Por Sandra Silva*, para o Observatório da Mineração
Edição: Maurício Angelo
English version of this story available here: In central Brazil, canadian company Aura Minerals ignores quilombola concerns over gold project
A mineradora canadense Aura Minerals comemorou lucro expressivo nos últimos anos, com ganhos recorde na bolsa de valores. Enquanto isso, a comunidade quilombola do Baião, em Almas, no Tocantins, que será diretamente impactada por um novo projeto para extração de ouro da empresa, foi ignorada e teve o seu direito de consulta prévia violado.
A Aura Minerals acumulou uma valorização de quase 700% entre 2019 e 2022 na bolsa de Toronto, melhor desempenho entre as 3.500 companhias listadas. A razão para o desempenho extraordinário é simples: a Aura paga muitíssimo bem aos investidores. O lucro líquido de 2022, de 66,5 milhões de dólares, aumentou 53% em relação a 2021.
Já o quilombo Baião, que fica a menos de cinco quilômetros do local das atividades de mineração, não foi ouvido no processo de retomada do projeto que, no passado, pertenceu à Vale.
A planta de mineração à céu aberto é vizinha da comunidade e os impactos serão diretos, incluindo o Riachão, único rio que atravessa o território quilombola e que será usado pela empresa.
Os quilombolas estimam que, em caso de acidente na barragem usada pela empresa, a comunidade Baião seria engolida instantaneamente e desapareceria por completo, sem oportunidade de reação.
“A empresa diz que não está no nosso território, mas se a barragem romper, eles já tem uma rota de fuga para salvar o território? As outras comunidades têm impacto hídrico, social, na fauna e na flora, mas o Baião corre o risco de desaparecer!”, contou Maryellen Crisóstomo ao Observatório da Mineração.
Crisóstomo é uma das lideranças do quilombo Baião e atua como coordenadora de comunicação da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).
Foto de destaque: Lançamento da pedra fundamental do projeto Almas – Divulgação Governo do Tocantins
Consulta livre, prévia e informada é direito dos quilombolas
A Defensoria Pública do Estado de Tocantins (DPE/TO) realizou uma visita técnica no Baião em dezembro de 2022 para confirmar a falta de diálogo da mineradora com os moradores.
Mesmo estando tão próximos do projeto de mineração, os quilombolas não foram consultados sobre os impactos da implementação das atividades de mineração na região.
O direito à consulta livre, prévia e informada aos povos originários e tradicionais foi garantida pela Convenção 169 da Organização Nacional do Trabalho (OIT). No Brasil, o direito é lei desde 2004.
A consulta consiste na obrigação do Estado brasileiro de perguntar os povos originários e tradicionais sobre empreendimentos e obras de infraestrutura que tem potencial de causar impactos nos territórios, nas práticas culturais e dinâmicas sociais das comunidades afetadas pelas atividades.
A consulta deve ser feita de maneira transparente, de forma que as comunidades entendam os possíveis impactos em suas vidas e deve acontecer sem pressões, respeitando o tempo, as dúvidas e decisão das comunidades consultadas.
Os quilombolas do Baião tem um protocolo de consulta finalizado em 2021, no qual delimitam passo a passo como a consulta deve ser feita.
Mineradora abordou a comunidade sem explicar o contexto do projeto. Quilombolas recorreram à justiça.
Para evitar terem suas dúvidas e anseios ignorados, moradores do Baião recorreram à Procuradoria-Geral de Tocantins (MPF/TO) em setembro de 2021.
Em manifestação, os quilombolas relataram a forma arbitrária com que a Aura Minerals abordou a comunidade em julho daquele mesmo ano, coagindo-os a responder questionários de informações pessoais, alegando que o questionário era “como o do IBGE”, sem informá-los da finalidade do mesmo.
A comunidade se recusou a responder qualquer formulário e recorreu ao MPF/TO, que questionou a Agência Nacional de Mineração (ANM), a Fundação Cultural Palmares e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
O prazo de 10 dias para respostas foi estabelecido em agosto de 2022, no entanto, os órgãos não deram retorno até fevereiro de 2023.
Sobre a demora no avanço do processo o MPF/TO alegou que está apurando os fatos. E que para tomada de qualquer decisão, são necessários dados concretos. “Caso seja comprovado o impacto sobre a comunidade quilombola, ações cabíveis serão ajuizadas”.
Em busca de alternativas, a comunidade recorreu à Defensoria Pública do Estado de Tocantins (DPE/TO), que em 11 de janeiro mediou uma reunião com representantes das comunidades quilombolas Baião e Poço Dantas, em Almas, além de Lajeado, de Dianópolis e São Joaquim, de Porto Alegre.
Além dos quilombolas estiveram presentes a Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Tocantins (Coeqto), Secretaria de Meio Ambiente e Turismo de Almas, Instituto de Desenvolvimento Rural de Tocantins (Ruraltins) e a Aura Almas Mineração, subsidiária brasileira da mineradora canadense.
Os quilombolas foram recebidos com uma apresentação em slides sobre as vantagens da mineração na região, ao contrário do que esperavam: o início de um diálogo transparente sobre os possíveis impactos da mineração em suas comunidades. “A grande pergunta é qual é a real ameaça para o nosso território”, disse Maryellen.
Justiça aprovou o projeto mesmo após o próprio estado alertar para danos ambientais
A pedra fundamental do empreendimento foi lançada em dezembro de 2021 depois de uma disputa judicial.
O Tribunal de Justiça do Tocantins decidiu pela suspensão da liminar que permitia a instalação da mineradora em maio de 2021 após o governo de Tocantins alegar, por meio da Procuradoria-Geral, a possibilidade de danos ambientais na região.
Em dezembro do mesmo ano, tudo mudou. O próprio governador em exercício na época, Wanderlei Barbosa, entregou a licença ambiental para a Aura em um evento.
O CEO da Aura, Rodrigo Barbosa, disse ao G1 que a mineradora chegou a um “entendimento comum” com o governo do estado sobre o valor da terra onde será implementado o projeto, que é pública e pertence à Agência Estadual de Mineração do Tocantins (Ameto), sobre “os benefícios que isso poderia fornecer” ao estado.
Procurado para comentar o teor exato do “acordo”, o governo do Tocantins não retornou aos pedidos do Observatório da Mineração. Em 17 de fevereiro deste ano, o TJ-TO declarou que 21 artigos da lei sobre licenciamento ambiental sancionada na gestão do ex-governador Mauro Carlesse, em julho de 2021, são inconstitucionais.
Em 2022, Carlesse se tornou réu em investigação da Polícia Federal por corrupção, o que levou à renúncia do então governador e à desistência de sua candidatura ao Senado. Em fevereiro, Carlesse e outros ex-membros do seu gabinete foram denunciados em outra investigação, por espionagem.
Aura Mineração não se posiciona sobre o direito de consulta das comunidades
Questionada pelo Observatório da Mineração, a Aura Minerals enviou um posicionamento genérico, que não responde às questões específicas do caso.
Sobre a falta de consulta aos quilombolas, o não reconhecimento da presença de comunidades nas proximidades, os possíveis impactos socioambientais, além dos protocolos de segurança e emergência e os riscos da barragem de rejeitos, a empresa disse que “promove o crescimento responsável e sustentável de seus negócios e opera de acordo com as melhores práticas de segurança e ESG” e que “respeita a cultura e o bem-estar das comunidades em que está inserida, integrando as melhores práticas e os projetos ambientais em todos os seus negócios e operações”.
Respostas mais detalhadas foram solicitadas pela reportagem, porém a empresa escolheu manter o posicionamento.
Leia na íntegra as perguntas enviadas e a resposta da Aura Minerals.
O lobby da mineradora é forte no município. A promessa é de um empreendimento de longo prazo com geração de empregos e investimento inicial de R$ 375 milhões de reais. “As propostas deslumbram a população da região”, disse Maryellen Crisóstomo.
A mina de ouro a céu aberto tem uma estimativa de vida útil de 17 anos e a produção média de 50 mil onças por ano – cada uma equivale a pouco mais de 28 gramas. Segundo a empresa, a obra vai gerar 400 empregos diretos e cerca de 1.200 indiretos.
A estimativa de arrecadação é de R$ 80,3 milhões para o município de Almas por Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM) e Imposto Sobre Serviços (ISS). Para os cofres estaduais a previsão é de R$ 30,3 milhões por CFEM e pagamento de royalties.
Além de Almas, no Brasil a Aura Minerals tem projetos de cobre e ouro no Rio Grande do Norte e no Mato Grosso e está presente também na Colômbia, no México e em Honduras. Em entrevista ao Estadão em setembro de 2021, o CEO da Aura, Rodrigo Barbosa, declarou que apesar das turbulências políticas e ameaças à democracia já presentes na ocasião e que, desde então, se agravaram com os ataques de 08 de janeiro, “o ouro está imune à qualquer crise no Brasil” e a Aura seria uma “alternativa” aos investidores quando “tudo vai mal” por ser dolarizada e ter 80% das receitas em ouro.
Falta de regularização facilita conflito nos territórios
O quilombo Baião é certificado pela Fundação Palmares e espera desde 2010 ser reconhecido como território quilombola pelo Incra.
De acordo com Maryellen Crisóstomo, a “morosidade na efetivação dessa política dá vazão a esse tipo de violência, a esse tipo de conflito no território. Não é só sobre a mineração, como também desmatamento, assoreamento dos rios”, argumentou. Os quilombolas do Baião têm documentos que comprovam sua presença desde 1919 na região.
Procurado pelo Observatório da Mineração para comentar sobre a demora no processo, o INCRA disse que “trata-se de um trabalho minucioso, não sendo possível determinar o tempo médio de tramitação dos processos”.
Segundo o INCRA, a duração de cada processo decorre do nível de complexidade e inclui fatores como grau de dificuldade de acesso às informações cartográficas, fundiárias, agronômicas, ambientais, geográficas, socioeconômicas, históricas e antropológicas necessárias para a elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID).
Entre os fatores elencados pelo INCRA para a demora de décadas no processo de titulação de um quilombo, estão: o número de imóveis inseridos no território delimitado; dimensão do território; dificuldade de notificar todos os detentores de imóveis inseridos nos territórios nas fases de contestação de RTID publicado e de notificação para vistoria e avaliação dos imóveis decretados; existência de conflitos agrários no local; total de contestações e recursos administrativos e judiciais apresentados durante a tramitação de cada processo; questões orçamentárias/financeiras, tempo de tramitação dos processos judiciais de desapropriação de imóveis rurais e outras variáveis, disse a autarquia.
Em 2017, pré-candidato à presidência, o ex-presidente Jair Bolsonaro declarou que não permitiria a demarcação de nenhum território indígena ou quilombola durante seu governo. A promessa foi cumprida com diversos cortes de orçamento e desmonte de órgãos responsáveis pelas políticas voltadas as comunidades originárias e tradicionais.
Em abril de 2022, o Incra tinha mais de 1800 processos de regularização de territórios quilombolas em aberto. Em agosto de 2022, o Incra aprovou norma que dificulta ainda mais o reconhecimento das comunidades quilombolas e, por consequência, seus direitos sobre os territórios.
A norma decreta que apenas as comunidades que tiverem o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) terão seus direitos ao território assegurados.
A partir dessa norma, as pesquisas e estudos necessários para o reconhecimento de um território quilombola só serão feitos se tiverem recursos. A normativa, ainda, desrespeita o direito à consulta dos quilombolas. O governo Lula anunciou a retomada da titulação de quilombos, começando com três comunidades no Sergipe e na Bahia. A expectativa é que o cenário de travamento de titulações dos últimos anos comece a mudar.
Além da mineração, quilombo já está cercado pelo agronegócio
Cercados pelo “plano de desenvolvimento agropecuário” do Matopiba (que compreende a fronteira de Cerrado entre os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), os quilombolas do Baião são impactados diretamente pelo avanço do agronegócio e sofrem com atividades de grilagem, desmatamento, agrotóxicos, assoreamento dos rios e escassez de água.
Para ter acesso à água, as famílias que não tiveram condições financeiras de abrir poço artesiano dependem exclusivamente da água de caminhão-pipa distribuída pela prefeitura.
Em seu protocolo de consulta, os quilombolas argumentam sobre o medo de, com tantas frentes de destruição do meio ambiente que os cercam, terem que deixar o território que ocupam há mais de 90 anos.
É a permanência no território que garante as práticas tradicionais de agricultura, religião e modo de vida permaneçam resistindo até hoje.
Escassez de água tende a piorar com a mineração. População quilombola não recebe a titulação de terras do estado.
O município de Almas, que fica no sudeste do Tocantins, região afetada pela escassez de água, é historicamente marcado pela escravidão e pela corrida do ouro.
Paulo Rogério Gonçalves, diretor técnico da organização da sociedade civil Alternativas para a Pequena Agricultura no Tocantins (APA-TO), destaca que a escassez na região é causada por diversos fatores.
“Há o impacto do agronegócio no Matopiba, causando falta d’água e o esgotamento do aquífero Urucuia que está rebaixando a descarga de água que abastece toda região sudeste do Tocantins”, contou.
Cientistas comprovam a fala de Gonçalves, conhecido como Paulão. O avanço do agronegócio, com sua irrigação em larga escala, pode ser um dos principais fatores para o esgotamento do aquífero Urucuia, um imenso reservatório que fica abaixo das chapadas e dos rios impactados pelo latifúndio. A mineração, que exige uso intensivo de água, pode agravar ainda mais o cenário.
A questão quilombola também é histórica na região e tem ligação direta com a mineração.
A população diaspórica africana foi traficada até o sudeste do Tocantins para ser explorada no ciclo do ouro dos anos 1700. Dessa forma, diversos quilombos foram formados.
“O sudeste do Tocantins é um grande território quilombola de populações negras que não tem nenhum território quilombola titulado”, explicou Gonçalves. “Não há nenhuma ação conclusiva de regularização dos territórios por parte do Incra e o governo do estado nega a ação de regular os territórios quilombolas”, destacou.
“É uma grande população negra, quase uma África tocantinense, e nenhuma dessas comunidades tem os seus direitos territoriais assegurados”, finalizou Gonçalves.
*Sandra Silva é jornalista pela Universidade de Brasília (UnB). Trabalha e tem afinidade com questões de direitos humanos e pautas socioambientais. Tem experiência de atuação junto a povos indígenas e comunidades tradicionais na Amazônia.