Além de ocorrer em meio a novas denúncias de comunidades locais do Vale do Jequitinhonha, o empréstimo de R$ 487 milhões do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para a expansão da Sigma Lithium, aprovado em agosto, só foi possível por alterações significativas feitas neste ano no Fundo Nacional sobre Mudança do Clima, mais conhecido como Fundo Clima.
A mudança foi alertada pela jornalista e especialista sênior do Instituto Talanoa, Marta Salomon. Segundo ela, cada projeto tinha direito a R$ 80 milhões e agora esta quantia aumentou drasticamente – para R$ 500 milhões a cada 12 meses. Ao Observatório da Mineração, o BNDES confirmou que foram feitas duas alterações em 2024, sendo uma em abril e outra em setembro.
Apesar do anúncio, o empréstimo à Sigma não consta na planilha de “Operações contratadas na forma direta e indireta não automática” no site do banco, pois, segundo o BNDES, o financiamento ainda aguarda contratação. No mesmo documento, é possível identificar que apenas dois projetos conseguiram empréstimos acima do antigo teto, sendo um de R$ 90 milhões e outro de R$ 98 milhões, ambos não são de mineração.
“O Fundo Clima fica aberto. É balcão. As empresas apresentam pelo portal do cliente – que é o meio para operar uma linha direta com o BNDES”, explicou o gerente de Mineração e Transformação Mineral do banco, Pedro Paulo Dias. Segundo ele, o objetivo do programa é incentivar as empresas a avançarem em projetos que tenham “essa ambição climática”.
Um comunicado enviado pela mineradora canadense afirma que os R$ 487 milhões serão usados para construir a segunda planta no Vale do Jequitinhonha, entre Araçuaí e Itinga, ampliando a capacidade de produção de lítio de 270 mil toneladas por ano para 520 mil toneladas/ano.
O financiamento terá uma taxa de amortização de 192 meses (16 anos), com um período de carência de 18 meses e taxa de juros de 7,45% ao ano. Conforme a Sigma, não foi exigido nenhum ativo como garantia e o empréstimo de fomento será assegurado por uma carta de crédito emitida por uma instituição financeira registrada no BNDES.
Os pedidos feitos ao banco pelo Observatório da Mineração a respeito do contrato receberam a mesma resposta. “O financiamento com a Sigma Lithium ainda aguarda contratação, de forma que o BNDES está impedido de divulgar os documentos solicitados, por estarem protegidos por sigilo empresarial – com base no artigo 22 da Lei 12.527/2011, combinado com o artigo 6º, inciso I, do Decreto 7.724/2012”, escreveram.
Além do novo limite, o programa também passou a permitir a possibilidade de financiar até 100% dos projetos, nas seis modalidades: desenvolvimento urbano resiliente e sustentável; logística de transporte, transporte coletivo e mobilidades verdes; transição energética; florestas nativas e recursos híbridos; serviços e inovações verdes; e indústria verde. Sendo esta última a modalidade na qual a Sigma foi enquadrada.
Foto de destaque: propaganda da Sigma nos EUA durante listagem do projeto na Nasdaq/Divulgação
Piora de qualidade de vida, acúmulo de rejeitos e falta de consulta prévia
A chegada da Sigma na região, há dois anos, coincide com o aumento das reclamações pelos moradores do Vale do Jequitinhonha sobre a qualidade de vida da comunidade.
De acordo com ela, mesmo a plataforma estando de 10km a 15km, é uma área de mobilidade dos povos indígenas, que estão habituados a andar muito. “Chegaram sem fazer consulta, sem procurar saber das comunidades. Nós mesmos fomos pegos de surpresa. Quando a gente ficou sabendo, a mineração já estava instalada”, completou.
A informação de que a operação da Sigma não produz rejeitos é contestada pelo próprio processo de licenciamento na Secretaria de Meio Ambiente (Semad) e Superintendência de Projetos Prioritários (Suppri), checado pelo Observatório da Mineração. A lavra a céu aberto da Sigma inclui o uso de explosivos e a implantação de cinco pilhas de estéril. Estima-se um teor de 65% de rejeito para a produção total de lítio, com parte dos rejeitos doados para a prefeitura para realizar o calçamento de vias com o “cascalho” – rejeitos do lítio. A produção anual de rejeitos, com a ampliação aprovada este ano, atingirá 3.380.000 toneladas por ano de rejeito, diz um parecer da SEMAD.
Enquanto isso, a CEO da Sigma Lithium, Ana Cabral, foi tratada como estrela durante a Exposibram, maior evento do setor mineral, realizado em Belo Horizonte no mês passado. Além de ser mencionada como exemplo em diferentes mesas, suas participações foram marcadas por uma forte oratória, apresentações robustas e supostos exemplos de sustentabilidade. Em um dos paineis, a CEO chegou a dizer que a empresa recebeu “apoio maciço da comunidade”.
Sempre requisitada, Cabral era acompanhada de perto por sua equipe. Os pedidos de entrevista in loco feitos pelo Observatório da Mineração foram sistematicamente negados.
O Observatório da Mineração também entrou em contato com mais dois assessores da Sigma Lithium, por e-mail e WhatsApp, ao longo de uma semana, mas a cada contato um novo prazo era solicitado por eles. Os questionamentos feitos pela reportagem não foram respondidos até a data desta publicação. Caso respondam, o texto será atualizado.
Em meio às denúncias, Sigma se autodenomina “quíntuplo-zero” em sustentabilidade
Desde a chegada ao Vale do Jequitinhonha, a mineradora canadense vendeu o projeto como “verde”, “sustentável”, com “zero químicos”, “zero água potável”, “zero rejeitos” e “100% de prosperidade” para a região.
A propaganda, inclusive, foi reforçada com um rótulo chamativo durante a COP 28, em Dubai, no ano passado, quando a Sigma apresentou ao mundo a extração do lítio em sua planta com o que chama de “quíntuplo-zero”. Os documentos do licenciamento do projeto, porém, como já demonstrado nesta matéria, contradizem a narrativa da mineradora canadense.
Além dos rejeitos, a outorga concedida pela ANA à Sigma Lithium tem validade de 10 anos e permite o bombeamento de água do Rio Jequitinhonha durante 24 horas por dia. No total, a Sigma pode utilizar 3 milhões e 600 mil litros de água por dia.
A pós-doutoranda do IEA–USP Cidades Globais Elaine Santos, que estuda o mercado global do lítio, explicou que essa tentativa de se apresentar como sustentável não é algo novo. “O que diferencia a Sigma é que ela tem esse marketing robusto, então ela pega e faz esse pacote de ações dentro da sua mineradora e vende estas práticas de uma forma mercantilizada”, explicou Santos.
A pesquisadora ressaltou que cada mina tem características e impactos únicos, em comunidades específicas, cada qual com diferentes ecossistemas e formas de se relacionar no território.
Elaine também relembrou o Projeto de Lei 2809/2023, que tramita na Câmara dos Deputados e trata sobre a “certificação voluntária” do lítio verde. Desde dezembro, a pauta está pronta para ir a plenário. O PL é de autoria de uma série de parlamentares abertamente de direita, muitos bolsonaristas, como Adriana Ventura (Novo-SP), Evair Melo (PP-ES), Coronel Chrisóstomo (PL-RO), Kim Kataguiri (União-SP) e José Medeiros (PL-MT), entre outros.
“Esse projeto mostra a força desta estratégia de marketing e legitima um modelo de minerar, que é o que a Sigma está impondo com estas práticas”, destacou.
Caio Vieira, especialista em Incidência Política do Instituto Talanoa, ponderou em entrevista que o lítio tem uma relação muito próxima com a eletrificação das frotas, mas que no Brasil essa possibilidade é reduzida por conta de sermos um país de renda média e com um acesso muito caro a essas tecnologias. “Mas daqui para fora, e em diferentes processos, como na montagem de outras tecnologias descarbonizantes, ter um lítio mais limpo torna essa tecnologia ainda mais robusta, mais mercadologicamente atrativa e alinha o Brasil a uma maior ambição climática possível”, acredita.
Com R$ 21 bilhões, Fundo Clima terá o dobro de verba em 2025
Criado pela Lei 12.114, em 2009, durante o segundo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o Fundo Clima voltou a ser impulsionado agora, no terceiro mandato do petista. De acordo com o BNDES, o orçamento era de R$ 2,9 bilhões até 2023 e saltou para R$ 10,4 bilhões em 2024.
Já para 2025, Marta Salomon identificou que está previsto um aumento de 100% na verba destinada ao programa, ano em que o Brasil sediará a COP 30, em Belém, no Pará.
“O Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) para 2025 encaminhado ao Congresso prevê o valor recorde de R$ 21,2 bilhões para financiar projetos de mitigação das emissões de gases de efeito estufa e de adaptação às mudanças climáticas”, mostra a análise publicada no Política por Inteiro, do Instituto Talanoa.
A iniciativa também destacou que na área de energia – terceira maior fonte de emissão de gases de efeito estufa no Brasil, depois do desmatamento e da agropecuária – chamam a atenção os investimentos crescentes em mineração, sobretudo para projetos de pesquisa mineral.
BNDES e Vale escolhem gestor de FIP de minerais estratégicos
O BNDES e a Vale anunciaram, na última quarta-feira (2), o gestor do Fundo de Investimento em Participações (FIP) de Minerais Estratégicos. A iniciativa prevê o investimento de R$ 1 bilhão em até 20 empresas júnior e de médio porte que atuem em pesquisa mineral, desenvolvimento e implantação de novas minas de minerais estratégicos no Brasil.
“A criação do Fundo de Minerais Estratégicos dá continuidade ao apoio do BNDES ao setor de mineração. Nos últimos dez anos foram investidos R$ 8,3 bilhões em financiamentos para cerca de 1.800 empresas. A exploração sustentável dos minerais críticos será fundamental para colocar o Brasil na liderança global da transição energética, um dos objetivos centrais do governo do presidente Lula”, disse o presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, durante o anúncio.
O consórcio formado pela Ore Investments e a JGP BB Asset ficou em primeiro lugar na chamada pública e segue para a rodada final de avaliação das condições contratuais, regulamento do fundo e de diligências legais. Em segundo lugar ficou a ACE Capital Grou e, em terceiro, o consórcio formado pela Tivio Capital e RCF.
“O primeiro trimestre do ano que vem é quando a gente espera que todo o trabalho que precisa ser feito desde a divulgação até o fundo poder começar a investir esteja concluído”, explicou Pedro Paulo Dias.
O edital, publicado em maio deste ano, prevê que a subsidiária BNDES Participações (BNDESPAR) e a mineradora Vale irão subscrever cotas no valor mínimo de R$ 100 milhões e máximo de R$ 250 milhões cada, tendo um percentual de participação individual de até 25% no capital comprometido total do Fundo.