O garimpo e especialmente o mercado de ouro no Brasil, que sofre pela falta de controle, rastreabilidade precária e altíssima ilegalidade, também conta com problemas estruturais graves na Agência Nacional de Mineração (ANM).
A consequência é a facilidade para que garimpeiros obtenham permissões de lavra garimpeira (PLG’s) sem a devida checagem de licenças ambientais e da área total concedida, que pode ser superior a 10 mil hectares.
Relatório de auditoria recém-publicado pela Controladoria-Geral da União (CGU) aponta que as autorizações para garimpos são dadas mesmo com documentos incompletos, sem verificação, transparência, padronização e que as superintendências regionais da ANM apresentam erros sistêmicos.
Conflitos de interesse entre gerentes e funcionários de alto escalão da agência também foram identificados em pelo menos 3 casos. Ao mesmo tempo em que atuam pela ANM, essas pessoas têm negócios em empresas privadas de mineração.
Este cenário favorece a expansão do garimpo ilegal, inclusive em terras indígenas, causa graves danos socioambientais e revela problemas crônicos que vão desde a diretoria da ANM até os estados.
Fatos e dados confirmam os achados da CGU.
A área minerada pelo garimpo saltou 495% dentro de terras indígenas nos últimos 10 anos. Nas unidades de conservação, o incremento foi de 301% no mesmo período, de acordo com o Mapbiomas.
Outro estudo, do Instituto Escolhas, mostrou que apenas de 2015 a 2020 o Brasil comercializou 229 toneladas de ouro com indícios de ilegalidade. Isso representa quase metade do total de 487 toneladas exportadas. O destino são os grandes mercados do mundo. Quase todo o ouro brasileiro é exportado. Em 2019, o Canadá, o Reino Unido e a Suíça registraram 71% de todas as importações de ouro do Brasil.
De julho de 2020 a junho de 2021, a CGU identificou 181 decisões pela outorga de PLG na ANM. Desse total, 30 processos foram selecionados de forma aleatória para análise. A Controladoria avaliou a qualidade do processo decisório da ANM para verificar se a decisão estava devidamente motivada e fundamentada e se os processos continham os documentos e anexos necessários para a tomada decisão exigidos pela legislação minerária.
Pareceres omissos, ruins e sem transparência
As decisões de outorgar, aditar o título para inclusão de nova substância mineral e retificar o título de PLG foram delegadas pela Diretoria Colegiada à Superintendência de Produção Mineral (SPM), destaca a CGU. A SPM, por sua vez, subdelegou às gerências regionais as decisões quanto ao deferimento ou indeferimento dos requerimentos de PLG.
Essas permissões, portanto, ficam nas mãos dos gerentes locais, sujeitos a todo tipo de influência.
Entre os problemas identificados pela CGU constam a falta do documento que faz a avaliação prévia da área requerida para garimpo, exigência primária para a outorga e que poderia identificar irregularidades na origem.
Essas brechas são utilizadas para fraudar a verdadeira origem do garimpo, muitas vezes em terras indígenas e unidades de conservação, algo proibido por lei.
As gerências regionais da ANM, ao utilizarem “checklists” para a avaliação do requerimento de lavra garimpeira, deixam esses documentos incompletos e imprecisos, gerando pareceres de baixa qualidade.
“Foram identificados casos de documentos utilizados como “pareceres” em que foi feita simples conferência da documentação, sem ao menos haver um relato do objeto analisado”, afirma o relatório da Controladoria.
Constantemente não constam nas listas dos pareceres emitidos pelas gerências regionais a exigência e análise de Projeto de Solução Técnica; a conformidade com os limites máximos de área e a situação em terras indígenas.
“A ausência da conferência de existência e conformidades desses itens exemplificativos trazem riscos relacionados à outorga irregular de PLG, que podem ocasionar danos socioambientais e demandas judiciais”, diz a CGU.
Cooperativas usadas para requerer até 10 mil hectares
Outro problema crônico identificado pela auditoria da CGU é a omissão da ANM sobre a existência de mais de um processo de PLG ativo para o mesmo requerente ou titular. Assim, a especulação de áreas minerais não é coibida.
O artigo 44 da Portaria DNPM nº 155/2016 estabelece limites máximos para as áreas pleiteadas: 50 hectares para pessoa física ou firma individual; e 10.000 hectares na Amazônia Legal e 1.000 hectares para as demais regiões para cooperativa de garimpeiros.
A CGU considera que os divergentes entendimentos e a atuação ineficiente da ANM sobre as outorgas e fiscalizações de PLG possibilitaram situações adversas como “o aumento demasiado de requerimentos de PLG concentrado em uma única pessoa ou cooperativa acarretando na prática sistemática de reserva de mercado que configura manifesto abuso do direito de prioridade e a exploração empresarial da garimpagem”.
Além de 10 mil hectares ser uma área enorme – pense em 10 mil campos de futebol – para a garimpagem, a tática de criar cooperativas – muitas vezes de fachada – se disseminou na Amazônia. Empresas familiares envolvidas na exploração de dezenas de trabalhadores em condições análogas à escravidão no mesmo garimpo, por exemplo, utilizaram desse expediente, como revelei nesta matéria para a Mongabay.
A situação se repete no Rio Madeira, no Amazonas, como comentei recentemente, entrevistado para essa matéria do jornal A Crítica.
As autorizações para essas cooperativas representam uma burla ao correto licenciamento ambiental, lembra a CGU, “uma vez que o licenciamento é concedido para um regime de exploração mineral simplificado que, conforme a própria lei, se submete a limites máximos quanto a dimensão da área explorada”. Como consequências, “há impactos diretos ao patrimônio público, econômico, social e ao meio ambiente”, destacam.
O número de pedidos para exploração de ouro por cooperativas de garimpeiros cresceu 83% desde 2019. Em três anos, elas solicitaram mais área do que nas últimas três décadas, mostrou o InfoAmazônia. Casos como o da cooperativa do Vale do Guaporé, no Mato Grosso, são escandalosos.
De acordo com a análise dos auditores, a ANM ainda não atuou para resolver esses problemas e a tem mantido sigilos sobre pareceres e despachos já concluídos, o que não encontra justificativa, diz a CGU.
Os “garimpos fantasmas” se espalharam pelo Brasil. Um superintendente da ANM disse para a Repórter Brasil em 2021 que a agência tem apenas 170 fiscais para analisar 35 mil procedimentos minerários, o que explicaria, em parte, as falhas no processo de decisão.
A outorga do título de PLG pela ANM, condicionada à apresentação de licença ambiental, também é extremamente problemática.
“O risco de apresentação de licenças ambientais incorretas ou irregulares é alto em razão de serem emitidas por diversas secretarias de meio ambiente (estaduais e municipais, cada uma com regulamentações e nomenclaturas específicas) e pelo fato de ser comum não exigirem dos interessados a apresentação do documento ‘Declaração de Aptidão’, emitido pela ANM. O efeito da ausência dessa análise de conformidade é a possibilidade de garimpo ilegal com graves danos socioambientais”, diz a CGU.
Pelo menos 3 casos de claro conflito de interesses
A CGU identificou pelo menos 3 casos de claro conflito de interesses envolvendo o gerente regional do Mato Grosso, um superintendente em Minas Gerais e um servidor na Bahia. Além de funcionários da ANM, os três mantém negócios diretos na mineração e indiretos em consultoria em pesquisa mineral.
A Controladoria afirma que a ANM não possui uma Política de Conflito de Interesses, e as ações de prevenção propostas e instituídas até o momento “ainda são incipientes para mitigar os possíveis riscos, como por exemplo, de captura de mercado dos servidores pelos agentes regulados; uso de informação privilegiada; relação de negócios com pessoa física ou jurídica que tenha interesse em decisão; atividade privada incompatível com o cargo, e/ou prestação de serviços à pessoa física ou jurídica sob regulação do órgão”, lista a CGU.
Os casos observados pela auditoria não são os únicos.
Durante as discussões sobre o Novo Código de Mineração, ano passado, veio à tona os negócios de Pablo César de Souza, o Pablito, ex-vereador de BH e marido de Greyce Elias, deputada que é relatora do Novo Código na Câmara.
Pablito, que hoje é assessor direto do presidente do senado, o também mineiro Rodrigo Pacheco (MDB), consta como sócio de 3 empresas mineradoras.
No governo Temer, Pablito foi nomeado como superintendente do antigo DNPM, hoje Agência Nacional de Mineração (ANM), em Minas Gerais.
A nomeação de Pablito na época provocou a demissão em massa de 21 servidores, em protesto contra a falta de capacidade técnica de Pablo César de Souza e por seu interesse econômico na exploração mineral. À Folha de S. Paulo, Pablito afirmou que deixou as empresas que consta como sócio e Greyce Elias negou a influência do marido.
Em outro caso, mostrei em abril aqui no Observatório que o ex-diretor jurídico da Belo Sun (Canadá), Imerys (França) e Mineração Rio do Norte (Brasil), Fábio Guilherme Louzada Martinelli, tomou posse como gerente regional da Agência Nacional de Mineração no Pará. No cargo estratégico, Martinelli poderá influenciar diretamente nas operações das empresas em que já foi funcionário.
As discussões sobre o Novo Código de Mineração emperraram na Câmara no fim do ano passado e seguem paradas no Legislativo, apesar das tentativas de Arthur Lira. Em fevereiro, porém, dois decretos de Jair Bolsonaro criaram um programa para estimular o garimpo e mudaram o Código de Mineração.
Perseguidos e atacados pelo governo federal atual, fiscais do Ibama tem enorme dificuldade em fazer o seu trabalho e cumprir a lei. Vazamento de operações se tornaram comuns e a apreensão de equipamentos ilegais do garimpo caiu 81% no governo Bolsonaro.
Não por acaso, o ritmo da destruição causada pelo garimpo ilegal explodiu no Brasil. Apenas nas terras indígenas Munduruku e Sai Cinza, no sudoeste do Pará, os criminosos devastaram pelo menos 632 quilômetros de rios desde 2016. O aumento foi superior a impressionantes 2000% em 5 anos.
De acordo com uma calculadora lançada pelo MPF em 2021, apenas em 2020, na Bacia do Rio Tapajós, os impactos monetários totais dos garimpos ilegais (tanto de balsa quanto de aluvião) somaram mais de R$ 5,4 bilhões. Além disso, 4.547 hectares foram desmatados, 6,1 milhões de toneladas de sedimentos foram despejados nas águas da região e mais de 369 mil pessoas dos 2,4 milhões de habitantes da Bacia do Tapajós estarão sujeitas a riscos mais elevados de problemas causados por um consumo médio de mercúrio acima dos padrões.
ANM precisará rever diversos procedimentos internos
Relatório prévio da CGU de dezembro de 2020 focado na fiscalização e cobrança da CFEM (Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais) destacou a “baixa formalização e padronização dos procedimentos de planejamento, execução, comunicação e registro dos resultados das fiscalizações, bem como falta de revisão e supervisão em todas as etapas dos trabalhos realizados”. Isso teria gerado um desperdício de R$ 11,6 bilhões.
Na auditoria mais recente, a Controladoria afirma, em suma, que é preciso rever os procedimentos internos e a padronização de documentos relativos à aprovação do requerimento de PLG pelas regionais da ANM, a fim de melhorar a transparência das decisões em todas as etapas do processo de outorga do título minerário.
Entre as recomendações, a CGU determina que a ANM estabeleça fluxos, procedimentos e modelos de documentos para todo o processo de Permissão de Lavra Garimpeira a fim de padronizar a atuação dos servidores técnicos ou comissionados, com especial atenção à análise de conformidade da documentação dos processos (interferências e sobreposição de áreas e as devidas licenças ambientais).
O objetivo é aumentar os controles administrativos, a transparência e o acompanhamento dos processos para tornar mais eficiente a outorga e a fiscalização dos títulos.
Procurada pelo Observatório da Mineração para responder às críticas e análises da CGU, já que o processo de concessão de PLG’s foi justamente um dos itens não respondidos pela ANM para a própria Controladoria, a Agência Nacional de Mineração se limitou a dizer que recebeu o relatório da CGU e “as recomendações já estão observadas no âmbito da ANM. O prazo para resposta da Agência ao órgão de controle é 07 de outubro”.