O artigo é de Alessandra Cardoso, assessora política do Inesc.
O desastre socioambiental do Vale do Rio Doce trouxe para nós, brasileiros, o sentimento de tragédia humana, no seu sentido mais amplo, associada à violação dos direitos humanos, como direitos sociais, ambientais, econômicos e culturais.
Uma violação que não diz respeito somente ao Brasil e aos brasileiros. Expressão disto foi o comunicado da ONU ao Brasil cobrando da empresa Samarco, das suas controladoras Vale e BHP, e do governo brasileiro ações mais efetivas para a reparação do crime ambiental, bem como uma ação mais firme do governo brasileiro na investigação e punição dos culpados.
Essa tragédia muito possivelmente será sedimentada, tal qual a lama tóxica, em nosso imaginário com as imagens da agonia e da morte do Rio Doce que nos conectou fortemente à Mariana e a todos atingidos pela mineração. E tal qual a morte de um ente querido, provocada por um crime bárbaro, o que se quer saber é: quem matou o Rio Doce? Como os culpados serão responsabilizados e punidos?
Claramente, existem três responsabilidades que precisam ser mais claramente identificadas.
A primeira é a responsabilidade da Samarco e solidariamente da Vale e da BHP Billiton. Esta responsabilidade já é nítida, mas está sendo reforçada e melhor compreendida à medida que novas informações vêm à tona. A Samarco nada mais é do que uma “associação em que duas entidades se juntam para tirar proveito de alguma atividade, por um tempo limitado, sem que cada uma delas perca a identidade própria” – o que se denomina joint venture. Expressão clara de como as estratégias e decisões destas três empresas estão umbilicalmente conectadas é a utilização pela Vale da base de beneficiamento da Samarco para processar e armazenar rejeitos do seu minério de mais baixo teor extraído das minas de Fábrica Noba/Timbopeba e de Fazendão, também na região de Mariana. Sua estratégia inicial de se desresponsabilizar pelo desastre cai, dia a dia, por terra. Hoje já se sabe que dos cerca de 60 milhões de metros cúbicos de rejeitos da barragem do Fundão que inundou o Rio Doce, pelo menos 5% vinha das minas da Vale.
A legislação brasileira de crimes ambientais precisa, portanto, dar conta de investigar e punir solidariamente e exemplarmente a cadeia corporativa que se esconde por trás da Samarco – no mínimo até seus controladores diretos, que são a Vale e a BHP.
Infelizmente, a legislação brasileira não dará conta de punir toda a cadeia corporativa da Samarco , mas é importante que nós saibamos qual cadeia é esta, e seu papel coadjuvante, e moral, neste crime.
É importante lembrar que no coração desta máquina financeira de extração de minérios está a Vale, que detêm 85% da produção brasileira de minério de ferro. Este gigante transnacional tem seu controle operacional dominado pela Valepar, que detêm 53,9% das ações da Vale, e é nada mais é do que um pull de investidores nacionais e estrangeiros.
A maior acionista da Valepar é a Litel Participações S.A., que detém 49% das ações e que, por sua vez, é controlada pelos três maiores fundos de pensão do Brasil (Previ, Funcef, Petros). Portanto, trabalhadores do Brasil que têm suas economias administradas por estes fundos de pensão devem se sentir indiretamente responsáveis pela morte do Rio Doce. Entre os outros três grandes acionistas da Valepar está o BNDES, que por meio do BNDESPAR controla 11,51% das ações da empresa e tem assento no Conselho de Administração da Vale. Portanto, o governo brasileiro também tem que se sentir responsável, diretamente e indiretamente, pela destruição socioambiental no Rio Doce.
Não é demais registrar também que, além do BNDESPAR, o BNDES é também financiador da Samarco. Os dois recentes projetos de expansão da capacidade de extração, beneficiamento (e geração de rejeitos) e escoamento da empresa foram financiados pelo BNDES. Em 2008 e 2014, o banco aprovou financiamentos para expansão da capacidade de extração e processamento da Samarco. O que já temos dito em relação ao BNDES é que ele é sim responsável socioambientalmente pelo que financia. Mas a responsabilidade do governo brasileiro vai muito além de seu papel como investidor e financiador. As múltiplas fragilidades da legislação mineral e socioambiental, e do seu cumprimento, são uma triste contrapartida de tantos desastres e crimes socioambientais no Brasil, que precisam ser mais fortemente conectados à trágica morte do Rio Doce como parte de uma realidade comum que precisa ser conhecida e transformada.
Já sabemos que a Lei de Segurança de Barragens, que exige a implementação pelos empreendedores de Planos de Segurança das barragens, com revisões periódicas baseadas em laudos técnicos, não funcionou. Já sabemos que o Departamento Nacional de Produção Mineral – DNPM, que tem a atribuição de fiscalizar o cumprimento da Lei, está sucateado. Atualmente, existem apenas 20 técnicos em todo país para fazer a fiscalização de mais de 200 barragens – e pior, sem uma qualificação específica em engenharia de barragens. Em Minas Gerais, o DNPM afirma ter capacidade de fiscalizar apenas 4 barragens por ano.
O governo brasileiro não é responsável pela tragédia apenas por não fazer cumprir a lei. É igualmente responsável porque como poder concedente que é, permite, e até incentiva, uma expansão agressiva na exploração mineral no Brasil por meio de uma legislação ultrapassada, o Código Mineral de 1967. Hoje, a jazida é de quem chegar primeiro no balcão no DNPM, e uma vez concedido o direito de explorar o recurso mineral, a extração se dá na intensidade e voracidade que o mercado quiser. As propostas de substitutivo que já foram apresentadas na Câmara pelo Deputado Leonardo Quintão PMDB/MG não abrem mão de manter este livre acesso aos minérios que está na raiz dos riscos e desastres socioambientais gerados pela mineração.
O desastre socioambiental de Mariana é sim produto desta expansão sem precedentes da extração de minério de ferro na história do Brasil. Uma expansão puxada pelo chamado super ciclo de commodities da última década, que elevou o preço da tonelada de minério de ferro a US$ 187,18 em 2011. Essa demanda mundial agressiva levou a uma corrida de investidores para ampliar a extração, processo que, uma vez iniciado com vultosos investimentos e expectativas de retorno, foi intensificado ainda mais diante da queda subsequente de preço, para manter o lucro – e o retorno dos muitos acionistas. A ausência de uma regulação do setor e das suas condições socioambientais de exploração está, portanto, na raiz desse trágico episódio comandado por uma articulação de interesses entre as grandes corporações, ávidas por lucros, e pelo governo brasileiro, ávido por superávits comerciais.
Por fim, a responsabilidade do governo estadual. Já sabemos que os órgãos ambientais dos estados, que licenciam a maior parte dos grandes projetos minerais no Brasil, fazem licenciamentos superficiais, frágeis tecnicamente e falhos socioambientalmente. Mas o principal problema é o interesse dos governos estaduais em produzir licenciamentos a qualquer custo. A aprovação do Projeto de Lei nº 2946/2015 que flexibiliza ainda mais o licenciamento ambiental, mesmo depois da morte do Rio Doce, é a melhor expressão de como a articulação de interesses entre as grandes corporações (ávidas por lucros), o governo brasileiro (ávido por superávits comerciais) e o governo de Minas (ávido por arrecadação) é capaz de produzir tragédias como esta.
A tragédia de Mariana é um crime socioambiental com inúmeros autores. Que todos sejam devidamente identificados e responsabilizados. Essa é a melhor forma de evitar novas tragédias.