Por Isis Medeiros*
Em 8 de fevereiro de 2019, duas semanas após o rompimento da barragem da mineradora Vale em Brumadinho (MG), que vitimou 272 pessoas e deixou um rastro de destruição em toda calha do Rio Paraopeba, 458 pessoas foram expulsas de suas terras em um município próximo, Barão de Cocais, após a mineradora anunciar o risco de rompimento de mais uma de suas estruturas, a barragem Sul Superior, pertencente a mina Gongo Soco. Já se passaram dois anos e seis meses e a empresa segue descumprindo direitos básicos e evacuando famílias em novas áreas.
Naquela fatídica semana do anúncio da Vale, a imprensa internacional bombardeou sobre o possível rompimento, e a estrutura foi do nível 2 ao 3, o nível máximo de alerta. Em uma canetada, o juiz de plantão Carlos Pereira Gomes Júnior definiu que todas as famílias das comunidades rurais de Socorro, Vila do Gongo, Piteiras e Tabuleiro, subdistritos de Barão de Cocais, fossem retiradas imediatamente de suas casas a fim de evitar uma nova tragédia com vítimas fatais em Minas Gerais. Mesma história se repetiu em Congonhas, Itatiaiuçu, Itabirito, Nova Lima e Ouro Preto. Cada uma dessas cidades possui ao menos uma barragem em alerta máximo e já são milhares as pessoas evacuadas, verdadeiras refugiadas de seus territórios.
Em novembro de 2020, outra barragem, a Norte Laranjeiras, pertencente à mina de Brucutu, em São Gonçalo do Rio Abaixo — a maior em operação da Vale em Minas Gerais, com capacidade de 30 milhões de toneladas de minério de ferro ao ano —, foi elevada ao risco de nível 2 pelo Sistema Integrado de Segurança de Barragens de Mineração (SIGBM), da Agência Nacional de Mineração (ANM). Outras 10 famílias das comunidades de Laranjeiras, São José de Brumadinho, Boa Vista e Una, também pertencentes ao município de Barão de Cocais, foram evacuadas e obrigadas a viver em casas alugadas na cidade. Segundo a Defesa Civil e a Vale, 24 famílias que estão a jusante da barragem ainda serão removidas no próximo período.
O que moradores evacuados denunciam
Os moradores denunciam junto aos órgãos públicos que a Vale conduz obras controversas nesses territórios, por vezes com interesses ocultos nas terras, hoje esvaziadas pelos acordos de compra e venda das propriedades. Segundo a comissão de atingidos, mais de 60% das áreas já foram negociadas com a Vale, após longo jogo de empurra-empurra criado pela empresa para desestruturar a retomada dos moradores.
Ouvimos atingidos destes municípios que suas lavouras foram morrendo ao longo dos anos e que seu eventual acesso a água limpa deu lugar à dependência de mercados e auxílios emergenciais pagos pela Vale. Eles relatam atraso e corte dos pagamentos (acertados à época da expulsão), negligência da prefeitura, ambiguidade por parte do Ministério Público Estadual e muita indignação. O medo inicial de um possível rompimento deu lugar à revolta depois de incontáveis reuniões de negociação sem sucesso com a empresa, que dificulta na justiça o processo de reparação dos danos materiais e morais causados às comunidades.
Elida Couto, uma das lideranças da comissão de atingidos, denuncia que a Vale tenha criado um fato para evacuar a comunidade onde tem interesse de expandir os negócios: “A Vale nos expulsou de casa porque quer minerar futuramente nessa região: ou para uma reserva de exploração ou para mitigar problemas futuros que ela teria com a comunidade. A gente vê ela muito interessada em comprar os terrenos, mas só negocia em blocos, nunca com algum morador isoladamente. A Vale cortou nossa renda mínima com intuito de pressionar o povo a negociar logo os terrenos e acelerar o processo. Como as pessoas estavam desempregadas, sem dinheiro e com medo de ficar na rua, começaram a negociar seus imóveis. Ela dizia que era importante negociarmos logo para que pudéssemos ‘reconstruir nossas vidas’”.
A proximidade das áreas de exploração da Vale com comunidades tradicionais, vegetação nativa e construções históricas poderia ser um dificultador para a expansão de seus negócios na região. Em 2019, depois de 70 dias de devastação de uma área de Mata Atlântica, a mineradora abandonou uma obra de emergência no entorno da barragem Sul Superior, após notar “inviabilidade técnica” no uso de explosivos, degradando mais uma área preservada. A região atingida por essas obras coincide com duas áreas de mineração sobre as quais a Vale tem interesse minerário: a mina Baú e o Projeto Apolo, arquivado em 2012. Se a Vale retomar o processo e obtiver licenciamento do Projeto Apolo, esse será o segundo maior empreendimento da mineradora no Brasil, depois de Carajás, no Pará.
Em documento elaborado pelo Ministério Público em março deste ano, o Projeto Apolo é citado: “No sítio eletrônico da Agência Nacional de Mineração (ANM) é possível verificar a existência de estudos de prospecção que identificam a presença de diversas espécies de minerais nesse subsolo, o que traz à tona o interesse de exploração dessas riquezas, dados esses que não são ignorados nos relatos das pessoas atingidas […]. Muitos citam o projeto ‘Apolo’ como um fato a ser considerado em todo esse processo que é um projeto de mineração em toda a região da Serra da Gandarela, no entorno da Complexo do Gongo Soco.”
Para Luiz Paulo, do Movimento pela Soberania na Mineração (MAM), a mineradora teria se aproveitado para expandir sua área de influência para futuros investimentos. “As pessoas estavam com a memória fresca e traumatizadas após Brumadinho e Mariana. A Vale pegou carona nesses crimes para alarmar e dominar novos territórios em Minas Gerais. E mais, há total interesse de mineração nessa região, existem grandes jazigos de minério que as empresas não revelam”.
Sobre a possibilidade de rompimento da Norte Laranjeiras, Luiz Paulo desacredita. “Essa barragem não tem risco de romper. O método de construção, por não ser montante, não possibilita rompimento por liquefação. Aconteceriam pequenos vazamentos até de fato um possível rompimento. Concluímos então que se trata de mais um plano para expulsar a população de áreas de interesse minerário”. E acrescenta: “Hoje a Vale é proprietária de grande parte desses terrenos e tem interesse em ter controle dessa região, do contrário ela teria focado em descomissionar a barragem e negociar o retorno das famílias, aumentando a segurança da população.” Descomissionar é o termo usado para a desativação total e destinação adequada dos resíduos de uma barragem e posterior retomada dos territórios evacuados.
O prefeito de Barão de Cocais, Décio Geraldo dos Santos, diz que a Vale tem interesse oculto nos territórios evacuados: “A Vale não divulga, mas tem interesse comercial nos territórios a partir do momento que ela diz que só consegue descomissionar a barragem em 2029. As pessoas vão desistir dessas terras quando não virem mais seus vizinhos; até lá os terrenos já vão estar completamente descaracterizados. Hoje a empresa paga bem menos pela terras do que no início das negociações, com intenção de desvalorização e dominação.”
Apesar de o Ministério Público ter anunciado no dia 27 de maio, a estabilidade do muro construído pela Vale para conter o rejeito da barragem que atingiria as comunidades, nenhuma decisão foi tomada até o momento quanto ao descomissionamento da barragem, ou seja, desativação total e destinação adequada dos resíduos da barragem Sul Superior e posterior retomada dos territórios evacuados.
Negociações na Justiça
As audiências de acordo entre a Vale, o Ministério e Defensoria Pública de Minas Gerais e a Prefeitura de Barão de Cocais voltaram a acontecer com método bem parecido ao acordo da Vale em Brumadinho. Mais uma vez, uma decisão dessa magnitude é feita sem a participação dos atingidos. As famílias atingidas pela barragem Sul Superior seguem reivindicando quatro pontos principais: o imediato descomissionamento da barragem; a continuidade do pagamento de renda mínima até concluir o descomissionamento; o pagamento de dano moral coletivo à cidade de Barão de Cocais, pelo prejuízo às atividades econômicas, como o turismo, ao nome da cidade e ao medo implantado; indenização às famílias atingidas.
Procurada pela reportagem, a Vale apresentou ações paliativas em suas estruturas e nas comunidades, mas não respondeu sobre seus interesses minerários na região. O Ministério Público de Minas Gerais não respondeu até o fechamento da reportagem.
A última audiência aconteceu no dia 2 de julho no Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Na data não ficou definido nenhum dos pontos de reivindicação dos atingidos, mas foi exigido que a Vale mantenha o pagamento de salário emergencial às famílias; os órgãos públicos envolvidos ficaram responsáveis por encaminhar uma proposta de acordo com a mineradora, com direito à contraproposta. A próxima audiência foi marcada para 06 de novembro.
Matéria originalmente publicada na Mongabay, parceira do Observatório
Fotógrafa documentarista, colabora com veículos impressos e eletrônicos no Brasil e no exterior. Documenta movimentos e organizações de resistência política e grandes manifestações populares. Denuncia em seu trabalho a violência do Estado e as violações de direitos humanos. Lançou, em 2020, o livro “15:30”, sobre o desastre de Mariana, pela Editora Tona.