplo de Jhonny alerta, também, para a subnotificação dos casos de suicídio ao longo da Bacia do Paraopeba após o rompimento em Brumadinho.
Compartilhando do mesmo sentimento de Kenya, a ausência de justiça aprofunda as marcas dos traumas e complexifica as condições de saúde que as populações atingidas ao longo da Bacia do Paraopeba são acometidas.
“É uma tortura coletiva, cada dia tem um problema novo. Mas a maior perda de todas é a de justiça. A perda humana dói demais, mas se você tem o sentimento de justiça pela perda, há um conforto na alma. Nós entenderíamos que as leis e as punições são cumpridas, mas isso não existe”, afirma.
As bruscas mudanças no cotidiano afetaram não só Fernanda, mas também seus filhos. O apoio psicológico para a família aconteceu por meio de amigos, que se disponibilizaram a conseguir profissionais da saúde mental de forma gratuita, o que, para ela, é um privilégio.
“Há um acúmulo de danos emocionais e físicos. Os físicos já foram comprovados de várias formas, com análises ambientais das Assessorias Técnicas Independentes, os estudos da Fiocruz e da UFRJ, e mais recentemente das bactérias que ficaram resistentes a antibióticos pelo contato com os metais pesados”.
De acordo com ativista, um protocolo de saúde específico para pessoas atingidas por desastres não foi implementado, e os médicos não têm preparo o suficiente para atender pessoas que estão com dermatites decorrentes da contaminação por metais, ou mesmo sabem orientar quais procedimentos precisam ser feitos.
Em Aranha, distrito de Brumadinho, a cada 80 crianças, 40 apresentam índice de arsênio na urina. Os casos de diarreia entre crianças e adultos também é alto, e as orientações mais comuns pelos profissionais de saúde é o mesmo adotado para tratamento de viroses.
Vale diz que profissionais prestam atendimento psicossocial especializado
Em 2021, a Vale foi condenada pela Justiça do Trabalho a pagar indenização de R$1 milhão por danos morais para herdeiros de trabalhadores mortos no rompimento. A mineradora considerou “absurdo” e “exorbitante” o valor e a disputa segue na justiça.
Questionada sobre as ações de atenção à saúde mental, a Vale afirma que o principal mecanismo de apoio é o Programa de Referência da Família, “criado ainda em 2019 para prestar assistência psicossocial às famílias elegíveis de Brumadinho, região e municípios impactados pelas remoções de território”.
De acordo com a mineradora, entre as ações colocadas em prática, há uma equipe de profissionais que já atendeu cerca de 3,3 mil pessoas e, ao todo, já foram destinados aproximadamente R$52 milhões a atendimentos psicossociais e R$46,6 milhões a atendimentos médicos. Além desses valores, outros R$32 milhões foram repassados à Prefeitura de Brumadinho, por meio de um acordo de cooperação, para a ampliação do atendimento de saúde e assistência social no município.
Em abril deste ano, o órgão regulador do mercado de capitais americano (SEC, na sigla em inglês) processou a Vale nos Estados Unidos por prestar informações mentirosas sobre a segurança de suas barragens antes do rompimento de Brumadinho.
A Vale enganou governos locais, comunidades e investidores, manipulando auditorias de segurança de barragens e obtendo certificados de estabilidade fraudulentos por meio de suas divulgações ambientais, sociais e de governança (o tal ESG), a partir de 2016, disse a U.S. Securities and Exchange Commission em comunicado.
No Brasil, a fiscalização de barragens realizada em campo caiu mais de 90% desde 2019, o que evidencia o risco permanente que populações ao redor dessas estruturas correm. Em Minas Gerais, que concentra o maior número de barragens de mineração, 26 estruturas estão em nível de emergência, sendo três na categoria mais elevada, que representa risco de rompimento.
* Luisa Campos é jornalista pela Universidade Federal de Ouro Preto e mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Tem experiência em coberturas relacionadas ao meio ambiente, sustentabilidade, neoextrativismo, mineração e justiça social. É vencedora do 10º Prêmio Délio Rocha de Interesse Público, do Sindicato dos Jornalistas de Minas Gerais, com a reportagem “Marcas invisíveis”, produção que investigou o descaso com a saúde mental da população de Barra Longa (MG), cidade atingida pelo rompimento da barragem de Fundão, ocorrido em 2015. Enquanto pesquisadora, é aliada da luta das pessoas atingidas por rompimentos de barragens, e tem como temas de estudo os conflitos socioambientais, as memórias, traumas e testemunhos dos sobreviventes.