Por Pablo Pires Ferrnandes
Estabelecida em 1996, a Lei Kandir isenta o pagamento de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) para produtos destinados à exportação. A lei beneficia grandes exportadores de matéria prima como soja, petróleo, carne bovina e minérios, principalmente o minério de ferro.
No caso da mineração, Pará e Minas Gerais são os estados mais afetados por serem os maiores exportadores. Como cerca de 80% do minério de ferro é exportado, estados e municípios, que receberiam tributos pela extração, deixam de receber o ICMS.
Sob pressão dos governadores, prefeitos e representantes do Congresso, o ex-presidente Jair Bolsonaro sancionou, sem vetos, a Lei Complementar 176/20, para compensar os estados pelas perdas decorrentes da Lei Kandir, algo previsto desde a promulgação da lei.
Entre 2020 e 2037 o governo federal irá repassar R$ 58 bilhões para compensar as perdas por desoneração de exportações, sendo determinado o valor de R$ 4 bilhões por ano. Há ainda previsto na lei um acréscimo de R$ 4 bilhões proveniente do leilão de petróleo do pré-sal dos campos de Atapu e Sépia, de 2021.
De acordo com o portal Tesouro Nacional Transparente, desde a aprovação da Lei 176/20, estados e municípios receberam R$ 16,2 bilhões, sendo R$ 3 bilhões em 2020, R$ 5 bilhões em 2021 e R$ 4 bilhões em 2022 e 2023.
Foto de destaque: Ingrid Barros / Observatório da Mineração
“A Lei Kandir é uma aberração”
Waldir Salvador, consultor de Relações Institucionais e Econômicas da Associação de Municípios Mineradores do Brasil (AMIG) critica a Lei Kandir afirmando que a isenção não traz benefícios para o país. “A mineração é um tipo de economia exaurível, não renovável e deve ser tributada porque ela não deixa nada. O benefício é apenas balança comercial para dar saldo”, completa.
Um dos principais argumentos contra a Lei Kandir ser aplicada à mineração é de que se trata de um bem não renovável e, por isso, retoma a discussão sobre o imposto seletivo, a revisão das alíquotas da CFEM (o “royalty da mineração”) como compensação e toda a estrutura tributária sobre a mineração.
Sobre o imposto seletivo, ele foi acrescido na Reforma Tributária pelo Senado, sobretudo para bens de consumo prejudiciais à saúde (bebidas, cigarros), mas também sobre bens que prejudicam o meio ambiente, caso da mineração e dos combustíveis fósseis (carvão mineral, gás e petróleo).
Na redação dada pelos senadores, os setores mencionados foram apenas a extração de minérios e de petróleo e gás. No entanto, oito frentes parlamentares se articulam para derrubar esta redação, que teria uma alíquota máxima de 1%.
Outro, segundo o professor da Faculdade de Engenharia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Bruno Milanez, é de que a lei desestimula a industrialização do país, já que os incentivos à exportação de matéria prima prejudicam o beneficiamento dessas commodities internamente.
Em maio de 2023, houve audiência pública sobre o tema na Comissão de Minas e Energia da Câmara, que tratou especificamente sobre a mineração, mas não houve mudanças de fato. O tema é considerado um dogma, porque as exportações de minérios e derivados, assim como o petróleo, garantem saldo na balança comercial, argumento usado pelo setor mineral para manter privilégios econômicos e políticos.
“A reforma tributária, para as mineradoras, está ótima”
O tema voltou ao debate com a Reforma Tributária, que extingue o ICMS. De acordo com o professor do Cedeplar (Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG), Ricardo Machado Ruiz, “a Reforma Tributária praticamente tornou a Lei Kandir uma regra”.
“Não foi mexida, a lei está implícita na reforma, que diz que exportação não paga imposto. Podemos dizer que a Reforma Tributária, para as mineradoras, está ótima”, atesta Ruiz, acrescentando que associações, como o Ibram, usam termos radicais para criticar qualquer proposta de alterar a lógica tributária da mineração.
Para o Ibram (Instituto Brasileiro de Mineração), que representa as grandes mineradoras, “a Lei Kandir é fator imprescindível de competitividade para todos os exportadores do país”. Em reposta ao Observatório da Mineração, a entidade afirma que “não há debate instituído sobre a extinção da referida lei”.
“Há manifestações isoladas de grupos interessados em elevar sua arrecadação a qualquer custo com o sangramento das receitas da mineração e de outros segmentos. Sobre isso, há impasses que envolvem transferências de recursos financeiros da União para os demais entes federativos, portanto, os setores exportadores – como mineração, agronegócio, petróleo, entre outros – não podem ser alvos dessa disputa”, diz a nota do Ibram.
“A Amig pediu uma análise de competitividade do nosso minério mundo afora para saber se, de fato, uma compensação pela Lei Kandir iria tirar algo de competitividade das nossas commodities, mas o que vemos é que, pelo contrário, nós somos os que menos oneramos a atividade minerárias, são dados e números a partir dessa pesquisa feita pela UFMG”, diz Salvador, acrescentando que o material está nas mãos dos congressistas, “mas não conseguimos sensibilizar esse povo”.
Manobras empresariais indicam sonegação de bilhões
Outra crítica à falta de tributação nas exportações é o fato de que grandes empresas – como a Vale, de capital internacional e operação em vários países – se utilizam de um recurso legal para aumentar seus lucros.
Milanez cita estudo feito pelo Instituto de Justiça Fiscal (IJF), coordenado pelo Observatório da Mineração, para reforçar o argumento da chamada triangulação tributária e da manobra contábil praticada pelas grandes mineradoras.
“Basicamente é que as empresas vendem o próprio minério para um paraíso fiscal com um preço subfaturado, declarando a receita menor do que a real – e com isso paga menos impostos – e suas filiais vendem para a China ou Emirados Árabes, por exemplo, com um preço de mercado. Como ela está num paraíso fiscal, o imposto que vai incidir ali é menor do que o imposto pago no Brasil”.
Alessandra Cardoso, analista do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), diz que “ainda que a lei permita e exista o preço de transferência, não é uma prática moralmente lícita”.
“Na medida que há leis e regras tributárias, as empresas e corporações, todas transnacionalizadas, vão fazer um planejamento tributário e utilizar de todos os mecanismos possíveis na margem legal para ampliar o lucro”, diz a analista, completando que o correto seria haver um sistema de tributação internacional regulamentado, o que é muito difícil.
Alessandra afirma que se trata de um problema estrutural do Brasil, que é ter um Estado tributário composto de uma parafernália de regimes de subsídios que representa uma camada de injustiça fiscal.
“É um sistema que, além de ter uma estrutura tributária que penaliza os mais pobres, baseada na tributação indireta, existe ainda essa quantidade de regimes de renúncias. E, no caso, a Lei Kandir reduz muito a carga tributária dos setores exportadores. Então, a carga tributária efetiva é muito aquém da carga tributária padrão de um cidadão brasileiro”, diz a analista do Inesc.
Alessandra aponta que, na área da Sudam, os incentivos fiscais se somam à Lei Kandir, como destacou o Observatório da Mineração. Ela defende a adoção de critérios – hoje inexistentes – para a concessão de benefícios fiscais e a estruturação de órgãos de monitoramento e avaliação permanentes.
Na nota técnica do Inesc, de junho de 2023, entre as recomendações está: “que a avaliação desses incentivos fiscais inclua critérios de temporalidade, seletividade, distributividade e, também, de geração de emprego, renda, redução da desigualdade regional, respeito às legislações ambiental, de direitos humanos, territoriais e trabalhista”.
O caso da Amazônia é especialmente delicado por causa das questões ambientais e da presença de povos originários e tradicionais. O atual modelo de incentivo vai totalmente de encontro às demandas desses povos e da preservação da floresta e de outras riquezas ambientais.
Ruiz acredita que o debate ainda deve ser realizado. “Haverá uma discussão sobre temas que, até agora, ainda não foram postos: Como se dá a mineração em áreas com povos originários? Ou comunidades e populações locais (quilombolas) etc.? Isso é um problema complicado.”
A falta de regulação, segundo Ruiz, traz um problema para as próprias mineradoras, sobretudo as multinacionais. “Se o governo sentar com as grandes mineradoras como a Vale, as grandes canadenses e europeias e conseguir normatizar esse tema, elas ficariam tranquilas porque eliminariam o risco de disputas judiciais e daria mais segurança para a atividade”, coloca Ruiz.
O professor aponta que o maior problema são as pequenas mineradoras, sobretudo do ouro, que criam um problema político grande, já que têm apoio de muitos prefeitos. “As grandes mineradoras querem se afastar dessa mineração ilegal, ainda mais agora que existe uma pressão internacional sobre a questão ambiental e em defesa dessas populações tradicionais. Mas a conversa é bruta.”
Em matéria anterior, o Observatório da Mineração detalhou como as mineradoras que atuam na Amazônia recebem bilhões de reais em incentivos fiscais por ano. Só a Vale obteve, em 2021, mais de R$ 19 bilhões em incentivos por suas operações na região.
A sonegação da CFEM também é outro problema grave: o montante pode ter acumulado R$ 35 bilhões somente nos últimos cinco anos. A reforma tributária também intensificou o debate sobre a CFEM, com municípios tentando evitar o prejuízo e o setor mineral atuando para não arcar com mais impostos.
*Pablo Pires Fernandes é jornalista freelancer e cronista. Trabalhou como repórter, redator e editor nos jornais O Tempo e Estado de Minas e diretor de redação do site Dom Total, além de colaborar para outros veículos no Brasil e no exterior.