O estado de Minas Gerais não foi construído pela mineração, como muitos tentam vender, reescrevendo a história. O estado de Minas Gerais foi construído pelo trabalho do povo preto, arrancado à força de suas comunidades em África e trazidos para a então Vila Rica para enriquecer a elite colonial às custas de vidas negras.
Passados alguns séculos, a história se repete hoje no estado que continua dependente da mineração e continua desrespeitando os direitos humanos, as leis e a Constituição.
A Comunidade Quilombola Manzo Ngunzo Kaiango, na região Leste de Belo Horizonte, patrimônio imaterial de Minas Gerais desde 2018 e patrimônio de BH desde 2013, será diretamente afetada pelo projeto de mineração da Tamisa/Cowan na Serra do Curral.
No entanto, os membros da comunidade jamais foram ouvidos pela mineradora e tiveram o seu direito de consulta prévia, livre e informada ignorado. A Tamisa tenta ignorar a própria existência da comunidade.
Cerca de 42 famílias convivem no quilombo situado no bairro de Santa Efigênia, bem próximo – até 3km – da área da Serra do Curral que será afetada pela Tamisa, região da Mata da Baleia, onde foi criada a primeira unidade de conservação ambiental de BH, em 1932. O quilombo também tem outra área em Santa Luzia, na região metropolitana da capital.
Nos locais pratica-se religiões de matriz africana, como a Umbanda e o Candomblé de nação Congo-Angola. Também existe um projeto social, o Kizomba, que atende dezenas de jovens da comunidade em atividades culturais.
Para Makota Kidoialê, a mineração na Serra do Curral afetará violentamente o modo de vida do quilombo Ngunzo Kaiango. “Isso muda toda a lógica natural de vida e sobrevivência de uma população que não aceita e não quer viver no modelo capitalista. Nós deveríamos ser consultados. Você não pode forçar uma comunidade a viver do modo que você quer”, diz a Makota, cargo de grande importância dentro de um terreiro de candomblé.
As pessoas que vivem em torno do quilombo usam as áreas disponíveis para hortas comunitárias e realizam seus cultos nas matas próximas às nascentes ainda restantes na região, inclui também uma árvore sagrada para eles.
Mineração pode exterminar a comunidade, que não teve o direito de se defender
É impossível conciliar a mineração com o modo de vida tradicional do quilombo, afirma Cássia. “Isso é um extermínio da comunidade que não teve o direito de fazer a sua defesa”, denuncia. Para a liderança, o que a Tamisa/Cowan fez foi tentar apagar a existência da comunidade.
A região onde fica o quilombo, de importância histórica, ambiental, cultural e sagrada para a população de Belo Horizonte, reúne outro ponto relevante. O Parque da Baleia está a cerca de 1 quilômetro dos vestígios do antigo Curral del Rey, onde foi encontrado um muro de pedras, construído por escravizados, marco da fundação de BH.
Sem a mata, o quilombo não tem como existir. “Sem a continuidade das nossas instituições culturais a gente deixa de existir e passa a ser parte de uma sociedade morta”, afirma a liderança.
Mesmo ignorada, a opinião da comunidade é muito clara, destaca Cássia: totalmente contra o projeto da Tamisa. “Não existe a possibilidade de fazer qualquer tipo de acordo”, diz.
A matriarca do quilombo, Mãe Efigênia, está com 76 anos. Cássia tem 52. Quando chegaram ao que hoje é o bairro de Santa Efigênia o que existia eram córregos e nascentes, alguns que ainda servem de referência para a comunidade e que podem desaparecer com a mineração da Tamisa.
Eram essas águas, chamadas pela comunidade de “primeira, segunda e terceira” águas que serviam para delimitar o espaço geográfico e orientar a vida dos moradores. Mesmo reconhecido como patrimônio de Minas Gerais e de Belo Horizonte, tudo isso está ameaçado.
Com uma vivência completamente distinta ao entendimento econômico comum, Cássia Cristina questiona o tamanho da área de propriedade da Tamisa. “Para nós nascente não tem dono. Mas eles são donos de tudo, sabe? A gente queria até entender como se deu essa política de divisão de terras em Minas”, questiona.
Em linguagem bantu, Manzo Ngunzo Kaiango quer dizer “a casa da força de Kaiango”, nkisi ligada aos raios e ventos, semelhante à Iansã, na Umbanda e Santa Bárbara no catolicismo, que é padroeira do Corpo de Bombeiros.
A família de Cássia Cristina veio do Morro da Queimada em Ouro Preto na década de 50, região responsável pela “febre do ouro” em Minas Gerais, local da primeira capital do estado (Mariana) e que foi erguida e mantida com o sangue dos escravizados africanos.
O Morro da Queimada é um sítio arqueológico na serra de Ouro Preto que abriga vestígios de residências e serviços de mineração dos séculos 18 e 19 e foi um dos principais palcos da Sedição de 1720 conhecida como Revolta de Felipe dos Santos.
A situação de desrespeito e ameaça vivida pelo Manzo Kaiango em BH é a realidade de centenas de outros quilombos em Minas Gerais que enfrentam hoje o avanço da mineração.
O direito de consulta prévia, livre e informada aos quilombolas é garantido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, ratificado em lei pelo Brasil. A Constituição Federal também assegura os direitos das comunidades tradicionais.
O quilombo Manzo Ngunzo Kaiango foi apenas o sexto bem reconhecido como patrimônio imaterial de Minas e se juntou a um grupo seleto que inclui o modo artesanal de fazer o queijo da Região do Serro (2002), à Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Chapada do Norte (2013), à Comunidade dos Arturos (2014), às Folias de Minas (2017) e às Violas (2018).
Silêncio, descaso e censura sob o verniz do tecnicismo
Procurada para comentar o porquê de não consultar os moradores do quilombo Manzo Kaiango e apagar a comunidade do processo de licenciamento, a Tamisa/Cowan não respondeu ao pedido da reportagem.
O governo de Minas Gerais e o IEPHA (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado) não se manifestaram.
“É isso que eu queria que o estado nos respondesse. Como é que se cuida de um patrimônio do estado violando a sua existência e ninguém é punido?”, pergunta Makota Kidoialê.
Os órgãos estaduais, incluindo a Secretaria de Meio Ambiente (Semad), votaram de forma unânime a favor do licenciamento da Tamisa/Cowan na reunião que definiu a aprovação para o projeto.
A prefeitura de Belo Horizonte entrou na justiça contra a expansão da mineração na Serra do Curral. Em audiência que repudiou o projeto na Câmara de BH, os representantes da Tamisa não compareceram.
Em resposta ao Observatório da Mineração, a prefeitura de BH disse que “desenvolve, por meio de várias ações de salvaguarda, formas de garantir a continuidade da relação da comunidade quilombola Manzo Kaiango com a natureza, uma vez que essa relação é elemento fundamental dentro do modo de vida do quilombo e nas suas práticas culturais diversas, tais como: alimentação comum e votiva, medicina popular, benzeção e banhos de ervas, entre outras”.
Romeu Zema (Novo), governador do estado, declarou ontem que “as pessoas comuns” de Minas não podem sequer opinar sobre o projeto da Tamisa porque somente “os técnicos” da Semad tem competência para tanto.
A vontade de excluir a população do debate é ampla e direta. No caso do quilombo, o título de patrimônio imaterial fortalece ainda mais a participação da comunidade nas discussões sobre política, patrimônio, preservação e história em Belo Horizonte e MG.
Aliado de primeira e última hora de mineradoras, o governo de Romeu Zema, a exemplo de todos os governos anteriores em Minas Gerais, deixa bem claro a quem serve.