Exclusivo: Vale e BHP podem pegar de volta dinheiro que deveria ir para a reparação do desastre de Mariana

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Uma denúncia anônima recebida pelo Ministério Público de Minas Gerais e analisada pelo Observatório da Mineração com exclusividade levanta a suspeita de que as mineradoras Vale e BHP Billiton estejam praticando uma manobra para economizar bilhões de reais no palco do maior desastre ambiental do Brasil.

O esquema investigado serviria para garantir que as empresas, donas da Samarco, pudessem recolocar no próprio bolso parte dos bilhões de reais que se comprometeram a pagar como reparação do rompimento da barragem em Mariana, em novembro de 2015, que matou 19 pessoas.

A Fundação Renova, criada por Vale e BHP para ser a responsável pelas ações de reparação aos atingidos, é o meio usado para a possível fraude, aponta o documento.

Há indícios de que as doações da Vale e da BHP à Renova estão sendo registradas como dívida contraída pela Samarco, que se compromete a devolver o dinheiro às suas controladoras. A se confirmarem as suspeitas, Vale e BHP estariam atuando para ter de volta o dinheiro que em tese aplicam na reparação do dano que causaram. É uma manobra vedada pela Receita Federal.

Não é a primeira vez que se coloca a Renova sob suspeita. Um inquérito do MP mineiro, aberto no fim de janeiro e no qual foi anexada a denúncia anônima, investiga se a fundação está sendo usada para outros fins que não aquele que deveria ser o seu objetivo (a reparação aos atingidos) e se está cumprindo o seu propósito de maneira independente das mineradoras.

Segundo a denúncia, há documentos públicos que indicam que contratos da Vale estão sendo escondidos do mercado. Já a BHP Brasil, uma empresa de capital fechado, não precisa publicar esse tipo de informação. Após análise que permitiu a aceitação da denúncia anônima em caso excepcional, o MP acionou também o Ministério Público Federal, a Receita Federal e a Comissão de Valores Mobiliários, órgãos responsáveis pela apuração do crime de sonegação fiscal e outras transações suspeitas.

Os próximos passos da investigação devem incluir o pedido dos livros fiscais das empresas, que não estão disponíveis ao acesso público, para averiguar as denúncias. Um advogado tributarista que pediu para não ser identificado estimou que, se confirmada, a fraude pode superar R$ 1,5 bilhão de reais.

A decisão assinada pelos promotores Gregório Assagra e Valma Cunha, ambos do MP de Minas Gerais, exige que a Fundação Renova responda “qual é a natureza jurídica e o tratamento contábil tributário das transferências, pagamentos, contribuições, doações, aportes e/ou depósitos feitos pelas companhias mantenedoras (Vale, BHP Billiton e Samarco)”.

acordo firmado pelas mineradoras suspendeu uma ação civil pública em que o Ministério Público Federal cobra R$ 155 bilhões como reparação pelo desastre de Mariana até agosto de 2020. Como o processo de renegociação nem começou, o prazo para que a Vale e BHP eventualmente paguem algo deve ser ampliado em mais dois anos. Outra ação, em que o governo federal pedia R$ 20 bilhões, foi extinta.

A Renova alega que gastou até o momento R$ 8,8 bilhões em reparação, incluídos indenizações às vítimas e a reparação ambiental. É justamente parte desse dinheiro que Vale e BHP estão tentando reembolsar.

Em meio à pandemia de Covid-19, a Fundação também decidiu cortar o auxílio financeiro a sete mil pessoas em Minas Gerais e no Espírito Santo.  Por isso, acaba de ser denunciada por uma “possível violação em massa de direitos humanos” pelo Grupo Interdefensorial do Rio Doce, formado pela Defensoria Pública da União e dos dois estados. Pelo menos outras 17 mil famílias aguardam até hoje serem reconhecidas como “atingidos” pelos causadores da catástrofe para começarem a receber o auxílio. Após a denúncia, a Justiça Federal obrigou a Renova a manter os pagamentos.

Ainda assim, Vale, BHP e a controlada Samarco operam para economizar mais dinheiro às custas das vítimas e dos atingidos. Procuradas pelo Observatório da Mineração, as três empresas apresentaram respostas semelhantes.

A Vale disse que “cumpre integralmente a legislação tributária brasileira e que suas informações tributárias e contábeis estão disponíveis em suas demonstrações financeiras”. Afirmou, ainda, que “não recebeu até o momento nenhuma comunicação do Ministério Público de Minas Gerais no que se refere a questões tributárias envolvendo a Fundação Renova e a Samarco, mas desde já se coloca à disposição para prestar quaisquer esclarecimentos que venham a ser requeridos pelo MPMG e demais autoridades”.

A BHP afirmou que “atua em total consonância com a legislação brasileira, seguindo os mais rígidos controles de governança e compliance”. “Quanto à alegada investigação que está sob responsabilidade do Ministério Público de Minas Gerais, caso seja demandada pelas autoridades competentes, a BHP irá buscar conhecer seus termos e respondê-la”, prosseguiu.

A Samarco argumentou que “cumpre integralmente a legislação tributária brasileira e recolhe todos os tributos devidos”. “O tratamento contábil adotado pela empresa também está de acordo com as práticas brasileiras, incluindo os pronunciamentos emitidos pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis e homologados pelo Conselho Federal de Contabilidade”, e “as informações tributárias e contábeis da empresa são públicas e estão disponíveis em suas demonstrações financeiras”, garantiu.

Já a Fundação Renova afirmou, simplesmente, que “prestará os esclarecimentos solicitados pelo Ministério Público de Minas Gerais no prazo estabelecido pelo órgão”. Leia a íntegra das perguntas enviadas e as respostas recebidas.

Para André Portella, doutor em Direito Financeiro e Tributário e professor da Faculdade de Direito da UFBA, as operações relatadas na denúncia anônima enviada ao MPMG podem não necessariamente configurar ilícitos, mas possuem uma finalidade clara de gerar economia tributária às empresas e transferir prejuízos a toda a sociedade brasileira. “São medidas que transferem para toda a sociedade brasileira os valores das indenizações que deveriam ser pagas pelas empresas responsáveis pelos danos humanos e ambientais, na medida em que tais valores serão utilizados para diminuir o montante de tributos a pagar”, afirma.

Diante das questões fundamentais de se indenizar as famílias prejudicadas e recompor o meio ambiente, a questão da caracterização de sonegação passa a ser secundária, e provavelmente levará anos para ser resolvida pelos órgãos competentes. O fundamental é que a reparação seja efetivamente realizada e exclusivamente a cargo das empresas causadoras do dano, sem a transferência dos prejuízos à sociedade brasileira, acredita Portella.

Como funciona o esquema

A página 43 das Demonstrações Financeiras da Samarco de 2019 mostra que a mineradora está tratando como despesa dedutível da base do imposto de renda os gastos decorrentes do rompimento da Barragem de Fundão. A anotação está no item “imposto de renda diferido”.

Mas isso não é permitido, segundo a Solução de Consulta Cosit 209/2019, da Receita Federal. Nela, o órgão diz expressamente que “valores pagos por acordo realizado em ação judicial de que a consulente é ré (…) não podem ser deduzidos na determinação do lucro real”.

As notas explicativas da Samarco também registram no balanço patrimonial R$ 6,3 bilhões de reais referente a “Contas a Pagar no País” derivados do rompimento da barragem. Em 30 de dezembro de 2016, foram firmados contratos em que a Samarco reconhece a obrigação de pagar a seus acionistas (Vale e BHP) os valores entregues por eles para a Fundação Renova.

Segundo análise de fonte anônima especialista no assunto, que serviu de base para a denúncia do Ministério Público, “a Samarco assume a obrigação de reembolsar esses aportes às acionistas através de um contrato inominado que é mencionado nas Demonstrações Financeiras da Samarco, mas não aparece nas DFs da Vale, nem é declarado pela Vale à CVM como transação com parte relacionada”.

Isso indicaria um verdadeiro desvio de finalidade da Renova. Em tese, lembra o denunciante, ela é uma fundação de direito privado sem fins lucrativos destinada à reparação do meio ambiente e indenização das vítimas do desastre. “Mas parece que sua real finalidade é economizar tributo para as mantenedoras, viabilizando uma operação cruzada que seria impossível sem a entidade”.

Isso se deve ao contrato que transforma a doação em dívida. Ele permite o retorno do capital investido por Vale e BHP, com juros, mesmo com uma decisão que proíbe o pagamento de dividendos a acionistas pela Samarco. Graças ao artifício, o que a empresa está fazendo é, em linguagem contábil, “quitação de débito”, e não distribuição de lucro.

O valor economizado pode variar de 15 a 25% do total deduzido. Aplicados sobre os R$ 6,3 bilhões gastos até aqui para consertar os estragos causados pelo rompimento da barragem em Mariana, esses percentuais podem significar uma economia de mais de R$ 1,5 bilhão para Vale e BHP.

Para Daniela Olímpio, doutora em direito e sociologia pela Universidade Federal Fluminense e professora de direito tributário e justiça tributária da Universidade Federal de Lavras (MG), a economia tributária por empréstimos e financiamentos não é abusiva em si. Mas pode ser considerada abusiva se for o verdadeiro objetivo de “práticas contratuais atípicas”.

“O abuso que vejo no caso da Fundação Renova é que o intento não é apenas a economia tributária, mas uma certa transferência do encargo de responsabilização patrimonial, da empresa para o próprio Estado. Ou, em última análise, para o contribuinte”, afirma Olímpio.

Para Pilar Coutinho, coordenadora da Pós-Graduação em Direito Tributário da PUC Minas, a Solução de Consulta 209/2019 não é vinculante, mas parecida com o caso relatado pela denúncia enviada ao MPMG, podendo servir de interpretação para outros casos.

“A legislação autoriza dedução de parcelas que sejam essenciais à manutenção da atividade produtiva. Entendo que parcelas referentes direta ou indiretamente ao financiamento da Fundação Renova não são pressupostos para a atividade produtiva, mas a consequência de condutas anteriores. Sua dedutibilidade poderá ser questionada pelo Fisco e perante o Poder Judiciário”, afirma Coutinho.

Ou seja: as mineradoras não vão deixar de produzir por causa disso e o entendimento da Receita Federal atual é de que elas não poderiam deduzir essas despesas do imposto de renda, por não serem gastos habituais das suas atividades. “Embora a operação possa ser lícita, como só se saberá com o aprofundamento da investigação, é moralmente questionável que se esteja a reduzir a tributação atual com despesas decorrentes de uma tragédia na proporção da ocorrida”.

Debêntures também levantam suspeitas

Além dos contratos ocultos que cobrem os valores “doados” à Fundação Renova, Vale e BHP fornecem capital de giro para a Samarco comprando debêntures emitidos por ela.

Debêntures são títulos de dívida que geram crédito ao comprador, acrescidos de juros pré ou pós fixados. Em 2019, a Samarco emitiu debêntures como garantia em empréstimos que tomou dos acionistas Vale e BHP. Ela informa, em seu demonstrativo de fluxo de caixa, o pagamento de juros sobre empréstimos e financiamentos no valor de R$ 1 bilhão e 23 milhões em 2019 e R$ 708 milhões em 2018.

De acordo com a análise técnica do MP mineiro, “tais emissões podem configurar uma espécie de pagamento para as empresas antes mesmo da liquidação do dano causado pelo rompimento da Barragem de Fundão. Além disso, os juros financeiros sobre o pagamento pelas emissões das debêntures reduzem a receita financeira da empresa Samarco, o que diminui o pagamento do Imposto de Renda e das Contribuições Sociais”. Sob o ponto de vista contábil, dizem os promotores, “essas informações precisam ser averiguadas para aferir possível situação de sonegação fiscal”.

Em português claro, a manobra pode fazer com que a Samarco pague muito menos imposto do que realmente deve, beneficiando diretamente Vale e BHP com retorno do capital investido no futuro. O que, atualmente, está proibido por uma decisão judicial, que vedou a distribuição de dividendos da Samarco para suas acionistas Vale e BHP Billiton Brasil.

Doutores em direito tributário, auditores da Receita Federal e ex-conselheiros do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, o Carf, procurados pela reportagem para comentar o conteúdo da denúncia, não toparam falar abertamente sobre o caso.

Falando sob o compromisso de não ser identificado, um ex-conselheiro do Carf (um órgão que julga disputas tributárias entre empresas e governo federal antes delas chegarem à justiça) disse que o financiamento via debêntures é no mínimo estranho. Outros especialistas interpretaram como robustas as suspeitas, indicando que as manobras merecem uma investigação minuciosa.

Contas da Renova estão na mira do MP

Um inquérito já aberto pelo MP apura as irregularidades na gestão, no patrimônio e nas atividades-fim da Renova – a saber, a reparação do dano causado pelo crime ambiental de Mariana.

As contas da Fundação Renova estão sendo escrutinadas com “destaque para a relação entre orçamento e cumprimento das atividades finalísticas”, diz o inquérito. É preciso que seja feita uma auditoria independente sobre os tributos recolhidos e a prestação de contas da Renova, reforçam os promotores.

Há, ainda, a desconfiança sobre a “adequação da integralização patrimonial e dos aportes financeiros” da Fundação por suas mantenedoras em relação aos programas de reparação previstos no Termo de Transação e Ajuste de Conduta.

A Renova estaria atuando “ostensivamente” a favor das empresas, diz o MPMG. Entre as violações, ela tem exigido de atingidos e de prefeituras a desistência de processos judiciais contra a Vale e a BHP no Brasil e no exterior para pagar as indenizações que deve, situação detalhada por mim em fevereiro de 2019.

O MPMG lembra também a falta de transparência da Renova em relação aos dados e informações que devem ser publicados e prestados aos atingidos. Os trabalhos de reparação colecionam atrasos e ineficiências, e vários acordos firmados têm sido descumpridos, dizem os promotores de justiça Gregório Assagra e Valma Cunha.

Por fim, estaria claro que a Renova não é independente e autônoma das mineradoras que as controlam, “tendo em vista o domínio no Conselho Curador da Renova pelas empresas Vale, BHP e Samarco, que possuem seis assentos no Conselho, o que tem impedido o cumprimento das suas finalidades estatutárias e dos programas previstos no Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta”.

Assim, a Fundação Renova, na prática, é “submissa” aos interesses privados das mineradoras, que são responsáveis pelos danos socioambientais causados pelo rompimento da barragem de Fundão em Mariana.

Apesar disso, com o retorno das atividades da Samarco aprovado pelo Conselho de Política Ambiental do Estado de Minas Gerais, a expectativa é que a mineradora controlada por Vale e BHP volte a operar ainda em 2020.

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