Uma nota técnica do Ministério de Minas e Energia defende rever as regras atuais para liberar a mineração dentro de Florestas Nacionais, cita os interesses econômicos da mineradora canadense Eldorado Gold na Amazônia e considera exemplar a exploração de minério de ferro feita pela Vale em Carajás, no Pará.
A nota, de novembro de 2019, recomenda que o entendimento expresso pela Advocacia Geral da União (AGU) em um parecer de 2014 seja revisto e alterado, afetando potencialmente 17 milhões de hectares, diz que milhares de requerimentos minerários foram impactados e emite recomendações a favor de grandes mineradoras e de garimpeiros em regiões críticas da Amazônia.
O parecer da AGU não permite a mineração dentro de Florestas Nacionais (Flonas), que são Unidades de Conservação de “Uso Sustentável” de acordo com a Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC) de 2000.
Segundo o MME, o Plano de Manejo de cada UC deveria estabelecer as regras para a exploração mineral ou o impedimento da atividade dentro de cada unidade protegida. O parecer da AGU, no entanto, adicionou as Florestas Nacionais ao rol de UC’s com restrição de atividade minerária, com exceção das que foram criadas antes da Lei de 2000 que já tivessem a autorização expressa no ato de criação.
A nota técnica foi elabora pelo Departamento de Desenvolvimento Sustentável na Mineração (DDSM) em nome da Secretaria de Geologia, Mineração e Transformação Mineral (SGM).
Os responsáveis pela análise afirmam na conclusão que o Parecer nº 21/2014/DEPCONSU/PGF/AGU “impactou a expectativa de atividade minerária em 21 FLONAs, que englobam 317 processos minerários; atingiu a exploração mineral das FLONAs do Amana, do Crepori e do Jamanxim, que reúnem cerca de 1.386 processos minerários; amplificou os conflitos, principalmente de natureza ambiental e social, na região do Tapajós, no sudeste do Pará; e “prejudicou as políticas públicas para o desenvolvimento sustentável da mineração desta Secretaria, marcadas, minimamente, pelos acordos de criação ou redefinição de limites das FLONAs do Parima, do Jauaperi, Urupadi, Aripuanã e do Amana”.
Advogando claramente a favor do setor mineral, a nota técnica diz “ser factível a compatibilização entre a conservação da natureza e a atividade minerária em Florestas Nacionais” e considera “pertinente o pedido de revisão do entendimento” firmado no Parecer da AGU.
17 milhões de hectares em risco
Segundo dados do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), atualmente existem 67 FLONAs que ocupam 17 milhões de hectares em área do território brasileiro. Dessas, 46 possuem Plano de Manejo.
Do total de FLONAs, 38 foram criadas antes da Lei do SNUC, e apenas 6 autorizam a mineração por meio de seu ato de criação. Ainda assim, uma delas, a FLONA do Amapá, inibe a exploração mineral em seu interior por meio do seu Plano de Manejo. Das 32 FLONAs que não expressam a possibilidade de mineração em seu ato de criação, 81% (26) inibem a atividade no Plano de Manejo.
O MME demonstra nítida insatisfação com estas restrições e recomenda uma revisão que pode colocar 17 milhões de hectares em risco, área equivalente à de países como Inglaterra e Suíça somados.
MME advoga pelo garimpo no Tapajós
Ao advogar abertamente pelo garimpo no Tapajós, a nota técnica do MME faz coro ao séquito de lobistas que são recebidos com frequência dentro do ministério, como mostrei com exclusividade aqui em fevereiro de 2020.
A NT também coloca mais gasolina nas disputas sobre a maior região garimpeira do Brasil e também se junta aos pedidos da Agência Nacional de Mineração e a própria AGU, diga-se, que vão contra recomendações do Ministério Público Federal que envolvem justamente a Reserva Garimpeira do Tapajós e as Unidades de Conservação e Terras Indígenas do perímetro, como explicamos nesta matéria de julho de 2020.
A NT do MME exalta que o Tapajós é “uma das principais regiões auríferas do Brasil, conhecida pelos seus terrenos de alto potencial geológico e atividade minerária tradicionalmente garimpeira”.
Localizada no sudeste do Pará, a região “foi responsável por parcela expressiva do ouro lavrado no Brasil nas décadas de 70 e 80 e abriga uma das maiores comunidades garimpeiras do País, além de compreender uma Reserva Garimpeira de 2.8 milhões de hectares”, diz o texto.
O MME lamenta que a atividade minerária foi proibida nas FLONAs do Amaná, do Crepori e do Jamanxim, sendo que essas duas últimas ainda se sobrepõem à Reserva Garimpeira do Tapajós, “área delimitada pelo Poder Público Federal para aproveitamento de substâncias minerais exclusivamente por trabalhos de garimpagem”.
Como resultado, dizem, “garimpeiros que atuavam nessas áreas, com o advento do Parecer, tornaram-se ilegais e, dentro desse cenário, não podem ser formalizados. Eles, simplesmente, perderam seu direito de trabalhar e o meio de sustento da sua família, e não conseguiram ser incluídos em outro segmento da economia local”.
O teor do texto não surpreende, já que são frequentes as visitas de lobistas de associações do garimpo, como Anoro e Abramp, dentro do MME e de representantes do garimpo no Tapajós em diálogo direto com a ANM e o Ministério do Meio Ambiente, a exemplo do que o circo montado por Ricardo Salles em agosto de 2020 exemplifica.
A NT afirma que “as restrições impostas à exploração mineral pelo Parecer nº 21/2014/DEPCONSU/PGF/AGU acabaram por amplificar os conflitos naquele território” e lembra que “os garimpeiros, reivindicando seus direitos, bloquearam diversas rodovias em protesto, entre elas a BR-155, BR-163 e PA-279 no Pará”.
UC’s em Roraima também visadas
Além disso, na visão da área técnica do MME, “o entendimento firmado no Parecer alterou a lógica na qual se pautava a construção do pacto entre os órgãos do Poder Público envolvidos na criação de UCs”.
Assim, “este Departamento de Desenvolvimento Sustentável na Mineração (DDSM) em nome da Secretaria de Geologia, Mineração e Transformação Mineral (SGM) e, por vezes, representando o próprio Ministério de Minas e Energia (MME), há mais de dez anos acompanha e atua ativamente nas mesas de negociação interministeriais para criação de áreas protegidas e sempre pautou a necessidade de se respeitar as atividades de pesquisa e lavra mineral em andamento no território objeto da criação de uma unidade de conservação, devendo essas serem incorporadas às UCs em seus zoneamentos”, afirmam.
Mais claro, impossível.
Segundo os responsáveis pela NT, “a maneira mais transparente de garantir a continuidade de empreendimentos de lavra mineral pré-existentes era expressar sua permissão no ato de criação das unidades de conservação” e citam como exemplo as negociações sobre a criação de 4 UC’s em Roraima, área de alta atividade garimpeira, reforçando que o Departamento do MME “se manifestava favorável à criação ou redefinição de UCs desde que a mineração estivesse prevista em seus atos de criação”.
Manifestação a favor de empresa canadense
Falando sobre a MP nº 758 de Michel Temer, que em 2016 alterou os limites do Parque do Jamanxim e da APA do Tapajós, a NT diz que, após as emendas apresentadas (7), “segundo dados da CPRM e da ANM, a ampliação do PARNA Jamanxim interferiria em parte significativa do conhecido “trend” de mineralização do Tapajós, ou seja, o de direção Noroeste-Sudeste, onde se situam os depósitos de ouro do Tocantinzinho, Cuiú-Cuiú, Palito e São Jorge, e causaria um enorme impacto negativo na região do Tapajós, inviabilizando investimentos”.
E aqui o MME se permite defender abertamente os interesses minerários de uma multinacional canadense.
Um dos empreendimentos impactados, afirmam, “seria a área de requerimento de lavra da Brazauro Recursos Minerais, subsidiária da Eldorado Gold, empresa de mineração de ouro com sede no Canadá. A empresa, segundo própria declaração, havia realizado investimentos de R$ 244 milhões em pesquisa mineral e planejava investimentos da ordem de US$ 1,7 bilhões para os anos seguintes”.
Usando sempre o argumento econômico, como é praxe na mineração, ignorando os subsídios fiscais, a exploração da riqueza que não se reverte em qualidade de vida para as comunidades, os inúmeros impactos socioambientais e os riscos graves que a atividade mineral traz, a NT diz que:
“O projeto permitiria a geração de cerca de 600 empregos diretos e 2.400 indiretos, o fomento de 500 fornecedores para as cadeias a montante e a jusante, a circulação de R$ 300 milhões/ano, uma taxa de Compensação Ambiental prevista na Lei do SNUC de R$ 10 milhões, e a disponibilização de energia elétrica para a região.
Ao final de toda discussão e tramitação, a MP nº 758 foi convertida na Lei nº 13.452 de 19/06/2017, sem a ampliação do PARNA Jamanxim inicialmente prevista e, consequentemente, sem inviabilizar o empreendimento mineral existente, o que representou um ganho para o setor mineral”.
Sem dúvida temos aqui uma manifestação explícita de defesa dos interesses privados por um órgão público que deveria atuar para o bem comum da população brasileira, e não advogar para empresas.
Na época, o MMA advertiu que “a FLONA do Jamanxim localiza-se em área que concentra as maiores taxas de desmatamento ilegal em unidades de conservação federais (68,48% de todo o desmatamento ilegal nas unidades de conservação federais na Amazônia). Somente a FLONA do Jamanxim representa 37,7% da taxa total de desmatamento. A região tem sido palco de frequentes conflitos fundiários, de atividades ilegais de extração de madeira e minérios, associadas à grilagem de terra e à ausência de regramento ambiental, com reflexos na escalada da criminalidade e da violência contra agentes públicos”.
Cabe lembrar que o governo Temer insistiu até o fim na tentativa de reduzir – e não aumentar – a área do Jamanxim e foi apoiado por ruralistas que querem cortar até 1 milhão de hectares da Flona para beneficiar ferrovias, garimpeiros e outros. A ameaça é permanente até hoje.
Mesmo com a “vitória” de manter os investimentos na região na visão do MME, a NT destaca que “é importante ressaltar que, tanto a edição dessas MPs da maneira como foi feita, com pouca participação colaborativa e técnica do MME, da CPRM e da ANM, quanto restrições à atividade minerária resultante de novas interpretações jurídicas, desconsiderando a vocação geológica e as atividades produtivas consolidadas no território há décadas, geram insegurança jurídica para o setor mineral, potencializam os conflitos locais, aumentam o nível de informalidade da atividade garimpeira e interferem no planejamento de desenvolvimento para o setor mineral de várias regiões do País”.
MME exalta “exemplo da Vale”
Outro ponto importante é que a NT exalta a extração de minério de ferro feito pela Vale dentro da Floresta Nacional de Carajás. Segundo o MME, essa experiência “demonstra que os objetivos dessa categoria de UC são compatíveis com a atividade mineral, quando essa se desenvolve de maneira sustentável”. A FLONA, criada em 1989, é gerida pelo governo federal com apoio da Vale S.A.
O MME parece ignorar o histórico das operações da Vale em Carajás e, mesmo ignorando as violações trabalhistas, o descaso na pandemia, os impactos em série da estrada de ferro que corta o Pará até o Maranhão, gravíssimos, ignora também o passivo ambiental de duas barragens de altíssimo risco – entre as piores do Brasil – que ficam dentro da Flona de Carajás, como mostrei aqui em julho de 2019.
Além de Carajás, diz o MME, há “outros exemplos de compatibilização dos interesses de conservação ambiental e exploração dos recursos minerais, como os casos das FLONAs Jamari e Saracá-Taquera”.
Novamente o ministério esquece de mencionar que a Flona de Saracá-Taquera, por exemplo, é fortemente afetada pela exploração de bauxita de uma subsidiária da Vale, a Mineração Rio do Norte, com altos índices de desmatamento e focos de calor, como esse estudo detalha.
Leia na íntegra:
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