Zema e MME lançam “Vale do Lítio” em Nova York para atrair investidores e prometem desenvolvimento questionado em MG

Uma nova era de desenvolvimento e prosperidade, com geração de empregos, pagamento de impostos e melhora significativa da qualidade de vida para o Vale do Jequitinhonha, uma das regiões mais pobres de Minas Gerais.

Esse foi o tom das promessas e dos anúncios feitos pelo governo Romeu Zema e pelo Ministério de Minas e Energia (MME) no lançamento do que foi nomeado de “Vale do Lítio” semana passada em Nova York, com direito a evento na bolsa de valores da Nasdaq e propaganda nas ruas.

O tal vale compreende principalmente as cidades de Itinga e Araçuaí, além de outros doze municípios no Jequitinhonha e no norte de Minas Gerais, região que concentra a produção de lítio brasileira.

O “Vale do Lítio” é dominado por empresas canadenses, sobretudo a Sigma Lithium, que começou a produzir este mês o que a empresa chama de “lítio verde”, teoricamente de forma “ambiental e socialmente responsável”.

A cúpula do governo Romeu Zema, representantes do MME, da Federação das Indústrias de MG (Fiemg) e das empresas envolvidas tem apregoado a expansão da exploração do lítio brasileiro como um modelo de “mineração sustentável” a ser seguido.

Na esteira da Sigma, várias empresas multinacionais aportaram em Minas Gerais recentemente, acelerando a corrida pela pesquisa, exploração e abertura de novas áreas de lítio, mineral essencial para as baterias de carros elétricos e para a transição energética em geral.

Esse “boom” do lítio vem após o governo de Jair Bolsonaro abrir o mercado nacional via decreto em julho de 2022, como detalhei aqui no Observatório da Mineração.

O “roadshow” para atrair investidores canadenses e americanos, mas não só, faz parte do pacote e do processo de expansão violenta do mineral em um momento de ebulição da geopolítica do lítio na América Latina e no mundo.

O discurso onipresente de otimismo e desenvolvimento encontra pouco contraponto, mas um olhar atento para o histórico da região, para a mineração em Minas Gerais e para as falas de quem vive e conhece a realidade mostram que para que essa transição energética ocorra de forma minimamente justa, o caminho é longo.

Segundo lideranças e especialistas ouvidos pelo Observatório da Mineração, o governo Zema abandonou políticas públicas voltadas para o Jequitinhonha, mineração sustentável é “uma falácia” e a riqueza gerada nunca fica na região, que tende a concentrar os impactos socioambientais e ver a inflação disparar, com pouco ou nenhum desenvolvimento local.

Foto de destaque: Divulgação Nasdaq

O Observatório da Mineração não aceita anúncios de mineradoras, lobistas e políticos. Por isso, precisa dos leitores para continuar a investigar o que o setor mineral não quer que a sociedade saiba e oferecer acesso gratuito às matérias. Faça uma doação recorrente no PayPal ou colabore via PIX com o valor que desejar no email apoie@observatoriodamineracao.com.br

Divulgação Governo de Minas

“Futuro esplendoroso” que nunca se concretiza

Segundo Áureo Eduardo Magalhães Ribeiro, professor do Instituto de Ciências Agrárias da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que estuda a história do Vale do Jequitinhonha, desde o século XVIII o Jequitinhonha tem sido o destino de projetos extrativistas.

“Todos, sem exceção, anunciaram um futuro esplendoroso para a região; um porvir radioso, como dizem; sempre, sempre, uma riqueza futura”, conta.

Diamantes e ouro no século XVIII, algodão para exportação no XIX, gado zebu, eucaliptos, granito, café, barragens e, agora, lítio no século XXI, elenca Ribeiro.

“Sempre é um negócio fabuloso, para vender bens de muito valor e sempre para fora, e é lá fora que será agregado o valor. Os resultados dessa história, também, já aparecem há anos: nas crateras das “catas” de ouro e diamante, na degradação que a pecuária extensiva provocou nas terras férteis de Mata Atlântica do Baixo Jequitinhonha, na tomada de terras e águas instituídas pelos eucaliptais e mineradoras no Alto e Médio Jequitinhonha, nos milhares de sem-terras produzidos pelas barragens”, afirma.

Para Eduardo Ribeiro, com o lítio será a mesma história. “A mesma fábula, da extraordinária riqueza para alguns, que resulta na escassa geração de ocupações, na transferência de bens que receberão valor agregado em lugares que ficam muito, mas muito mesmo, longe do Jequitinhonha”, critica.

Segundo Ribeiro, as alternativas econômicas à mineração existem e são muitas, incluindo programas nacionais de estímulo à produção ou de transferência de renda, que “produziram resultados de excepcional qualidade no Jequitinhonha”, afirma.

O Pronaf, a universalização da previdência, programas de compras públicas, investimentos em educação, conforme atestam muitas pesquisas, diz o professor, “conseguiram a façanha que os grandes projetos jamais conseguiram: descentralizar a renda, criar ocupações, incrementar a produção e a agregação de valor na própria região”, avalia.

Para o professor da UFMG e doutor em história pela Unicamp, “é muito triste, mesmo, que depois das boas experiências que tivemos no começo do século XXI, estejamos agora voltando a reexperimentar as péssimas iniciativas típicas do século XVIII. Esta tem sido a tônica dos tempos de hoje”, disse ao Observatório da Mineração.

A opinião do professor é compartilhada por quem vive na prática a realidade da região. Para Adair Pereira de Almeida, geraizeiro, defensor de direitos humanos e morador do Vale das Cancelas em Grão Mogol, o governo de Minas e as mineradoras querem transformar a mineração predatória e destruidora do meio ambiente em mineração verde e sustentável.

“Mas na verdade isso não existe. Não tem como remover o solo e não destruir o meio ambiente, com intenso uso de água. Isso é mentira, uma falácia para enganar a população, especialmente a mais vulnerável”, avalia.

Para ele, o governo Zema deixou de colocar em prática as políticas públicas voltadas para a agricultura familiar e o desenvolvimento sustentável dos povos tradicionais, que não são respeitadas, não tem recurso e governança adequada.

“O governo precisa cumprir as políticas de inclusão social, como a regularização fundiária. O governo Zema nunca respeitou os direitos adquiridos em lei por esses povos. O estado de Minas Gerais ignora, viola e atropela os direitos dos povos tradicionais”, crava Adair Pereira.

Foto: André Cruz / Imprensa MG

Governo de Minas e MME querem tornar o Jequitinhonha uma estrela global da mineração de lítio

O chamado “Vale do Lítio” é formado por 14 cidades: Araçuaí, Capelinha, Coronel Murta, Itaobim, Itinga, Malacacheta, Medina, Minas Novas, Pedra Azul, Virgem da Lapa, Teófilo Otoni e Turmalina, no Nordeste de Minas, no Jequitinhonha, e Rubelita e Salinas, no Norte mineiro.

O governo de Minas Gerais tem articulado a instalação de empresas multinacionais na região que supostamente irão “transformar a realidade local”, prometendo infraestrutura para a operação da mineração, qualificação de mão de obra e empregos, tudo com “responsabilidade social”.

Entre o chamariz para os investidores está o discurso de que o lítio encontrado em Minas Gerais teria uma “pureza mais alta” em comparação ao encontrado na maioria dos países que lideram a produção hoje, como Chile, Argentina, Estados Unidos, Canadá e Austrália.

Essa pureza elevada facilitaria o uso do lítio mineiro na fabricação de baterias mais potentes para empresas de carros elétricos como a Tesla de Elon Musk, a Volkswagen e todas as montadoras que estão apostando na mudança da matriz.

O lítio mineiro também usaria menos água que o modelo convencional, algo que as fontes ouvidas pelo Observatório da Mineração contestam.

“O Vale do Lítio tem condições de ser um dos principais polos mundiais de fabricação e de desenvolvimento de tecnologias nesse setor. Estamos prontos para auxiliar os investidores com todas as informações disponíveis para que tragam seus projetos para Minas Gerais e aproveitem essa oportunidade de negócio”, disse, nos Estados Unidos, o diretor-presidente da Invest Minas, João Paulo Braga.

A estatal Companhia Brasileira de Lítio (CBL) opera no Vale do Jequitinhonha. O cenário começa a mudar com a entrada de players muito maiores como a canadense Sigma Lithium, que acaba de iniciar a produção e tem planos ambiciosos de expansão para os próximos anos.

Outras empresas, como Latin Resources, Atlas Lithium e Lithium Ionic estão sondando novas áreas para explorar lítio. Em Nazareno, a empresa AMG também já produz o concentrado de lítio e irá investir em uma planta química para transformar concentrado em carbonato.

Representando o Ministério de Minas e Energia, Vitor Saback, que no passado atuou como assessor direto de Paulo Guedes no Ministério da Economia de Jair Bolsonaro e foi nomeado pelo governo Lula secretário de Geologia, Mineração e Transformação Mineral do MME, afirmou que o Brasil quer “abrir as portas para alavancar a produção de lítio, divulgar os potenciais do País e ampliar os investimentos internacionais”.

Para Saback, o lítio vai transformar o Jequitinhonha e tornar a região um dos grandes polos de produção de lítio globais.

“O protagonismo do lítio no mundo é o protagonismo de Minas e do Brasil. Os olhos do mundo estão voltados para o Vale do Jequitinhonha. Se antes havia baixa oferta de serviços públicos e empregos na região, agora vai se tornar o Vale das oportunidades”, disse Saback.

Saback fez uma rodada de encontros com investidores em Nova York com o objetivo de ampliar a participação brasileira no mercado de lítio e de outros minerais tidos como essenciais.

O “Vale do Lítio” tem cerca de 45 depósitos descobertos até o momento, segundo estudos realizados pelo Serviço Geológico do Brasil. A SGB indica que o potencial de cada depósito compreende 20 vezes mais que as reservas minerais de outras regiões, garantindo matéria-prima a longo prazo.

Vitor Saback do MME / Divulgação

Brasil na contramão da geopolítica do lítio na América

Para Elaine Santos, pós-doutoranda na USP e que integra o Grupo de Estudios en Geopolítica y Bienes Naturales – IEALC/CLACSO, do ponto de vista geopolítico, o Brasil vai na contramão de países que estão nacionalizando as suas reservas, como o México e o Chile e países que tem desenvolvido a sua cadeia, como Espanha e Portugal. “O Brasil segue atrasado, mesmo explorando lítio há 30 anos. O país não está bem situado”, considera.

Países capitalistas tendem a considerar estratégicos reservas como o lítio, do ponto de vista social, tecnológico e de segurança nacional, como é o caso do lítio na União Europeia e dos Estados Unidos com Joe Biden, com políticas recentes voltadas para matérias primas essenciais.

“O Brasil vai na contramão do jogo geopolítico global. Não estou enxergando um debate sério e um compromisso político real com essa cadeia, apenas propaganda”.

No Chile, Gabriel Boric anunciou que irá colocar a indústria do lítio sob controle do estado, com regras rígidas e o domínio estatal sobre a produção, beneficiamento e escoamento do lítio. Chile, Argentina e Bolívia tem se articulado para manter a exploração do mineral nas mãos dos governos.

Abertamente e ao contrário, Vitor Saback do MME afirmou que o Brasil quer seguir o modelo da Austrália, muito mais permissivo e menos protecionista, com foco em atrair investidores para toda a cadeia.

Elaine Santos explica que a exploração do lítio no Brasil ocorre em rochas, no Triângulo do Lítio (Chile, Argentina e Bolívia) ocorre em salmouras. Para a pesquisadora, o impacto tem que ser analisado em cada local. Em rochas eles ocorrem sobretudo na extração, e os impactos em céu aberto e subterrâneos são diferentes.

O tratamento dos minérios pode ter impacto na água. No caso brasileiro cada mina precisa ser avaliada no seu contexto, de acordo com o seu entorno e as comunidades que vivem ao redor para saber os impactos. “Uma coisa preocupante é que novos patamares de extração mineral tem vindo de forma acelerada e isso sim pode trazer outros tipos de impacto que a gente precisa ter atenção”, diz Santos.

O tempo de maturação de projetos de lítio mudou bastante. Hoje é possível viabilizar projetos em menos de 2 anos, o que é uma mudança relevante dos parâmetros históricos de projetos que podiam levar décadas em análise.

Elaine Santos lembra que o mercado de produção de baterias é dominado pela China, a cadeia de valor desde a extração até as baterias é altamente tecnológica e concentrada. A China refina 59% do lítio produzido globalmente e domina componentes relevantes da cadeia, como a fabricação de células e fábricas, com quase 80% do mercado.

Os países que são potência dependem da China e o Brasil não é exceção. Tanto Estados Unidos e Europa tem tentado enfrentar esse problema. A única etapa que a China não domina é a extração, o que leva a uma corrida do lítio no Brasil e em outros países, diz.

“O Brasil pode melhorar sua posição e pensar melhor suas políticas para matérias primas estratégicas. É preciso que o debate seja sobre desenvolvimento de toda a cadeia. No Brasil o debate é limitado, não é parte de um projeto de país”, critica Santos.

AJUDE A MANTER O OBSERVATÓRIO

O Observatório da Mineração precisa do apoio dos nossos leitores com o objetivo de seguir atuando para que o neoextrativismo em curso não comprometa uma transição energética justa.

É possível apoiar de duas formas. No PayPal, faça uma assinatura recorrente: você contribui todo mês com um valor definido no seu cartão de crédito ou débito. É a melhor forma de apoiar o Observatório da Mineração. Aceitamos ainda uma contribuição no valor que desejar via PIX, para o email: apoie@observatoriodamineracao.com.br (conta da Associação Reverbera).

Siga o site nas redes sociais (Twitter, Youtube, Instagram, Facebook e LinkedIn) e compartilhe o conteúdo com os seus amigos!

E buscamos novos parceiros e financiadores, desde que alinhados com o nosso propósito, histórico e perfil. Leia mais sobre o impacto alcançado até hoje pelo Observatório, as aulas que ministramos e entre em contato.

Sobre o autor