Por Lilian Caramel, republicado em parceria com o Diálogo Chino
Foto de destaque: Vanessa Nicolav / Brasil de Fato
Uma longa disputa vem opondo empresas que tentam destravar um dos maiores empreendimentos minerários do Brasil, e comunidades tradicionais, que temem impactos irreversíveis em seu território ancestral como resultado das obras.
A mineradora Sul Americana de Metais (SAM), subsidiária da empresa privada de investimentos Honbridge Holdings, de Hong Kong, e a Lotus Brasil Comércio e Logística, ligada à SAM, preveem explorar 27,5 milhões de toneladas anuais de minério de ferro no Vale das Cancelas, região no norte de Minas Gerais. A maior parte da produção deve ser embarcada à China, segundo a mineradora.
A SAM informou ao Diálogo Chino estar à procura de novos sócios que ajudem a tirar do papel o projeto que teria, além da mina e outras obras de grande porte, a maior barragem de rejeitos do país, com capacidade para 1,3 bilhão de metros cúbicos — a barragem que se rompeu em Mariana em 2015, inundando 35 municípios, tinha 62 milhões de metros cúbicos. Ao mesmo tempo, as empresas buscam aprovar um polêmico licenciamento ambiental para o complexo minerário.
Porém, a região é habitada por cerca de 2.230 famílias, que não aceitam ser realocadas, nem assistir à devastação de seu território. Por isso, líderes locais junto de organizações civis acabam de concluir um protocolo de consulta livre, prévia e informada às comunidades sobre o projeto, como previsto pela Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais, da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário.
O Coletivo Margarida Alves, que presta assessoria jurídica popular, explica que essa consulta é um direito das comunidades, mas o processo apropriado vinha sendo relegado no Vale das Cancelas — uma realidade corriqueira no país. “Existe uma série de empreendimentos sendo licenciados Brasil afora sem que as comunidades sejam incluídas e respeitadas”, disse Layza Santos, advogada do coletivo.
O objetivo agora é levar o documento às autoridades em busca de proteção jurídica contra o megaprojeto. “Da nossa parte, vamos lutar contra ele enquanto tivermos forças”, disse ao Diálogo Chino Marlene Ribeiro, líder local e presidente do Conselho Intermunicipal dos Territórios Tradicionais Geraizeiros e Vacarianos. “Não vamos deixar acabarem com tudo”.
O conselho calcula que as obras demandem a realocação forçada de pelo menos três mil geraizeiros e vacarianos que vivem na região há sete gerações, ameaçando cultivos alimentares e modos de vida tradicionais. Esses povos ocupam as chapadas do interior do Brasil, onde criam gado e outros animais em áreas coletivas, soltos por vastas áreas do Cerrado à Caatinga.
Insegurança fundiária
Assim como a maioria das populações tradicionais do Brasil, as comunidades do Vale das Cancelas ainda buscam o título de posse das terras que ocupam há gerações.
Em 2018, as 73 comunidades geraizeiras que habitam a região foram reconhecidas como tradicionais pela Comissão Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais. Mas o Estado vem demorando a destinar o território às comunidades e promover a regularização fundiária da área — seu papel conforme a lei. O atraso do governo vem impulsionando conflitos violentos na região há décadas.
Segundo líderes comunitários, outro passo importante no processo foi recentemente concluído: um laudo antropológico elaborado pela Universidade Federal de Minas Gerais e que contou com a participação ativa da população local. As comunidades esperam que o documento acelere a esperada posse definitiva da terra.
Desde os anos 1970, essas comunidades baseadas no norte de Minas Gerais vêm sofrendo com o avanço desenfreado da monocultura de eucaliptos e com a grilagem de terras por empresas e latifundiários, segundo a Comissão Pastoral da Terra, organização que acompanha conflitos rurais no Brasil.
Nos últimos anos, elas passaram a sofrer pressões também da mineradora SAM, que em 2008 ganhou autorização do governo federal para começar pesquisas minerárias na região. O projeto do Bloco 8, como é chamado, deve custar R$ 7,25 bilhões.
“A SAM tem fome de minerar por aqui”, disse Marlene Ribeiro. “Seus funcionários circulam em caminhonetes traçadas o tempo inteiro, batem na porta das comunidades com documentos de origem duvidosa e tentam ganhar a confiança das famílias que precisarão ser removidas. No Natal, eles distribuíram panetone para os adultos e doces para as crianças”.
Até 2019, a empresa já havia gasto quase US$ 148 milhões (cerca de R$ 1 bilhão, considerando a cotação do dólar à época e a correção do valor pela inflação) com pesquisas minerárias, projetos de engenharia e despesas operacionais, mas ainda esbarra no licenciamento ambiental.
O complexo minerário envolve uma mina a céu aberto, três barragens de água, adutoras, uma linha de transmissão de energia, uma usina de tratamento e duas barragens de rejeitos, entre elas a maior do país.
A polpa aquosa do minério — a forma usual como a commodity é transportada — deverá ser levada por um mineroduto de 481 quilômetros, um dos maiores do mundo, se aprovado. A intenção é transportar a commodity de Minas Gerais até o Porto de Ilhéus, na Bahia, atravessando 21 municípios e territórios de outras comunidades. E dali para o mercado internacional.
A primeira versão do projeto foi rejeitada pelo Ibama, órgão federal de proteção ambiental, dado sua enorme dimensão e potenciais impactos ambientais. Por isso, em 2017, a SAM abriu a Lotus Brasil Comércio e Logística e mudou a estratégia: agora, as duas empresas pedem licenças separadas para o mineroduto e a mina.
Atualmente, o licenciamento está a cargo da Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam), do governo de Minas Gerais, que informou ao Diálogo Chino que a mina encontra-se na fase de análise prévia, a primeira etapa do processo. A SAM, que não quis conceder entrevista, afirmou por nota estar analisando os pareceres da Feam, que pediu novos estudos técnicos à mineradora.
Já no caso do mineroduto, a Feam ainda precisa discutir com seu homólogo na Bahia, o Inema, a formalização de uma cooperação técnica para o estudo de impactos ambientais, uma vez que o mineroduto passa pelos dois estados. A Lotus disse, também por nota, que aguarda esse termo de cooperação para seguir com o projeto e informou que planeja produzir hidrogênio verde a partir do tratamento de resíduos gerados pelo transporte do minério.
As empresas seguem apresentando o projeto para equipes do governo de Minas Gerais e da Bahia, mas não às comunidades, segundo o geraizeiro Adair de Almeida, que critica que os responsáveis pelo projeto tenham excluído as famílias do processo.
“Os moradores estão fora da conta”, disse Almeida. “O interesse econômico está acima de tudo, e a mineração sempre vem primeiro do que nós”.
Patrimônio ecológico ameaçado
Região de transição entre o Cerrado e a Caatinga, o Vale das Cancelas possui ecossistemas únicos, como campos rupestres ferruginosos, dezenas de espécies vegetais ameaçadas e jazidas de diamantes de excelente qualidade. “Na área comum das chapadas, onde criamos os animais, temos pequi, buriti, mangaba, jatobá, plantas medicinais…”, enumera o geraizeiro.
Para Almeida, o Cerrado, pela sua importância ecológica e social, não poderia receber um empreendimento da dimensão do proposto pela SAM e Lotus: “Licenciar essas obras seria um absurdo. É um projeto de devastação”.
O Bloco 8 também pode afetar 138 nascentes, com a supressão de 57 delas, em uma região que já sofre com a escassez hídrica devido às condições naturais do semiárido, mudanças climáticas que trazem secas severas e o impacto de longo prazo do cultivo de eucalipto para suprir a produção de carvão. Na bacia do rio Jequitinhonha, onde seria erguido o empreendimento, vários rios que eram perenes tornaram-se intermitentes. Córregos secaram na região dos geraizeiros.
Apesar do quadro preocupante, a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico concedeu outorga para que a SAM capte 51 milhões de metros cúbicos de água ao ano — volume suficiente para abastecer uma cidade de 400 mil pessoas nesse período — de uma barragem no rio Jequitinhonha, que dá nome a uma das regiões mais vulneráveis de Minas Gerais.
Trata-se de “uma região empobrecida por políticas públicas equivocadas”, diz Felipe Soares, educador e militante no Movimento dos Atingidos por Barragens. “Nenhum dos grandes projetos que chegou trouxe o tal do ‘desenvolvimento’”. Para o ativista, fortalecer a agricultura familiar e a bioeconomia seria uma abordagem de desenvolvimento regional mais coerente.
O grande volume de água captada servirá tanto para separar o minério da terra quanto para transportar sua polpa aquosa pelo mineroduto até o porto baiano. Os geraizeiros temem que, se o projeto receber aprovação para operar, pode haver água para a mineração, mas não para abastecer famílias e seus roçados.
“No ano passado, ficamos seis meses em estado de emergência por conta da seca”, lembra Almeida. Este ano, os municípios do Vale das Cancelas continuam prejudicados pela seca severa, conforme atualização da Defesa Civil de Minas Gerais.
A China e o minério de ferro
Maior consumidora de minério de ferro no mundo, a China é a maior cliente do mineral brasileiro, destinado à sua enorme indústria siderúrgica. Já o Brasil é o segundo maior exportador do produto, atrás da Austrália, país que também tem a China como seu maior cliente.
O país asiático é o terceiro maior produtor mundial da commodity, mas ela é de baixa qualidade. Além disso, suas minas estão se esgotando, e o custo de produção em solo chinês é alto. Nos últimos anos, houve movimentos estratégicos do governo chinês para financiar projetos de minério de ferro em todo o mundo, além da criação de uma agência centralizada e estatal de compra de minério de ferro em 2022.
Kelly Ferreira, membro do Observa China, rede independente de profissionais e pesquisadores estudiosos do país, diz que o governo chinês espera ver novos empreendimentos como o do Vale das Cancelas prosseguirem: “Diversificar fornecedores de materiais estratégicos é uma forma de garantir o suprimento, evitando a dependência de um único país. Somos ricos em recursos e temos boas relações com a China, então, o interesse no Brasil é natural”.
Embora a SAM e a Honbridge sejam empreendimentos privados, sem apoio de estatais chinesas, a produção do Vale das Cancelas deve ser destinada em grande parte ao mercado chinês.
Mas Ferreira reforça que projetos como o Bloco 8 precisam ser viáveis para ambas as partes — as comunidades tradicionais e os investidores interessados num dos minerais mais importantes para a economia chinesa. “Negociar áreas de menor relevância socioambiental para tamanha exploração pode ser uma saída mais inteligente”, finaliza.