Por Paulo Motoryn e Pedro Pligher*, para o Observatório da Mineração
Edição: Maurício Angelo
A renovação da matriz energética brasileira caminha a passos lentos. A expansão do mercado de hidrogênio verde no país, energia renovável capaz de substituir combustíveis fósseis, como o petróleo, mostra que o compromisso dos atores envolvidos no tema não é com uma transição energética sustentável, mas com a maximização do lucro de grandes empresas. A constatação é de especialistas e entidades que atuam no tema.
Com poucas vantagens econômicas para as empresas, o H2V, como é conhecido o hidrogênio verde, deve ser mais um produto a ser exportado pelo Brasil e explorado para o crescimento do agronegócio, do que propriamente uma alternativa energética.
No processo, o H2V é obtido pela eletrólise da água, através de uma corrente elétrica advinda de energias renováveis, como a eólica e solar. O mesmo procedimento também pode ser feito por uma corrente de energia elétrica. O custo de produção é de US$ 6 por kg nas fontes limpas. Por energias fósseis, é de US$ 2.
Um estudo de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), publicado no International Journal of Hydrogen Energy e revelado pela EPBR, vai na mesma conclusão de Matsumura, de que a venda do H2V é mais lucrativa do que sua transformação em energia.
O texto afirma que a transformação energética teria custo competitivo só com sistemas dedicados em tempo integral ao H2V. Segundo explicou Drielli Peyerl, co-autora do estudo, à EPBR, “quanto maior o número de horas que a planta estiver dedicada à produção de hidrogênio, maior é a viabilidade econômica do projeto”.
Legenda da imagem de destaque: Autoridades no lançamento da pedra fundamental do Centro de Hidrogênio Verde, na Universidade Federal de Itajubá, em Minas Gerais, com investimento alemão
Governo & H2V: projetos tocados por empresas estrangeiras com foco na exportação para a Europa
Com vantagens comparativas para o desenvolvimento do hidrogênio verde, o Brasil vem tendo pouca capacidade e investimento nacional para liderar o tema de forma global. Segundo artigo publicado pelo Observatório Brasileiro de Política Externa, formado por acadêmicos de diferentes universidades, o que une os poucos projetos nacionais de hidrogênio verde é “o fato de serem tocados por empresas estrangeiras com foco na exportação para a Europa”.
De acordo com uma projeção da McKinsey & Company, o uso de hidrogênio verde poderia evitar a emissão de 75 milhões de toneladas de CO2 em 2040 no Brasil. Mas, para que isso seja alcançado, segundo a consultoria, o país precisa assumir compromissos mais claros em relação à tecnologia e realizar os investimentos necessários para sua implantação.
Nos últimos meses, ministros e órgãos do governo Bolsonaro têm aprofundado as ações – ou, pelo menos, as divulgações – relacionadas ao tema. A principal delas ocorre justamente com investimento estrangeiro e, apesar do pretexto sustentável, deve servir de apoio a grandes empresas do agronegócio e mineradoras.
Projeto de hidrogênio verde em Minas Gerais com investimento alemão envolvendo Vale e Amaggi caminha lentamente
Na Universidade Federal de Itajubá (Unifei), em Minas Gerais, o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) fez um aceno às indústrias europeias. Com investimento de 34 milhões de euros do governo alemão, o Centro de Produção de Hidrogênio Verde (CPPHV) deve ser inaugurado em 2023.
Segundo a universidade, “o objetivo do centro é ajudar as empresas nacionais na transição energética, trocando o uso de combustíveis fósseis pelo hidrogênio”. No entanto, especialistas apontam que o mercado do combustível no Brasil deve focar na exportação do produto.
O CPPHV contará inicialmente com uma capacidade de 1 MW de eletrólise, abastecida por energia solar. Em novembro passado, a Unifei afirmou que estava assinando “memorandos de entendimento com empresas privadas instaladas em solo mineiro”.
Em novembro de 2021, a universidade afirmou que empresas como CEMIG, Fiat Stellantis, Amaggi e Vale estariam em contato com a instituição para parcerias no setor.
Por meio de nota enviada pelo Ministério de Minas e Energia (MME), “no caso da participação de empresas em atividades desenvolvidas pelo projeto, todas as contrapartidas são definidas a priori. E as obrigações e responsabilidades dos participantes são registradas em acordos de cooperação ou memorandos de entendimento, a fim de dar previsibilidade aos resultados a serem entregues por cada parte”.
O Observatório da Mineração consultou o Diário Oficial da União e o Portal da Transparência e confirmou que, até o momento, não houve a publicação de nenhum documento oficial que mencione a participação de empresas privadas no projeto.
Apesar do projeto caminhar a passo lentos, políticos e chefes da Esplanada têm tentado surfar na onda do centro de hidrogênio verde. O ministro da Educação, Victor Godoy, esteve na semana passada na Unifei, para o lançamento da pedra fundamental do CPPHV. Na cerimônia, também estiveram presentes representantes do MME, do governo de Minas Gerais e, de forma remota, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).
O novo ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações, Paulo Alvim, afirmou, em maio, que o governo vai lançar nos próximos dias uma “grande chamada” para empreendedores e pesquisadores envolvidos na área de combustíveis e hidrogênio verde, iniciativa que teria investimento de R$ 100 milhões.
A participação alemã se explica pelo protagonismo que o país assumiu no uso do H2V. A Alemanha anunciou, em 2019, investimento público da ordem de US$ 10 bilhões em sua estratégia de hidrogênio até 2030. O volume de subsídios que o pais prevê para apoiar investimentos de produção e uso do hidrogênio para os próximos 10 anos equivale ao que foi investido no mundo inteiro em pesquisa e desenvolvimento em tecnologias do hidrogênio entre 2002 e 2017.
Vale e Amaggi: os possíveis reais interesses no CPPHV
O Observatório da Mineração contatou duas das empresas especuladas pela Unifei como parceiras do CPPHV: a Amaggi, ligada ao ex-ministro da Agricultura de Michel Temer (MDB), Blairo Maggi, e a Vale, responsável pelos rompimentos das barragens de Brumadinho e Mariana (esta da Samarco, mineradora operada pela Vale em sociedade com a BHP).
A primeira negou que tenha qualquer parceria com o governo federal ou ação no tema do hidrogênio verde, enquanto a segunda não respondeu aos questionamentos da reportagem.
A entrada de empresas descomprometidas com a questão ambiental no mercado de hidrogênio verde tem explicação.
O agronegócio brasileiro enxerga o hidrogênio verde como uma “solução” de um problema do setor: a escassez de fertilizantes para as plantações de soja. A molécula pode ser fonte abundante de matéria-prima para a produção de insumos agrícolas, reduzindo a dependência da importação desses produtos.
Conhecido como o “rei da soja”, Blairo Maggi, ex-ministro da Agricultura do governo Temer, ex-senador e ex-governador do Mato Grosso, é o principal nome por trás da Amaggi, empresa familiar e gigante do agronegócio brasileira que atua no cultivo, comercialização e logística de grãos, especialmente soja. O faturamento estimado da Amaggi para 2021 ficou em R$ 44 bilhões.
A Amaggi anunciou sociedade com a Potássio do Brasil para oferecer a logística para o escoamento da controversa mina de potássio no Amazonas que, até hoje, passou por cima dos direitos indígenas. Jair Bolsonaro prometeu para a Forbes & Manhattan, grupo canadense dono da mina, “empenho para destravar” o projeto.
A Vale, que tem ferrovias no Pará e no Maranhão impactando comunidades locais, teria conversado com a Unifei para uso do H2V em veículos off-road, trens e siderurgia. A empresa não respondeu às questões enviadas pela reportagem sobre parcerias com o CPPHV.
Este não é o primeiro movimento da Vale para uma posição “mais verde” no mercado. Lentamente, ainda muitíssimo distante de qualquer mudança concreta e de impacto significativo diante do que as suas atividades representam, a Vale tem apostado, por exemplo, em anunciar navios mineraleiros – gigantes com capacidade para transportar até 325 mil toneladas de minério por vez – que “reduzem emissões” com bolhas de ar ou velas.
O H2V é mais uma aposta de mineradoras gigantes como a Vale para uma “maquiagem verde” eficaz. Em todo o mundo, grandes empresas tem feito anúncios pomposos de uma suposta sustentabilidade enquanto o grosso de suas atividades continua emitindo quantidades imensas de gases que aceleram a crise climática e as empresas colecionam violações de direitos humanos.
Hidrogênio, se usado corretamente, pode contribuir para a descarbonização do setor mineral
Segundo Matsumura, uma das possibilidades com o hidrogênio verde é da fabricação do chamado “aço verde”, isto é, o aço “descarbonizado”, produzido através de energia renovável, como o H2V.
“Não vamos exportar moléculas de H2V, mas produtos associados ao H2V”, afirma.
A indústria do aço, campo de atuação da Vale, é uma das mais poluentes do mundo.
Exceto pelo setor energético, a siderurgia é o setor industrial que mais emite CO2, sendo responsável por cerca de 9% do total global de emissões diretas de combustíveis fósseis, de acordo com a World Steel Association.
A maior parte das emissões do processo ocorre na etapa de redução do minério de ferro para a produção do ferro-gusa, na qual o ferro é separado do oxigênio com uso de um agente redutor.
Na rota dominante para produção de aço, a reação ocorre em altos-fornos usando coque de carvão mineral como agente redutor, o que responde pela emissão global de cerca de 2,5 bilhões de tCO2 por ano para a atmosfera.
O hidrogênio como alternativa tecnológica pode impactar diretamente nesse processo pela produção de um produto intermediário chamado ferro-esponja (ou Direct Reduced Iron), que não passa pelo estado líquido. O produto final, briquetado (Hot Briqueted Iron), facilmente estocável e transportável, é uma alternativa à exportação do minério bruto.
O H2V pode descarbonizar fortemente o processo de produção do aço e também reduzir as emissões do transporte marítimo, quando comparado com a exportação do minério bruto.
A produção de DRI com gás natural é uma tecnologia consolidada que oferece uma redução de 60% das emissões quando comparado com o processo padrão no alto-forno.
Dependendo da configuração da planta, o processo facilita o sequestro e o uso ou a estocagem do CO2 residual gerado no processo com gás natural ou biogás. Além disso, o processo permite a substituição do gás natural por hidrogênio, permitindo assim uma produção sem emissões relevantes de CO2.
A concretização dessas possibilidades, porém, depende de um compromisso real das empresas não só com a implantação e o uso do hidrogênio verde em toda a cadeia minero-siderúrgica, mas na redução significativa da energia geral consumida, do uso massivo de água que a mineração demanda e, claro, em uma atuação que respeite o meio ambiente e os direitos humanos.
Algo totalmente distante da realidade atual do setor mineral brasileiro. Por enquanto, o chamado “greenwashing” ou “maquiagem verde” ainda é o fator dominante nos anúncios e parcerias, tímidos e incipientes, que mineradoras e siderúrgicas tem feito.
AUTORES
*Paulo Motoryn é jornalista formado na PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Repórter de política. Trabalhou nas redações do site Poder360, do jornal Lance! e da revista Brasileiros. É correspondente do Brasil de Fato, em Brasília.
*Pedro Pligher é jornalista formado pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Repórter de política. Trabalhou na redação do site Poder 360, onde atuou na cobertura de temas ligados aos Três Poderes.