Para moradores expulsos de suas casas em Minas Gerais, “a Vale é a maior terrorista do mundo”

Por Isis Medeiros*

Depois do rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, que matou 248 pessoas e deixou 22 desaparecidas até o momento, a Vale espalhou terror por diversas cidades de Minas Gerais. Barão de Cocais, Macacos, Congonhas, Nova Lima, Itabira…mais de 30 barragens da empresa foram interditadas em todo o estado e centenas de pessoas foram expulsas de suas casas.

O caso de Barão de Cocais é o mais emblemático. Por meses e até o momento, a Vale anunciou uma verdadeira contagem regressiva para o desmoronamento completo do paredão da mina de Gongo Soco, que poderia ocasionar o rompimento da barragem em frente. O prazo passou e a barragem não rompeu.

Porém, expulsos de suas casas, moradores sentem na pele os interesses da mineradora em terras na região. Não é por acaso: somente em Barão de Cocais a Vale e suas subsidiárias tem 60 processos registrados na Agência Nacional de Mineração, entre pesquisa, requerimento e concessão de lavra.

A fotógrafa Isis Medeiros acompanhou de perto as expulsões realizadas em Barão de Cocais e comunidades rurais que fazem parte da cidade, como André do Mato Dentro. Ali, cara a cara com os moradores, fotografou, apurou e reuniu depoimentos para a série “Evacuados”, que publicamos apenas em parte aqui. Você pode e deve conferir a série toda, publicada aos poucos, na sua página no Instagram.

Isis, que nasceu em Ponte Nova (MG), trabalha como fotógrafa documentarista e desenvolve projetos autorais voltados para a defesa dos direitos humanos. Em 2018 foi uma das fundadoras de “Fotografia pela Democracia”, grupo nacional de fotógrafos em defesa da democracia e dos direitos humanos no Brasil.

Os relatos impressionam pela franqueza, pela sabedoria popular, pela ciência dos interesses enormes que os cercam e, claro, carregam o peso de um povo que se acostumou a viver 24 horas com as ameaças concretas da mineração. Leia, abaixo, alguns depoimentos colhidos por Isis e o ensaio de fotos. (Maurício Angelo, editor do Observatório)

José Mendes de Carvalho, 63
Santa Bárbara
Resistência – Comunidade André do Mato Dentro

“NÓS TEMOS QUE RESISTIR!

A VALE não tá comprando nada não. Eles tão chegando e invadindo os terrenos. Eles falam que essas casas aqui não tem morador, que o povo vem aqui só passar final de semana, dizem que é sítio. Eu nasci e vivi a vida toda aqui, eu tenho medo que eles encurralem de um lado e de outro e me deixem sem saída.

Aqui eu planto meu café, eu não preciso comprar alimento. Fazemos tudo em conjunto. Se alguém chegar e pedir um pouquinho de café, nós temos. No “Seu Gomes”, o vizinho, se você tiver dinheiro pra comprar o queijo tudo bem, se não tiver, vai poder levar assim mesmo. Na rua não é assim. Lá até a informação é na base do dinheiro, a gente na roça é mais tranquilo.

Eu tenho medo sobre a questão da água. Todo mundo usa as águas de Santa Cruz, onde a VALE vai entrar, nas terras do vizinho. Aqui a água é cristalina e circula livre o dia inteiro, 24 horas direto. Ainda é muito bom, todo mundo que vem não quer voltar, muita gente vem de longe só pra entrar no rio. Agora, se jogam essa lama no rio como faz? Acabou com a água acabou com nóis, gente! Nós somos guardiões da terra e das águas daqui, vamos resistir.

Eu não vendo aqui, mas se me oferecem 100 mil o que eu faço? Não consigo nem comprar um terreno na rua. Agora se cair na rua, tem que comprar água. As vezes um dia tem e no outro não. Lá eu vou ficar num metro quadrado, na prisão.

Aqui eu posso ficar em casa, no quintal, no curral, mexendo e lá? Vou ficar em hotel igual o pessoal do Socorro. Gente que tinha espaço, criação e agora nem sabem onde levaram, ninguém sabe onde tá quintal, nada. Lá, quando você precisar comprar uma banana, vai ter que ir no supermercado comprar, um molho de couve, um molho de cebola…”

José Mendes de Carvalho (63), nasceu e viveu toda vida em André do Mato Dentro, vilarejo de Santa Bárbara, que faz divisa com Barão de Cocais. Ele trabalha com obra há 30 anos na cidade, mas já está quase aposentando. É o vizinho mais próximo das supostas “obras de contenção” do rejeito da Barragem Gongo Soco, está sendo atingido diretamente pelo terrorismo de rompimento criado na região e teme ser expulso de sua casa.

Francisco Xavier de Assis Filho, 68
Barão de Cocais
Sitiante Comunidade Socorro

Tenho 50 anos de profissão com carteira assinada na topografia. Eu investi tudo que eu ganhei, todas economias da vida inteira eu investi no meu sítio e de um dia para o outro eu fiquei sem ele.

Levaram minhas criações. Arrombaram meu portão, levaram meus cachorros, mais de 100 galinhas e até agora não sei pra onde levaram. Legumes, frutas, verduras, levaram tudo. Os ovos mantinham a padaria da minha filha. Sempre deixei todo mundo pegar o quanto quisesse de lá.

Passava de sexta até segunda-feira lá, porque eu gosto mesmo é de roça. Morei mais de 6 anos, era um paraíso! A minha intenção era morrer no Socorro, queria passar os últimos dias da minha vida lá, mas a VALE tirou meu maior projeto.

Acabou! Eu ainda vou aos finais de semana e fico lá de cima olhando, vendo meu sítio de longe. Mas agora preciso buscar outro recanto, se eu ainda tiver tempo. Nunca disseram para a comunidade sobre a possibilidade de rompimento da barragem.

Chegaram às 2h da manhã numa sexta-feira, ligaram as sirenes, levaram ônibus e tiraram o povo pra levar pro ginásio. Já tinha colchão e sanduíche esperando o povo. Teve gente que até quebrou a perna correndo.

Do jeito que ela programou, podia ter feito durante o dia, porque até hoje não rompeu. A VALE fez a maior covardia com o pessoal. Meu coração corta, eu fiquei decepcionado com a empresa, porque a gente merecia outro tratamento.

Francisco Xavier de Assis Filho, 68, conhecido por todos como Xiquinho topógrafo – Morador de Barão de Cocais, proprietário evacuado de um sítio próximo a barragem de rejeitos, na comunidade de Socorro. Xiquinho é um dos responsáveis pelo projeto de topografia da barragem Gongo Soco no ano de 1987, foi preso recentemente logo após visitar seu sítio e denunciar em um vídeo o descaso da empresa com os terrenos por ela dominados.

José João Carvalho, 70
Barão de Cocais

Eu sou descendente de escravos e índio. Meus avós [pais da minha mãe] me contaram, eles não eram bobos e nem mentirosos, que alí embaixo daquela igreja de 300 anos tem rocha de ouro. Fizeram a igreja em cima só pra ninguém mexer. A VALE descobriu isso através de pesquisas e a partir daí começou esse inferno nas nossas vidas.

Eles aumentam muito sobre essa história da lama que é pra gente ficar doido. Na verdade ela quer o território por causa do ouro e minério que tem lá, ela não chega conversando na casa dos outros não, ela invade!

Esse ano a gente ia comemorar 300 anos da comunidade do Socorro, mas expulsaram todo mundo. Isso me chateia porque nós como cidadãos brasileiros não temos valor nenhum. Nós somos cachorros do governo. Se o governo quisesse, a gente não tava vivendo isso aqui não, mas eles não estão nem aí pra Barão de Cocais. Ninguém tá falando sobre isso, só a televisão que ganha dinheiro com isso. Mas ninguém vem aqui pra fazer levantamento pra ver o sofrimento do povo.

Eles disseram que trouxeram o progresso pra cidade. O progresso chegou e trouxe a desgraça junto. Eu conheço toda aquela região de Mariana que foi atingida e eu acho uma grande sacanagem, porque até ontem não construíram nada pro povo que perdeu tudo lá. Eu acompanho tudo, se dependesse de mim, a VALE nunca mais trabalharia de jeito nenhum em lugar nenhum da vida! Ela não é digna de pagar ninguém. Não pagou Bento Rodrigues, não pagou Brumadinho e não vai pagar Barão de Cocais. A nossa cidade está acabando!

Eu não vi lugar nenhum onde ela instalou que ela trouxe alegria, só sofrimento. Se é pra lutar, vamos começar lá por onde começou o prejuízo, que se chama Bento Rodrigues.

José João Carvalho (70), é artesão em Barão de Cocais. Vive em área de risco com a mulher hipertensa. Perdeu a renda e não pode sair para trabalhar e deixar a esposa sozinha em casa com receio de que ela não consiga se salvar caso a barragem se rompa. Já trabalhou com caminhão de reboque para empresas terceirizadas da VALE, mas é totalmente contra a multinacional.

Tomo, 79
Santa Bárbara
Resistência – Comunidade André do Mato Dentro

“A Vale é a maior terrorista do mundo. Ela é mais terrorista do que a Al Qaeda”

Pra mim é um blefe tremendo essa história que criaram da barragem, uma grande mentira só pra justificar o que a VALE está fazendo. Pra ocupar o território ela tem que tirar a população, né?

Olha só que ironia. Estão lá construindo o muro de contenção da lama em cima das comunidades de onde tiraram a povo. Se a população não pode morar lá, porque os trabalhadores podem correr o risco? Cadê o Ministério do Trabalho pra embargar essa obra?

Aqui jorra água nessas montanhas, se eles criam essas cavas pra encher de rejeitos, toda a água corre pra lá. Nessas grotas jorram água limpa, tem muitas nascentes.

Comigo a VALE nem vem falar, eles já me conhecem e sabem que comigo não tem conversa. Eu já sei que eles querem é tirar todo mundo daí, expulsar de suas terras! Quer tornar tudo inviável e comprar tudo aqui.

E todo mundo tem medo da Vale. Com os governantes que nós temos e incluindo o legislativo, o judiciário, Ministério Público, a única coisa que podemos fazer é denunciar. Não temos condição de fazer nada!

Deve ser o final do capitalismo, eles estão chegando no limite, agora eles querem tirar do planeta muito mais, o processo está muito mais acelerado.

Não aguento barulho de cidade. Ninguém precisa de toda essa tecnologia que eles querem fazer, não eu. Aqui eu tomo água mineral, tomo banho de água mineral, lavo roupa com água mineral, toda água vinda da nascente, nem no filtro passa, esse é meu privilegio.

A gente tem que proteger essa água nem que seja com a própria vida. Se depender de mim, a nascente “Olhos-d’água” vai ser a última água a ser explorada na terra.

Tomo (79) é filho de japoneses, nasceu em São Paulo no início da Segunda Guerra Mundial. Mora há 30 anos na terra em André do Mato Dentro, vilarejo pertencente a Santa Bárbara, cidade que faz fronteira com Barão de Cocais. É um dos moradores atingidos pelas grandes obras de desvio do rejeito que amedrontam as comunidades rurais.

Eustáquio Luzia, 53
Fernanda Rodrigues, 34
Barão de Cocais
Evacuados – Comunidade Tabuleiro

Meus bisavós foram os primeiros a chegar na região. Descendente de escravos, meus avós vieram como escravos apartados, a avó foi tirada da mãe e criada na fazenda de um português no Gongo Soco. Por ser descendente de escravos, a doutrina espírita faz parte da nossa vida, tínhamos uma casa na comunidade que fazia entre 80-90 atendimentos por dia, dava fila.

Antes disso tudo acontecer a gente achou que estavam instalando antena de internet, na verdade era uma sirene que alarmou no dia 08. Ela é assustadora, achamos que a lama já está descendo em cima da gente. Minha mãe de 76 anos, urinava de medo, não tinha controle e minha pressão ficou altíssima!

Fugimos pra parte mais alta, colocamos todo mundo da família dentro de um carro e viemos direto pra quadra da cidade, quando chegamos parecia que já tinha tudo armado, tudo bem organizado. Já chamavam a gente por nomes, já tinha comida certinha pra cada pessoa. Ficamos 74 dias dentro do hotel.

Estamos nessa casa alugada, de lá só conseguimos trazer as cadeiras e alguns bancos de madeira. Ninguém fica bem longe de casa, 32 anos atendendo lá e fazendo obras sociais, agora mudou tudo.

Tínhamos nascentes, alimentos, morávamos todos próximos da família. Viemos pra um lugar que não temos o mínimo entrosamento. Os vizinhos pra lá e nos pra cá, estávamos acostumados com muita gente.

Nosso filho mais velho passou por um período que só chorava por contada casa dele, tava fazendo falta, mudou até o rendimento na escola. A Fernanda, depois de uns dias, teve crises de choro, nós não voltamos ao normal, foi um colapso, mudou a rotina da vida da gente. A gente fica de mãos atadas, como faz alguma coisa?

Eustáquio Luzia (53), Fernanda Rodrigues (34), Davy, 8 anos e Daniel, 6 anos, moravam na Comunidade do Tabuleiro e tinham uma casa de umbanda. Deixaram para trás tudo que construíram. A casa onde atendiam gente de todo Brasil será demolida para a construção de uma obra da mineradora VALE.

Sobre Isis Medeiros:

Fotógrafa documentarista, colabora com veículos impressos e eletrônicos no Brasil e no exterior.

Acredita nas artes visuais como forma de expressão ativista e crítica, daí sua busca em estabelecer um diálogo entre imagens e as questões sociais. Documenta movimentos e organizações de resistência política e grandes manifestações populares. Denuncia em seu trabalho a violência do estado e as violações de direitos humanos.

Com particular interesse pela luta das mulheres, realiza trabalhos voltados para o empoderamento feminino. Em 2016 realizou o projeto ‘Mulheres Cabulosas da História’, e foi premiada com a medalha ‘Clara Zetkin’, que destaca mulheres com iniciativas transformadoras.

Já realizou inúmeras exposições de seus projetos dentro e fora do país. Expôs em 2017 no XII Fórum Social Mundial(FSM) em Montreal(Canadá), e 2018 em Airles na França, exposição de fotografias denunciando o crime socioambiental ocorrido em Mariana(MG) e a violação dos direitos dos atingidos por barragens no Brasil. Suas duas novas exposições que estão circulando o país são: “Vale?” e “Mulheres Atingidas: da lama à luta”, ambas com a temática sobre as consequências dos desastres da mineração no Brasil.

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