Servidores com décadas de casa sempre trabalharam normalmente no Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (CRAS), do Ibama, às margens da BR-040 em Nova Lima (MG). No último sábado, 08 de janeiro, foram surpreendidos pelo transbordamento do Dique Lisa, dentro da Mina Pau Branco, do grupo francês Vallourec.
A lama invadiu a BR, arrastou carros e interditou a rodovia por 2 dias. Um servidor do Ibama que mora no CRAS é da única família evacuada pela mineradora. Os trabalhadores nunca foram informados sobre o risco que corriam pela Vallourec, afirma a coordenadora do CRAS, Cecília Barreto. Nenhum comunicado oficial foi feito, nenhuma reunião, nenhum simulado de emergência.
Pelo contrário. A Mina Pau Branco era considerada “sem riscos” e uma das mais seguras do Brasil. No CRAS, mais de 400 animais precisaram ser removidos às pressas e levados para outros centros espalhados por Minas Gerais. A equipe responsável pela operação, cerca de 60 pessoas em 21 veículos, enfrentou os riscos de ir a uma área interditada, com ameaça de rompimento detectada pela Agência Nacional de Mineração.
Um mapa da mancha de inundação prevista pela Vallourec, obtido com exclusividade pelo Observatório da Mineração, mostra que o CRAS seria afetado em caso de rompimento. Ao lado do Centro funciona também uma sede recreativa dos servidores mineiros do Ibama e fica a casa da família evacuada. Pela mancha, porém, essas outras duas estruturas seriam poupadas.
A única ação tomada pela Vallourec, conta, foi que em 2019, após o rompimento em Brumadinho, a empresa enviou técnicos para visitar o CRAS, uma área de 30 hectares – 30 campos de futebol – de floresta, fizeram algumas medições e instalaram placas de rotas de fuga com indicação de um ponto de encontro.
O único cadastro feito, porém, foi do servidor Darmim Augusto, que mora com a família no local. Ele foi informado por telefone de que a sua casa seria um dos pontos de salvamento. Mas o que o risco era mínimo.
Jamais a equipe do Ibama foi consultada pela Vallourec, não houve qualquer formalização, treinamento, simulação e explicação detalhada do que significava aquelas placas, conta Cecília Barreto. Logo após a instalação das placas, veio a pandemia.
Na prática, a Barragem Santa Bárbara apresentou problemas e obras foram necessárias para diminuir a chance de erosão em 2021, após ação do Ministério Público. O nível de emergência voltou a “zero”.
No sábado, bancos de uma Pilha de Estéril e Rejeito, nomeada Cachoeirinha – o mesmo nome do rio que foi afetado pela lama – cederam, atingiram o Dique Lisa logo abaixo e a onda de lama chegou na BR e até o perímetro do centro do Ibama. Como revelou o Observatório da Mineração, a aprovação da ampliação da Pilha Cachoeirinha teve reunião extraordinária, licenciamento expresso e alertas ignorados de ambientalistas.
O CRAS é a área de recuperação para animais silvestres feridos, resgatados e de entrega voluntária. Funciona como apoio ao Centro de Triagem de Animais Silvestres do IBAMA em Belo Horizonte. Em condições normais, o CRAS estaria com 1500 animais. Por conta da pandemia, da interrupção do recebimento de animais apreendidos em operações e da necessidade de obras nos dois locais, porém, cerca de 400 estavam no CRAS durante o transbordamento.
Esses animais, entre aves, répteis e mamíferos, incluindo espécies ameaçadas de extinção, foram levados para diversos locais em MG. A real condição deles, no entanto, de responsabilidade da Vallourec, não é conhecida.
No sábado, a equipe do Ibama foi surpreendida com o risco iminente de ruptura do Dique Lisa. “Eu falei para a Vallourec que não existia a mínima possiblidade de colocar a minha equipe em risco. Que o resgate era uma obrigação deles e que deixassem claro para as pessoas contratadas a que estariam se submetendo”, diz Barreto. No fim. um servidor do Ibama coordenou a operação, até pelo conhecimento necessário sobre a localização dos animais.
Até o momento a Vallourec deve a lista detalhada dos animais realocados e a apresentação do Plano de Ação de Emergência para Barragens de Mineração (PAEBM), exigido pela lei.
Procurada para comentar o caso, a Vallourec não se manifestou até a publicação desta reportagem.
“Agora eu vejo o tanto que esse povo de Mariana e Brumadinho está sofrendo”
Darmim Augusto, 63 anos, mora há 35 anos na área onde fica o CRAS do Ibama em Nova Lima, que funciona ali desde os anos 80. Darmim mora com a esposa, o filho, a nora e dois netos, um menino de 11 anos e uma menina de 6. Foram a única família evacuada pela Vallourec após o transbordamento.
Quando Darmim foi comunicado sobre o acidente, a lama já tinha descido e chegado até o território do CRAS, a 100 metros da casa, sem chamar a atenção. Apenas durante a tarde de sábado, diante do risco, é que a Vallourec entrou em contato com a família para evacuá-los diante da ameaça de rompimento do dique.
A família ficou 3 dias em um hotel. Por opção, passaram a ficar na casa de um outro filho de Darmim, que mora em um bairro próximo, onde estão agora. A mineradora está pagando uma ajuda de custo de R$ 4 mil.
Mesmo com o contato prévio feito pela Vallourec cerca de 3 anos atrás por telefone, a situação surpreendeu Darmim. “A gente fica surpreso sim, né? Não esperava isso não. Eu tinha consciência de que lá nunca ia acontecer aquilo”, conta. A sirene acionada pela Vallourec, conta Darmim, foi confundida com a sirene de uma ambulância na rodovia.
Sem previsão de poder voltar para a casa onde vive há quase 4 décadas, o servidor lamenta a situação e diz sentir na pele como estão as pessoas que foram removidas de suas casas em Mariana, Brumadinho e em outras cidades de Minas Gerais afetadas por barragens.
Plano da Renova é construir um novo centro no mesmo local. Servidores são afetados duas vezes: pela Vale/BHP e pela Vallourec.
Os servidores do Ibama em BH vivem agora uma situação indesejável e inusitada: são afetados duplamente pela mineração.
Uma das contrapartidas exigidas da Fundação Renova, criada por Vale e BHP para reparar os danos causados pelo rompimento da barragem em Mariana, em novembro de 2015, é a construção, aparelhamento e custeio, por três anos, da manutenção operacional de dois Centros de Triagem e Reabilitação de Animais Silvestres (CETRAS), um em Minas Gerais e outro no Espírito Santo.
Em MG o local escolhido pelo Ibama foi o CRAS de Nova Lima. 6 anos depois do rompimento, porém, o projeto ainda não saiu do papel.
Com o transbordamento da Vallourec e o fato da área do CRAS estar em zona de risco, não se sabe agora qual será o destino do projeto, que sofreu com as burocracias da Renova e as idas e vindas de propostas.
Eu perguntei para a Renova qual seria o procedimento a adotar, em conjunto com a Vallourec, para resolver o impasse. E se a Renova não deveria ter entrado em contato previamente com a mineradora francesa para se inteirar sobre os riscos. A Renova ignorou as perguntas.
A Fundação se limitou a dizer que “foram feitos diversos estudos no local para a elaboração do projeto que está sendo finalizado. O projeto foi elaborado segundo todas as diretrizes de um Termo de Referência emitido pelo Ibama, contendo todas as dimensões e especificações técnicas do empreendimento. O projeto prevê quase sete mil metros quadrados de área construída, contendo área de recebimento de animais, área administrativa, alojamento, auditório, área de quarentena, clínica veterinária, viveiros, entre outras. A expectativa é que as obras se iniciem este ano”.
Cecília Barreto conta que estranhou o projeto inicial apresentado pelo arquiteto, que previa paredões de vidro, totalmente inadequados para animais em recuperação.
Depois de 6 anos de espera e um longo processo administrativo e burocrático, os servidores do Ibama agora se veem diante da possibilidade de ter que reiniciar as tratativas e levar o CRAS para longe de Nova Lima e da BR 040, em local seguro.
As operações da Vallourec na Mina Pau Branco estão interrompidas até a conclusão das investigações.