Read the english version of the story
O alumínio brasileiro tem, desde o fim de 2023, uma nova controladora: a empresa suíça Glencore, maior trader de commodities do mundo, comprou a fatia de 40% da Vale e 5% da Hydro na Mineração Rio do Norte (MRN) e virou a maior acionista da principal produtora de bauxita, matéria-prima do alumínio, do Brasil. A transação foi avaliada em mais de 1 bilhão de dólares.
Agora dona de 45% da MRN, a Glencore recebe um espólio de 12 milhões de toneladas de bauxita anuais, exportada para três continentes, com um complexo de barragens que coleciona problemas e causa medo na população ribeirinha e quilombola que vive no entorno do empreendimento, em Oriximiná, no oeste do Pará.
Como o Observatório da Mineração revelou, as classificações de risco e potencial de dano das barragens foram alteradas dezenas de vezes sem explicações detalhadas, treinamentos foram iniciados e depois não retomados depois da pandemia, riscos foram admitidos pela MRN e depois negados no contato com comunidades, as ações de compensação são insuficientes, há dúvidas sobre os métodos de construção adotados e falta diálogo e transparência.
Esse histórico da MRN se funde agora com os métodos da Glencore, envolvida em casos de corrupção e em violações de direitos mundo afora. Presente em mais de 35 países, com lucro superior a $34 bilhões de dólares em 2022, responsável por comercializar mais de 60 commodities diferentes e dona de uma cadeia de valor completa na mineração, incluindo uma participação expressiva no cobre, cobalto, alumínio, níquel e minério de ferro, o gigantismo da Glencore se reflete também no tamanho dos problemas que enfrenta e na extensão das práticas questionáveis da empresa.
Foto de destaque: instalações da MRN no Pará – Carlos Penteado / CPI-SP
Corrupção endêmica em vários países
Em meados de 2022 a Glencore assumiu sua participação em um grande esquema de corrupção transcontinental que operou por mais de uma década, incluindo o pagamento de suborno a autoridades e a manipulação de preços. A Glencore concordou em pagar US$ 1,5 bilhão em multas por atividades ilegais em países da África, no Brasil, na Venezuela, nos Estados Unidos e no Reino Unido.
No Brasil, a Glencore foi investigada pelo Ministério Público Federal (MPF) por pagar propinas milionárias, junto das companhias Vitol e Trafigura, a funcionários da Petrobras na Operação Lava Jato. A situação de suborno envolveu cerca de 160 operações de compra e venda de petróleo e derivados da commodity, além do aluguel de tanques para armazenamento de combustíveis entre 2009 e 2014.
No começo de 2022, a empresa fechou um acordo de leniência — mecanismo de combate à corrupção celebrado entre infratores confessos e órgãos estatais — com a Petrobras para pagar à estatal US$ 39,6 milhões pelos atos de corrupção.
Após consulta feita pelo Observatório da Mineração, o MPF informou que “os acordos não são públicos, tem natureza contratual e estão restritos às partes”. Ou seja: ao contrário de muitos acordos de leniência firmados, o feito entre o MPF e a Glencore é confidencial. Não há clareza sobre se o acordo está sendo cumprido ou não, o que deveria ser acompanhado pela justiça federal.
“O escopo desse esquema criminoso de suborno é impressionante”, afirmou o procurador dos EUA Damian Williams, do Distrito Sul de Nova York, na época. “A Glencore pagou subornos para garantir contratos de petróleo. A Glencore pagou subornos para evitar auditorias governamentais. A Glencore subornou juízes para fazer com que os processos judiciais desaparecessem. No fundo, a Glencore pagou propinas para ganhar dinheiro – centenas de milhões de dólares. E fez isso com a aprovação, e até mesmo o incentivo, de seus principais executivos”, disse Williams.
Além de pagar a multa, a Glencore se comprometeu a aperfeiçoar a sua área de “compliance”, com melhorias nos controles internos, avaliação de riscos, políticas, procedimentos e diretrizes “baseados nas melhores práticas internacionais”.
Mudança de acionistas pode piorar ainda mais a situação de quilombolas e ribeirinhos
Juliene Pereira dos Santos é quilombola do rio Trombetas, doutora em antropologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e conhece bem os impactos causados pelo histórico de atuação da MRN. A pesquisadora critica as promessas de “progresso” feitas pela mineração, uma tônica do setor.
“A ideia de desenvolvimento é ilusória. Você vê que as comunidades mais próximas da mineradora são as mais miseráveis porque não podem mais pescar, o rio está contaminado e a quantidade de água usada para a mineração é absurda”, afirma.
Juliene é da terra quilombola de Cachoeira Porteira, uma das maiores já tituladas no Brasil, com 225 mil hectares. Realidade, porém, que não se estende a algumas terras quilombolas vizinhas, como a de Alto Trombetas II, até hoje ainda não titulada e fortemente ameaçada pela mineração, que se expande sobre as terras da comunidade.
Agora é a Glencore que irá levar adiante a expansão da extração de bauxita no território, materializada no chamado “Projeto Novas Minas”, justamente o que mais ameaça o quilombo Alto Trombetas II.
Todo o território é controlado pela MRN e pelo ICMBio, por ficar em área de uma floresta nacional, a Saracá-Taquera, explica Juliene. Enquanto a titulação não vem, as propostas para os quilombolas envolvem arranjos frágeis como o “termo de usos múltiplos”, uma espécie de plano de manejo que pouco garante às comunidades. Na expansão em curso, as audiências públicas, repletas de termos técnicos e com pouca participação efetiva, foram feitas apenas para constar e chancelar o projeto, avalia Juliene, que acompanhou as audiências.
“Foi tudo feito para constar no processo, de forma que que não se garantiu nenhuma participação efetiva de vozes contrárias ao projeto. Muita gente que estava ali foi cooptada pela mineradora de um jeito ou de outro”, conta.
Sobre como será o relacionamento com a nova acionista majoritária, a Glencore, Juliene avalia que esta é uma questão que só poderá respondida devidamente com o tempo, mas que o prognóstico não é bom. “Provavelmente terão mudanças, mas prevalece a lógica empresarial. Não espero outro olhar. Se já era difícil lidar com uma empresa brasileira (a Vale), imagina lidar com uma empresa internacional. Não tenho boa perspectiva sobre isso”, acredita.
Para Marcel Hazeu, doutor em desenvolvimento socioambiental pela UFPA, a forma de estruturação de empresas tão grandes como a Glencore e sua atuação transnacional com acionistas poderosos dificulta ainda mais a possibilidade de diálogo porque há um afastamento e desinteresse total sobre o que acontece em regiões como Oriximiná.
“Há uma dificuldade de influenciar essas multinacionais porque estão espalhadas pelo mundo e concentradas na mão de poucos. Esses acionistas não têm nenhum vínculo com o que está acontecendo aqui e, por consequência, o histórico diz que é mais complicado conseguir abrir uma negociação ou alcançar uma sensibilização sobre a realidade local”, avalia Hazeu.
A professora Rosa Acevedo Marin, doutora em História e Civilização pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris e professora da UFPA, que acompanha há décadas os conflitos gerados pela mineração em Oriximiná, concorda com a análise.
Para Rosa, instituições tão poderosas econômica e politicamente como a Glencore, a exemplo de outras mineradoras desse porte, tendem a se blindar internamente e é improvável que uma mobilização consiga mudar sua visão de mundo para além do discurso ambiental e social que essas empresas praticam, por exemplo, que costuma ficar apenas na teoria.
“Estamos diante de um grande problema. Há pouco respeito dessas empresas com as leis brasileiras. É muito difícil chegar nessas gigantes, a repercussão de imprensa é pequena e para um quilombola ou ribeirinho chegar até a Europa e contar o que ocorre é complicado. Seja na Amazônia, no Congo ou em outros lugares, a impressão é que não existe comunicação”, afirma.
Comunidades locais sofrem com a Glencore no Peru e na Colômbia
Relatório lançado em novembro pela Oxfam destaca o péssimo legado de violações de direitos humanos e outros problemas causados pela Glencore no Peru, na mina de cobre Antapaccay e na Colômbia, na mina de carvão Cerrejón.
Os negócios da trader suíça, afirmam, geram “graves consequências para as comunidades locais e o meio ambiente”. Diversos escândalos, lembram, fornecem evidências sobre o envolvimento da Glencore em violações de direitos humanos, corrupção, evasão fiscal e destruição ambiental.
Na Colômbia, um rio foi desviado para favorecer a mina da Glencore em uma área onde o acesso à água é escasso. Tanto no Peru quanto na Colômbia a água ao redor das minas da Glencore está poluído com chumbo e metais pesados, afetando especialmente comunidades indígenas e negras.
Como acontece com frequência, a Glencore e os investidores da empresa alegam aderir a iniciativas, convenções e acordos globais com o objetivo de mitigar as mudanças climáticas e garantir os direitos de comunidades atingidas. Mas isso costuma ficar na teoria e a empresa suíça não garante que as suas subsidiárias nacionais, como as da América Latina, cumpram com esses acordos.
No Brasil, a Glencore ainda mantém um requerimento para extração de ouro, datado de 1996, que está sobreposto à terra indígena Kayapó, no Pará, com extensão de 3.731 hectares, mais de 3 mil campos de futebol, segundo dados da Agência Nacional de Mineração. A extração em terras indígenas não é permitida, mas o cenário pode se alterar caso a lei mude, o que é um objetivo do Legislativo há muitos anos.
Embora concentre mercado, CADE aprovou sem restrições a compra da MRN pela Glencore
Por envolver possível concentração de mercado em operações cruzadas de poucas empresas, no caso a cadeia da bauxita e do alumínio, a aquisição societária da MRN pela Glencore foi alvo de análise pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica, o CADE, que poderia aprovar ou não a transação.
A notificação obrigatória ao CADE ocorreu também porque a Glencore faturou, no Brasil, valores acima de R$ 750 milhões em 2022. Além disso, a Glencore comprou também 30% da Alunorte das mãos da norueguesa Hydro. A Alunorte é a empresa responsável por beneficiar a bauxita de Oriximiná e transformá-la em alumínio, sediada em Barcarena, no Pará, a maior refinaria do tipo no mundo fora da China. Ou seja: um controle de ponta a ponta da cadeia. Da extração e beneficiamento até a exportação e comercialização.
Além da Glencore, maior acionista com 45%, a MRN agora está dividida em 30% para a mineradora australiana South 32, 12,5% para a Companhia Brasileira de Alumínio e 12,5% para a canadense Alcan Alumina, dona original das jazidas de bauxita do vale do rio Trombetas.
Em sua revisão, o CADE reconhece que a operação de compra da MRN pela Glencore envolve sobreposição horizontal e vertical da cadeia de alumínio e bauxita, incluindo o fato de que a participação de mercado da Glencore ultrapassa agora o percentual de 20% em quatro dos cinco mercados afetados pela operação.
O seguinte trecho é revelador sobre a lógica questionável usada pelo CADE, em evidente contradição sobre os fatos apresentados pelo próprio Conselho e pelas empresas, para no fim aprovar a operação.
“Quanto à dimensão geográfica, as Requerentes entendem que o mercado de bauxita é mundial, pois a bauxita é amplamente fornecida ao redor do mundo, com grandes volumes sendo transportados entre o país em que ocorre a extração da bauxita e o país em que será refinada para alumina. A bauxita é uma commodity que envolve baixos custos de transporte, não havendo barreiras regulatórias significativas para sua importação e fornecimento ao redor do mundo. As Requerentes destacam que outras autoridades concorrenciais, como a Comissão Europeia, já adotaram uma definição de mercado mundial para o mercado de bauxita. De todo modo, em outros precedentes, o CADE considerou o mercado de bauxita como nacional, em razão de vantagens competitivas que a expressiva reserva de bauxita que o Brasil possui”.
Ao contrário de concentrar mercado, afirmou o CADE, a entrada da Glencore na MRN e na Alunorte é “pro-competitiva” por não haver “sobreposição horizontal” de mercados no Brasil, mas mera substituição de acionistas, enquanto no mercado mundial, sim, o impacto existe. Ou seja: invertendo a lógica, embora mundialmente concentre poder, no Brasil o negócio deixa o mercado de bauxita e alumínio na mesma, disse o CADE.
A justificativa é que globalmente a participação de mercado da Glencore no mercado de bauxita ficaria abaixo de 10%, inferior a concorrentes como a australiana Rio Tinto (15,3%), a americana Alcoa, com 14,3%, os 9,5% da Chalco e 8% da Weiqiao, ambas chinesas.
Ponto a ponto e mercado a mercado, o CADE considerou que, no fim, as empresas envolvidas na operação fazem operações cruzadas entre si, sem potencial para afetar o mercado nacional e global de bauxita e alumínio. Com este raciocínio, o comitê aprovou sem restrições a operação e com rito sumário.
Em resposta ao pedido de posicionamento feito pelo Observatório da Mineração sobre os pontos tratados nesta matéria, a assessoria de imprensa da Glencore afirmou que a empresa não iria comentar.