Dois meses depois do rompimento da barragem da Samarco em Mariana, apesar de todas as multas aplicadas (e não pagas), do lentíssimo andamento das investigações e dos inúmeros abusos cometidos pela empresa, incluindo o estado de exceção implantado na cidade, o retorno das suas operações já começa a ser arquitetado no gabinete do prefeito Duarte Júnior (PPS).
Como sempre, a desculpa usada é a “importância econômica” da empresa para a região. Como sempre, políticos se prestam ao papel de passadores de chapéu, aceitando alíquotas absolutamente ridículas, gerando uma dependência econômica nefasta que, ao contrário de “desenvolver a região”, como se vende, acaba por favelizar e tornar a população refém de contrapartidas totalmente insuficientes e enganosas. Em Minas Gerais, no Pará, Espírito Santo e em todo canto onde a mineração é uma das principais atividades.
Aos fatos: as cidades ficam com 0,7% do lucro do repasse de 2% do faturamento dividido entre município, estado e União. Repito: 0,7%, menos de risíveis 1% do lucro total da Samarco, ficam em Mariana. No total, a taxa de 2% é a mais baixa do mundo. Assim, dos R$ 2,8 bilhões que a empresa lucrou em 2014 (o quinto maior lucro líquido do Brasil), Mariana recebeu, pasmem, R$ 20,2 milhões. Os acionistas, claro, receberam 65%: mais de 1,8 bilhão foram para o bolso dos sócios da Samarco. Não é tão difícil compreender como a desigualdade brutal é criada (o Brasil está, ainda, entre os 10 países mais desiguais do mundo) e como as empresas detém tanto poder, financiando campanha de políticos e mantendo a legislação do jeito que seja mais favorável para elas.
O Plano Nacional de Mineração, publicado em 2011 e com metas para até 2030, é didático em nos mostrar como a sanha por esses lucros estratosféricos, atropelando licenças ambientais, o direito de comunidades e a história de cada lugar em função de metas absurdas, como aquela que prevê a produção de 1 bilhão de toneladas de minério de ferro em 2030. Repito: 1 bilhão de toneladas de minério de ferro. Veja o quadro (todas as figuras do texto podem ser ampliadas, clique).
Sabe como se atinge essas metas? Ignorando tudo que deveria ser feito para produzir com responsabilidade e forçando a máquina produtiva para além do seu limite, o que gera desastres como o ocorrido em Mariana. O PNM é muito claro em seus objetivos. Destaco esses pontos:
Os bens minerais formam a base do padrão de consumo e da qualidade de vida da sociedade moderna. O País é um importante produtor mundial de minérios, mas seu consumo per capita encontra-se entre 15% e 30% dos países que já lograram atingir níveis mais elevados de desenvolvimento. Essa assimetria se reproduz internamente, com o baixo consumo das regiões Norte e Nordeste, em relação às demais regiões.
Na vigência deste Plano, o consumo per capita de produtos de base mineral deverá igualar ou superar o consumo médio mundial, até 2015, e triplicar até 2030, atingindo um patamar próximo ao de países desenvolvidos, com o Brasil alcançando um PIB per capita superior a US$ 20 mil, associado a uma melhor distribuição de renda.
Para viabilizar este aumento do consumo, tratado de modo acrítico, como se fosse necessariamente “motor de desenvolvimento”, o PNM afirma que a governança pública será fundamental, inclusive revendo a defasada e ultrajante Compensação Financeira Pela Exploração de Recursos Minerais, os royalties da mineração, hoje em 2%, citados no início do texto. Sabemos, no entanto, como mostramos aqui e aqui, que os deputados da Comissão Especial do Novo Código de Mineração, são, em sua maioria, financiados pelas mineradoras. E o texto do código, inclusive, foi escrito em computador de advogado da Vale. Ou seja, no popular: tá tudo dominado. Tudo construído para as coisas “mudarem”, dando a falsa sensação de “endurecimento” e “reforma” para continuarem exatamente como estão.
Veja as metas e o que está por trás delas, segundo o PNM.
Nesse processo de mudanças que o País atravessa, o setor mineral exerce papel relevante, porque é a base de diversas cadeias produtivas que geram o padrão de consumo da sociedade moderna. Além disso, as atividades de geologia, mineração e transformação mineral estão interconectadas a espaços territoriais, sociopolíticos e econômicos, com tendência à grande expansão, dadas as projeções de crescimento dos mercados de bens minerais, tanto no Brasil como no mundo. O crescente processo de internacionalização das empresas brasileiras também reflete as mudanças que o País vivencia e aponta para sua maior projeção internacional.
O Brasil tem algumas centenas de empresas atuando no exterior, destacando-se seis do setor mineral entre as 52 empresas brasileiras mais internacionalizadas: Gerdau, Grupo Camargo Corrêa, Grupo Votorantim, Magnesita, Tupy e Vale. Estão em pleno desenvolvimento da internacionalização a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e a MMX Mineração, entre outras. Do ponto de vista empresarial, esse movimento possibilita a oportunidade de aquisição de novas jazidas, expansão dos mercados e diversificação dos consumidores. Além disso, a necessidade de adaptação a outras culturas condiciona a empresa a atuar em ambiente competitivo que a globalização impõe.
De fracassos retumbantes como a MMX de Eike Batista até a Vale, segunda maior mineradora do mundo, perdendo somente para a BHP, sua sócia na Samarco, a exploração mineral brasileira é totalmente voltada para a livre apropriação dos recursos por essas empresas. Muitas vezes, diga-se, financiadas com dinheiro público via BNDES e também concessões e incentivos fiscais.
O relatório segue detalhando a participação do setor mineral no PIB do Brasil, aspectos geológicos e de recursos hídricos, consumidos enormemente pela indústria. Outros dois pontos importantes: a vida útil das reservas, o aumento exponencial na concessão de lavras nos anos 00 e a participação do Brasil no mercado mundial.
Concentrada, a CFEM expõe as desigualdades já conhecidas do território brasileiro:
A arrecadação da CFEM, em 2009, revela a concentração do recolhimento em poucas substâncias (Tabela 1.10). Os 16 minerais listados respondem por 95% da arrecadação e apenas dez deles somam 90%. A preponderância é para o minério de ferro (58%), na classe dos ferrosos; cobre (7%), na classe dos não-ferrosos; ouro (4%), nos metais preciosos; e fosfato (4%), na classe dos não-metálicos.
A Figura 1.18 ilustra a distribuição geográfica do recolhimento da CFEM, bem como indica os 1.923 municípios brasileiros que apresentam mineração formal, em 2009. A produção mineral do Brasil tem como origem 2.647 minas (Universo da Mineração, DNPM, 2007), das quais: • 119 são de grande porte (acima de 1 Mt/ano, 5% do total) . • 633 de médio porte (abaixo de 1 Mt e acima de 100 kt/ano, 24% do total). • 1.895 de pequeno porte (abaixo de 100 kt e acima de 10 kt/ano de run-of-mine, 71% do total).
Zygmunt Bauman, em recente entrevista no Brasil, resumiu bem o problema:
O mercado é explícito e brutalmente incapaz de reparar os danos que causa. Ele cria problemas, mas não consegue resolvê-los. Não consegue resolvê-los. Para isso, é necessário um outro tipo de instituição. O mercado é poder puro liberado de qualquer limitação. Poder significa a habilidade de realizar coisas. O mercado é ótimo nisso, em criar demanda para seus produtos, em distribuir fundos do Brasil para a África, porque a mão de obra lá é mais barata… Ele tem um poder real, que pode influenciar as suas condições de vida, a de seus filhos, de seus netos, de seus bisnetos que ainda não nasceram… Isso ele faz, mas o poder sem controle é algo muito perigoso. Ele traz lucros transitórios para algumas pessoas, mas traz muitos problemas para a grande maioria. Para manter o poder sob controle e evitar que o mercado se autodestrua, a política é necessária. A política é a habilidade de decidir quais coisas devem ser feitas.
E completa:
A desigualdade não está apenas aumentando, ela muda sua natureza, sua estrutura e está ligada a esses limites que o capitalismo se impõe para manter as coisas em ordem, digestíveis, toleráveis, aceitáveis. Eles desapareceram e, como resultado, a desigualdade mudou sua natureza porque as vítimas da desigualdade da sociedade eram, antigamente, as pessoas que viviam na pobreza, na base da sociedade, os párias da sociedade. Hoje não é mais assim, porque estamos testemunhando o processo que Guy Standing, um sociólogo muito ativo, chamou de “precariado”. O que chamamos de classe média, que era a parte da sociedade mais bem sucedida e confiante, está se transformando muito rapidamente no precariado, que é uma espécie de equivalente ao antigo proletariado: pessoas que estão inseguras em relação à sua posição.
Os objetivos e a mentalidade exposta no Plano Nacional de Mineração 2030 é apenas um sintoma das coisas como elas são. Não é preciso ser nenhum analista brilhante para ligar os pontos e perceber onde isto nos levou – e ainda irá nos levar.
Excelente matéria!
Espero que os leitores entendam e repassem!
Parabéns!
O momento e muito oportuno para implementar o outro modelo de gestão de nossos recursos. E claro punição verdadeira para o responsáveis por está catástrofe provocada pela Samarco e suas controladoras e acionistas.
Da pra fazer algo novo e responsável.