Na última sexta-feira, 18 de dezembro, o trabalhador Júlio César de Oliveira Cordeiro morreu soterrado enquanto operava uma retroescavadeira em área de uma cava de rejeitos da Vale em Brumadinho, mesmo local onde a barragem se rompeu em janeiro de 2019 matando 270 pessoas. Júlio Cordeiro, 34 anos, deixou a esposa e um filho de apenas 3 meses.
Documentos analisados pela reportagem mostram que pelo menos 2 semanas antes do deslizamento do talude que causou o soterramento a Vale foi alertada sobre os possíveis riscos da operação naquela área, que chegou inclusive a ser paralisada pela Agência Nacional de Mineração (ANM).
Os documentos mostram também que a previsão era de que até o início de fevereiro a movimentação do material seria feita por uma operação remota, sem a presença de um trabalhador dentro do equipamento.
As afirmações constam no “Auto de Fiscalização número 52353” da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) de Minas Gerais de 04 de dezembro de 2020. Leia o documento completo.
Os servidores informam que realizaram a fiscalização da Cava de Feijão e da área da antiga Barragem B1, que rompeu. Os rejeitos remanescentes da barragem estão sendo depositados na cava, processo licenciado em 2019. É a área em que Júlio Cordeiro, contratado por uma empresa terceirizada pela Vale, trabalhava em “atividades de manutenção”, segundo a mineradora.
O documento da Semad afirma que “na data de fiscalização, o sistema estava paralisado por determinação da ANM”. Prossegue: “Foi informado de que está sendo tomadas algumas medidas de segurança para que as atividades retornem”.
Os fiscais alertam inclusive sobre os riscos de “um possível acidente”. Diz o texto:
“O ponto 1, localizado na cota mais próxima do N.A. (Nível de água), será feito uma redução da inclinação das vias de acesso, para evitar um possível acidente provocado por inclinação a qual provocaria um aumento da velocidade do veículo. Nos pontos 3 e 4 serão instalados sistemas de controle que impedirão o basculamento dos veículos em áreas de risco, ou zonas quentes. O ponto 2 está interditado até novas averiguações”.
O Auto de Fiscalização número 52353 também diz que “a operação de disposição de rejeito se dará com basculamento do material dentro de uma faixa de segurança com posterior arraste através de equipamentos de menor porte”. Em 60 dias (até 04 de fevereiro, portanto), diz o documento, “ocorrerá este serviço de movimentação do material através de equipamentos de operação remota, sem operador dentro do equipamento”.
Questionada por mim sobre os fatos listados no Auto de Fiscalização da Semad, os alertas feitos, a paralisação pela ANM e os planos de utilizar operação remota, a Vale respondeu apenas que “os fatos relativos ao acidente seguem em apuração. A Vale lamenta profundamente o ocorrido e está apoiando as autoridades nas investigações”.
A Semad não se manifestou até a publicação desta reportagem. A assessora da Agência Nacional de Mineração disse que está de licença médica e que é a única pessoa respondendo pela comunicação no momento. Via Lei de Acesso à Informação, a ANM negou o pedido de acesso ao documento em que paralisou as atividades na cava alegando “sigilo”.
O Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), que anunciou após a morte de Júlio Cordeiro que vai abrir inquérito para investigar as atividades da Vale e que “vem acompanhando as investigações conduzidas pela Polícia Civil acerca de possível responsabilidade criminal” afirmou ao Observatório, sobre os fatos listados aqui, que “está ciente das informações repassadas e adotará todas as medidas cabíveis concernentes aos fatos”.
Grupo de Mineração da CNBB denunciou o caso
O Grupo de Trabalho de Ecologia Integral e Mineração, do Regional Leste 2 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em conjunto com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Rede Igrejas e Mineração e outras entidades, analisou os documentos e denunciou as circunstâncias encontradas no caso.
Segundo nota de 19 de dezembro, o GT e as organizações “exigem do sistema de justiça urgente apuração sobre as circunstâncias e local do óbito do trabalhador terceirizado da Vale Júlio César de Oliveira Cordeiro”.
Além de destacar o que está no Auto de Fiscalização da Semad citado aqui, o GT também questiona o licenciamento simplificado concedido para a disposição de rejeitos na cava pela Superintendência de Projetos Prioritários (Suppri), vinculada à Semad, em dezembro de 2019.
A “Licença Ambiental Simplificada (LAS/RAS)”, diz o texto, é “a mais simples das modalidades de licença” e “tal fato surpreendeu muito na ocasião”, afirmam.
Embora o parecer da Suppri diga que a área da cava está em uma região de “muito alto grau de potencialidade de ocorrência de cavidades na área do empreendimento ou em seu entorno numa faixa de 250 metros”, termina afirmando que “não haverá impacto nessas cavidades”. Para o GT, essa seria “uma contradição”.
O parecer da Suppri diz que “a disposição de rejeitos em cava é uma solução positiva de contenção emergencial do rejeito” por, entre outros fatores, permitir “a continuidade do manejo e disposição de rejeito durante o período chuvoso” sem a “necessidade de construção de barramentos, diques e novas estruturas de contenção”.
O texto afirma que “é necessário ainda realizar o monitoramento das condições estruturais e geotécnicas para garantir boa condição de segurança e funcionamento das estruturas que compõem a cava” e coloca uma série de condicionantes que a Vale deveria cumprir.
Questionada pela reportagem, a Semad, como não se manifestou, não disse se a Vale estava cumprindo ou não estas condicionantes. A Vale também não se pronunciou sobre o cumprimento das suas obrigações listadas pelo parecer.
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