O rombo causado pela sonegação em série e a falta de capacidade de fiscalização faz com o que o cenário de pagamento dos “royalties da mineração” represente um buraco de arrecadação federal que seria relativamente simples de resolver, mas que permanece como vantajoso para as empresas que exploram as fragilidades institucionais do Estado brasileiro.
Um relatório publicado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) confirma análises anteriores do próprio TCU e aponta uma sonegação de Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (Cfem) de quase 70% em seis anos. “Em média, 69,7% dos titulares de 30.383 processos ativos nas fases de concessão de lavra e de licenciamento não pagaram espontaneamente a Cfem, enquanto o percentual médio de sonegação entre os 9.202 processos ativos cujos titulares pagaram espontaneamente a Cfem encontra-se na faixa de 30,5% a 40,2%”, aponta o relatório.
Ou seja: a maioria (70%) simplesmente não pagou a Cfem, tanto no licenciamento quanto na lavra, e outra parte, significativa, pagou parcialmente, com sonegação ultrapassando 40% dos casos. Os auditores explicaram que não há dados suficientes para estimar o valor total da sonegação porque a Agência Nacional de Mineração (ANM) não elaborou previsões para cada receita, “descumprindo dispositivo do seu regimento interno”.
As alíquotas da Cfem variam de um mínimo de apenas 1% sobre rochas, areias e outras substâncias usadas na construção civil até o máximo de 4% sobre a receita bruta da mineradora. A alíquota base do minério de ferro, principal produto da mineração brasileira, é de 3,5%, mas esse valor é reduzido de acordo com vários critérios.
As empresas pagam “espontaneamente” o boleto emitido no site da ANM, que calcula o valor devido com base nas informações que o próprio minerador fornece. Por ser autodeclaratório, o nível de fraude é altíssimo.
Em janeiro, o Observatório da Mineração mostrou que as mineradores podem ter sonegado R$ 35 bilhões em Cfem nos últimos cinco anos, a partir de análises anteriores do próprio TCU, da Controladoria Geral da União (CGU) e da Federação Brasileira de Associações de Fiscais de Tributos Estaduais (Febrafite), reconhecidos pela ANM. A cada 1 real pago em CFEM, pelo menos 1 é sonegado.
A conclusão do relatório destacou quatro pontos: elevado e persistente índice de sonegação da Cfem; fiscalizações insuficientes para coibir a ação; elevadas perdas de créditos minerários por decadência e prescrição; e pagamentos vinculados a processos sem título minerário outorgado e vigente.
Há ainda, diz o relatório, “um risco potencial de perda” adicional de R$ 20 bilhões na receita dos royalties da mineração por falta de fiscalização que devem prescrever nos próximos anos. O montante é referente aos 12.243 processos de cobrança de Cfem com créditos já lançados, mas pendentes de constituição. De 2017 a 2021, a receita perdida foi de R$ 4 bilhões, com créditos decaídos e prescritos na Cfem e na Taxa Anual por Hectare (TAH). A auditoria foi feita pela Unidade de Auditoria Especializada em Petróleo, Gás Natural e Mineração (AudPetróleo) a partir de um despacho de 2022 do ministro Benjamin Zymler.
A postura das mineradoras foi criticada por Fabiano Angelico, doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de Lugano (USI) na Suíça e em Administração Pública pela FGV EAESP. “As empresas do setor minerário, basicamente, pagam a Cfem se quiserem porque não tem capacidade de fiscalização e ainda existe esta questão da prescrição. Então, o quadro que o relatório indica é desesperador”, afirmou.
Imagem de destaque: Trem da Vale na Estrada de Ferro Carajás, que cruza do Pará ao Maranhão / Ingrid Barros – Observatório da Mineração
Prejuízo ao setor público
O especialista ressaltou que o impacto da sonegação é gigantesco porque quanto menos recurso tiver o setor público menos qualidade terá a política pública.
“O setor privado gasta muito dinheiro com essa parte de relações públicas, mas na verdade muitas empresas não pagam os seus impostos adequadamente. Então isso revela uma hipocrisia gigantesca por parte de alguns setores do empresariado brasileiro. Se a gente quiser uma sociedade realmente funcional e justa é preciso que as pessoas físicas e jurídicas deem a sua contribuição, que em um estado de direito e em uma democracia se dá pelo pagamento de impostos”, ponderou Angelico.
Conforme a auditoria, a sonegação da Cfem e a decadência e prescrição de créditos dela decorrentes “prejudicam a União, os estados/Distrito Federal e municípios produtores e afetados, incluindo a própria ANM, que poderiam se beneficiar de bilhões de reais a mais por ano em arrecadação”.
Além da gigantesca sonegação de Cfem, com distorções e benefícios que até o momento tendem a serem ampliados com a reforma tributária em curso, mineradoras ainda gozam de diversos benefícios fiscais, especialmente as que atuam na Amazônia e um projeto de lei voltado aos minerais críticos, fundamentais para a transição energética, pretende ampliar ainda mais esses subsídios e benefícios, como mostrou o Observatório da Mineração.
Estudo coordenado por este Observatório em 2022 revelou ainda que mineradoras que atuam no Brasil podem deixar de pagar, em média, US$ 1,26 bilhão de dólares por ano em função da possível evasão fiscal envolvida na cadeia da exportação do minério de ferro. Considere ainda a dívida multibilionária de mineradoras com a União e os estados, muitas na casa das dezenas de bilhões de reais, segundo levantamento que publicamos em 2021, e o cenário é devastador para a arrecadação envolvendo o setor extrativo.
Alternativas
O relatório também aponta uma série de medidas que foram tomadas ou sugeridas ao longo dos últimos para tentar combater a sonegação em parceria com outros órgãos. Nas diretrizes do plano executivo SAR/ANM para o biênio 2023-2024, constam, por exemplo, uma lista de ações comuns e específicas, além de recomendações.
“A Controladoria Geral da União (CGU) já sugeriu à ANM que tentasse formalizar acordos com secretarias de fazenda estaduais, a exemplo do Convênio 2/2018 que a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) teria firmado no âmbito do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), para receber informações constantes das NF-e dos beneficiários da subvenção econômica à comercialização de óleo diesel”, mencionaram os auditores.
Angelico afirmou que é preciso conciliar algumas destas estratégias institucionais mencionadas com a abertura de um debate público sobre o tema.
“Se não houver uma pressão da sociedade e do Ministério da Fazenda, essa farra das mineradoras infelizmente vai continuar e é preciso dar um basta nisso. É absolutamente inaceitável e escandaloso que empresas que faturem bilhões não paguem o que o que deveriam pagar”, declarou.
Estrutura da ANM
Para os auditores, a falta de estrutura da ANM é um dos principais problemas do setor. Segundo eles, apenas dezessete mineradoras foram fiscalizadas pela Agência em 2022, sendo que haviam 39.024 processos ativos na fase de lavra.
“Sistemas de tecnologia da informação obsoletos e limitados, reduzido quadro de pessoal e inexistência de acordos de cooperação com a Secretaria da Receita Federal e secretarias de fazenda estaduais são as principais causas que levam à subarrecadação de receitas minerárias e à decadência e prescrição dos respectivos créditos”, aponta o relatório.