A cidade de Itaituba, no médio Tapajós no Pará, é o maior polo de mineração ilegal do Brasil. Cercada por um mosaico de unidades de conservação e terras indígenas, o garimpo ilegal domina a cidade.
Com ou sem Covid-19, a “febre do ouro” dá o tom da economia local. E a pior pandemia dos últimos 100 anos sequer arranhou o ritmo de exploração de uma atividade garimpeira que, longe de ser ofício artesanal de homens que cortam e poluem os rios no braço, hoje é feita por maquinário pesado – como pás carregadeiras, escavadeiras hidráulicas, caminhões e dragas – e logística caríssima mantida com milhões de reais de origem suspeita.
A Reserva Garimpeira do Tapajós, criada em 1983 em Itaituba, é centro de uma disputa que envolve um recente pedido do Ministério Público Federal (MPF) para que todos os pedidos de lavra garimpeira que incidem sobre terras indígenas e áreas de conservação sejam negados pela Agência Nacional de Mineração e a os limites da Reserva, revistos.
Estima-se que mais de 60 mil garimpeiros trabalhem na região, com 1.000 pistas de pouso para aviões. Ali, pelo menos 30% dos garimpos estão dentro de terras indígenas e áreas protegidas.
Segundo os alertas do sistema Deter, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), 72% de todo o garimpo na Amazônia entre janeiro e abril de 2020 ocorreu dentro dessas áreas com proteção. Nestes 4 meses, o desmatamento causado pelo garimpo aumentou 13,4% dentro das terras indígenas da Amazônia, chegando a 434 hectares. A TI Munduruku é a mais afetada.
A concentração irrestrita de permissões de lavra garimpeira nas mãos de poucas pessoas – o líder do ranking no Pará chega a acumular quase 300 permissões – vai contra as leis brasileiras e é uma forma que grandes empresários encontraram para burlar o licenciamento ambiental e a necessidade de passar por todo o rito que a legislação exige. Uma permissão para garimpo deveria ter o limite de 50 hectares, o máximo que uma pessoa conseguiria explorar.
Mas, sem controle, essa especulação “tem deixado à vontade exclusiva da iniciativa privada a afetação de novas áreas para a exploração mineral, tem estimulado a pressão pela recategorização de unidades de conservação e a ocupação predatória de terras indígenas e de áreas de floresta para atividades minerárias”, afirma o MPF em recomendação para a Agência Nacional de Mineração (ANM) de março.
ANM e AGU questionam recomendações do MPF
Em resposta ao MPF, a Agência Nacional de Mineração encaminhou um ofício em maio a partir de um parecer da Advocacia Geral da União (AGU) que obtive via Lei de Acesso à Informação. Leia o parecer completo.
A análise da AGU questiona boa parte das recomendações do MPF e afirma, por exemplo, que não há limite para que uma mesma pessoa concentre centenas de permissões de lavra garimpeira.
O estudo sobre uma possível revisão dos limites da Reserva Garimpeira do Tapajós, no entanto, foi recomendado. O MPF entende que não se justifica mais a proteção conferida pela portaria 882 do MME ao criar a Reserva Garimpeira do Tapajós e as unidades de conservação criadas posteriormente tem o efeito de revogar parcialmente essa portaria.
Para Paulo de Tarso, procurador do MPF que atua no Pará, o cenário do garimpo ilegal é “grotesco” e há uma falta de ação generalizada do Estado brasileiro contra esse crime. “Há um total desajuste dos responsáveis em tratar desse tema. As agências não têm funcionado”, critica.
O ouro extraído em terra indígena, lembra Tarso, precisa ter a sua origem falseada, entrando em um grande esquema internacional de lavagem de dinheiro que foi alvo, inclusive, de operações do MPF nos últimos anos.
“A partir do momento em que o ouro é retirado, encontra livre campo de comercialização. Um anel do seu dedo, um investimento específico em um banco…é possível que essas aplicações tenham contribuído com assassinatos de indígenas brasileiros”, lembra.
Para o procurador, é necessário que esse debate ganhe corpo, as instituições despertem e o mercado se dê conta do problema. Afinal, as permissões de lavra garimpeira são usadas como capital especulativo. Sem controle, lastreiam crimes em série.
“Não é possível tolerar em nenhum aspecto, constitucional inclusive, a presença de garimpo em terras indígenas. Não podemos dispensar a vida dos indígenas brasileiros. Não é possível transigir com isso”, afirma Tarso.
Diante do cenário, o próximo passo do MPF pode ser uma ação judicial.
O MPF calcula que cada quilograma de ouro extraído ilegalmente na Amazônia cause R$ 1,7 milhão em danos. O mínimo para recuperação parcial da área degradada pelo garimpo é estimado em 13 anos. Outros cálculos chegam a R$ 3 milhões em dano por cada kg de ouro e até 42 anos de prazo para recuperação ambiental.
Pandemia agrava a corrida do ouro
Os Munduruku, povo indígena que vive no Médio e Alto Tapajós, convivem há décadas com a pressão do garimpo. Doze pessoas da etnia já morreram de covid-19, sendo 11 idosos, entre elas o cacique Vicente Saw Munduruku, uma importante liderança.
Em 2019, de acordo com o Ibama, o desmatamento ilegal causado pelo garimpo bateu recorde: 10,5 mil hectares de floresta vieram abaixo, um aumento de 23% em relação ao ano anterior. Novamente, a região mais afetada foi a do Tapajós. Outro estudo mostrou que cerca de 3.500 hectares foram desmatados dentro da TI Munduruku somente de 2017 a 2019.
Alessandra Munduruku, líder do seu povo, contou em live promovida pela Heinrich Böll Brasil a mobilização que os munduruku vem fazendo para enfrentar a situação frente ao descaso generalizado das diferentes esferas de governo.
“Quando o Salles falou de passar a boiada, nós já sabemos disso pela luta. Nós criamos uma campanha para não depender de empresa e governo. Eles – as empresas – querem em troca o território e os rios. Vamos lutar para continuar vivos”, afirma Alessandra.
Preocupados com as mortes de pajés e lideranças históricas do seu povo no Médio Tapajós, Alessandra cobra um hospital de campanha dentro da aldeia. “Não queremos o exército dentro da aldeia, mas médicos, pessoas capacitadas para salvar vidas. Precisamos ajudar a todos aqui. Nós somos o presente e queremos continuar sendo o futuro”, declarou. Não há UTI’s em Itaituba e os 14 mil indígenas do povo Munduruku vivem em risco constante, assim como toda a comunidade.
O Greenpeace comprovou que os garimpeiros estão atuando de maneira bem intensa no nordeste da TI Munduruku, com aumento de 58% no desmatamento dentro da terra indígena até abril desse ano em comparação com o mesmo período de 2019.
Segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), mais de 500 indígenas já morreram por Covid-19 no Brasil e a pandemia atinge quase 15 mil indígenas de 131 povos diferentes.
Valmir Climaco (MDB), prefeito de Itaituba acusado de ameaçar servidores da Funai e investigado por associação ao narcotráfico, afirmou ao jornalista Rubens Valente que a Covid-19 está chegando nos garimpos e terras indígenas. “Graças a Deus é o garimpo que segura a nossa economia. Quando o desemprego apertou na cidade, o povo foi correndo para o garimpo. Aumentou o garimpo e aumentou a produção”, disse. Itaituba já acumula mais de 3.600 casos e 66 mortes por Covid-19 até o momento.
Segundo Fred Vieira, representante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) em Itaituba, de fato o garimpo não parou com a pandemia, mas se intensificou. “O garimpo não parou, continua funcionando. São centenas de pistas de pouso e aviões clandestinos. A fiscalização de trânsito aéreo tem dificuldade em fiscalizar esses voos”, conta.
Para Vieira, o garimpo abre brechas para que a Covid-19 se espalhe. O motivo é a circulação de pessoas de todo o mundo na região. “Aqui o interesse dos gringos é o ouro e diamante. Vem gente do mundo inteiro para essa região. Não tem controle de quem sai e quem chega”, afirma.
O histórico de garimpo, a febre do ouro e a pandemia se somam a dezenas de projetos previstos ou já em operação para essa região do Tapajós, como portos, hidrovias e ferrovias, acumulando impactos drásticos para povos indígenas e comunidades ribeirinhas.
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