Por Gabriela Sarmet*
Fotos: Rebeca Binda*
“A mineração é como uma ferida que abre dentro do território. Uma ferida que abre no chão e escorre mercúrio para os rios”, ilustra a jovem ativista Samela Awiá, do povo Sateré Mawé da Terra Indígena Andirá Marau, do baixo rio Amazonas.
No 18º ano do Acampamento Terra Livre (ATL) é marcante a presença e protagonismo de jovens lideranças indígenas na definição dos rumos do país e no combate à mineração dentro das terras indígenas.
“Eu costumo falar que a questão ambiental não pode andar separada da causa indígena”, ressalta Awiá, ativista do Fridays for Future Brasil. Ela diz que o PL 191/2020 servirá como uma porta de entrada para a regulamentação das destruições causadas pelo garimpo e a mineração e, assim, afete também outras regiões.
O sentimento é compartilhado por diversas jovens indígenas que tem ocupado destaque no debate socioambiental no Brasil e no mundo e tomado para si a tarefa de comunicar diretamente dos territórios a realidade em que vivem.
“Se você olhar pra esse acampamento, você vai ver um rosto de juventude.”, comenta Txai Suruí, única brasileira a discursar na abertura da COP-26, em entrevista ao Observatório da Mineração.
Para o ATL, a ativista mobilizou 16 povos do estado de Rondônia, onde está localizada a Terra Indígena Sete de Setembro do seu povo Paiter Suruí.
Além de denunciar o envenenamento dos rios e a destruição da floresta causada pela instalação dos maquinários de extração mineral ilegal, Txai também falou do receio da replicação de impactos sociais já vistos em outros povos. “Nossa preocupação é que também aconteça com a nossa população o que vem acontecendo com outros povos, como os Yanomami, que tem crianças morrendo de desnutrição, ou com as mulheres Munduruku, que já não querem ter mais filhos porque estão envenenadas pelo mercúrio”, comenta.
Quando questionada sobre o que mobiliza os jovens indígenas hoje a tomarem o protagonismo das lutas de seus povos, ela diz que o espírito da juventude indígena é o espírito da luta. “É a juventude que principalmente está sofrendo as consequências da mineração, das mudanças climáticas e de todas essas pressões e ataques que os territórios indígenas vêm sofrendo”, aponta a fundadora do Movimento da Juventude Indígena.
Incidência na União Europeia é vista com cautela
Txai Suruí tem calibrado suas expectativas em relação à resposta internacional para os problemas brasileiros.
Desde que ganhou destaque com a sua participação na COP-26, ela diz ter ampliado significativamente a sua visibilidade e também dos assuntos que correlacionam a preservação da Amazônia com a ação climática.
“É preciso entender que cuidar da floresta, cuidar da Amazônia, é papel de todo mundo. Isso porque, por exemplo, quando você compra carne, que é derivada aqui da terra indígena Uru-Eu-Wau-Wau, ou quando você compra o minério que é derivado da morte das crianças Yanomami, isso também tem a ver com esses grandes países que são quem está comprando isso. Então a gente vem estabelecendo esses diálogos pra que eles entendam a importância de votar leis que estão sendo discutidas agora lá na União Europeia como, por exemplo, sobre o desmatamento da Amazônia e sobre as cadeias de produção”, conta.
Em uma plenária durante o ATL na semana passada, eurodeputados e relatores da ONU ouviram as demandas indígenas e se comprometeram a entregar respostas concretas.
Para Txai, é difícil prever se esse retorno dos países europeus será efetivo ou não, mas a expectativa é que o diálogo direto com os povos indígenas abra a cabeça dos parlamentares e tomadores de decisão.
“Eu espero que a partir disso eles possam de fato agir, mudar e parar de comprar produtos que são derivados do genocídio indígena, derivados do nosso sangue, que são derivados da nossa vida.”
Nos próximos meses, Txai Suruí seguirá participando de diálogos em países europeus, como Holanda e França.
Em relação ao Projeto de Lei 191/2020, que pretende regularizar a mineração em Terras Indígenas (TIs), a jovem ativista diz que a aprovação desse PL significará o real genocídio dos povos indígenas. “Se com o garimpo sendo ilegal isso tudo já vem acontecendo, imagina com um projeto de lei que permite esse tipo de empreendimento dentro dos nossos territórios? Significa permitir que eles entrem lá e envenenem o nosso povo, que destruam as nossas florestas, que matem os nossos rios.”, denuncia.
Txai também tem incentivado a mobilização e engajamento direto na política nacional ao convocar voluntários para a campanha que está organizando em Porto Velho, para estimular mais jovens a tirarem o título de eleitor para as eleições de Outubro deste ano.
Comunicação do território para as telas
Como comunicadora pela APIB e também pela ANMIGA (Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade), Samela Awiá comenta que, assim como outros jovens, a juventude indígena também passou a usar a internet como ferramenta de luta e resistência.
Nos dois últimos anos o ATL ocorreu virtualmente, o que ampliou consideravelmente a presença e alcance do movimento indígena, em especial, nas redes sociais.
Samela lembra que por muito tempo pessoas de fora das comunidades tem falado em nome dos povos indígenas. “Mas a gente não quer mais isso! A gente já está nas universidades, a gente consegue fazer uma etnomídia de povos indígenas e também uma mídia para os povos indígenas.”, ressalta.
Para a jovem Sateré Mawé, um exemplo dessa ação é a cobertura colaborativa que vem sendo utilizada nas últimas mobilizações indígenas como o Levante Pela Terra, a Marcha das Mulheres Indígenas, o Luta Pela Vida, e que agora também está sendo central para divulgar o #ATL2022.
“A juventude está se adaptando, a gente está criando e formando mais jovens para se tornarem comunicadores indígenas. Porque já chega, né? A grande mídia não fala bem sobre nós povos indígenas, ela distorce muitas coisas, usa termos pejorativos e a gente sempre viveu com isso. Então a gente está nas redes sociais desmistificando isso, quebrando estereótipos, descomplicando notícias, quebrando tabus e muito mais. E esse protagonismo é todo nosso: da juventude e das mulheres indígenas que estamos utilizando essa ferramenta para ocupar as telas e demarcar as redes.”, diz Samela Sateré Mawé.
Sobre esse movimento de ocupar os espaços nas telas, a comunicadora do Mídia Índia Priscila Tapajowara comenta que isso tem ocorrido por meio dos celulares, utilizando uma linguagem mais direta que visa se comunicar com a juventude através das redes sociais, mas também para alcançar outros interessados a saber e apoiar o movimento indígena.
A jovem originária do Tapajós começou sua trajetória na comunicação em 2013 quando fez uma formação de fotografia em Santarém, também movida pela necessidade de trazer uma perspectiva que venha de dentro dos territórios indígenas. Hoje ela faz parte da Nató, produtora de audiovisual criada por Lívia Kumaruwara que tem atuação no Baixo Tapajós com foco na área cinematográfica.
“A gente quer ocupar um outro espaço que são as telas de cinema e a televisão, contando a nossa história através de filmes. Além disso, a gente faz oficinas de formação de audiovisual dentro das aldeias da nossa região, porque a gente acredita muito nessa importância de passar um pouco do nosso conhecimento e formar mais jovens comunicadores para que eles possam também estar falando sobre as suas histórias.”, comenta Priscila Tapajowara.
Ao ser questionada sobre os impactos da mineração e do garimpo sobre suas terras e povo, Priscila cita a pesquisa conduzida pela Fiocruz que revelou que, entre 2015 e 2019, mais de 75% da população de Santarém estava com níveis de mercúrio no sangue 4x acima do permitido pela OMS.
Localizada em uma região a mais de 300 km de distância do pico onde acontece o garimpo, a população indígena e não indígena – em especial ribeirinhos – já estão sofrendo as consequências. Esta semana a Esplanada dos Ministérios viu uma intervenção dos indígenas mobilizados em Brasília para ilustrar as consequências do garimpo ilegal, cujo lobby é recebido de portas abertas pelo governo Bolsonaro.
“O meu corpo já está contaminado pelo garimpo. E o corpo dos meus avós, das pessoas da minha família. Então esse PL 191 vai incentivar cada vez mais, né? Vai dar uma credibilidade para que esses garimpeiros, para que esses invasores entrem nos territórios e destruam mais ainda a nossa floresta e contaminem nossos rios”, ressalta.
Feminismo indígena
A embaixadora da WWF Brasil de apenas 20 anos, Alice Pataxó, também reitera a importância de jovens indígenas ocuparem cada vez mais o ramo da comunicação. “Tudo isso se resume muito nessa relação ancestral que a gente tem com os nossos antepassados, com as nossas histórias, e com o que a gente quer manter vivo. Então a gente unifica isso na comunicação.”, aponta a ativista e comunicadora de Porto Seguro (BA).
Ela comenta que esse é um movimento que tem sido crescente mesmo sob adversidades como a falta de oportunidades, mas com um potencial muito grande para descobrir muitos talentos nas comunidades indígenas. “Eu espero que essa conquista, que foi o campo de comunicação por jovens lideranças indígenas, venha também a acontecer em outras áreas e que a gente consiga expandir cada vez mais. Alcançar a grande mídia e diversos outros veículos de comunicação.”, diz Alice Pataxó.
A jovem ativista, que é jornalista e Bacharel em Humanidades pela UFSB, fala da importância de outros grupos sociais historicamente excluídos, como mulheres indígenas e também pessoas LGBT+ das comunidades, de também serem vistos e ouvidos. “É um movimento muito potente e mais que necessário. A gente se unifica e se abraça muito porque, normalmente, nós fazemos parte dos mesmos grupos. A gente entende as nossas necessidades.”, ressalta a jovem liderança Pataxó.
Alice comenta ainda que a pauta feminista varia e é vista de formas distintas a depender de cada povo. De maneira geral, mesmo em povos com linhagem matrilinear, como é o caso do seu povo Pataxó, ainda há disputas para mulheres terem oportunidades iguais em todos os espaços. “Hoje a gente faz parte dessa história e a gente pretende abrir oportunidades para outras jovens, que hoje são crianças, também cheguem aqui. Sem as nossas mulheres a gente não teria as nossas crianças, não teríamos o nosso futuro.”, lembra.
Para ela, o protagonismo de jovens e mulheres indígenas em suas comunidades traz uma noção diferente de revolução, mais tecnológica e bem diferente de tudo o que se imaginava que seria com essa nova geração. “A gente começa a entender que a juventude também faz parte da criação de sociedade que a gente vive”, destaca.
Todas as fotos por Rebeca Binda / Observatório da Mineração
*A cobertura especial do Acampamento Terra Livre 2022 pelo Observatório da Mineração conta com o apoio da Amazon Watch.
Gabriela Sarmet é mestra em Violência, Conflito e Desenvolvimento pela School of Oriental and African Studies (SOAS), University of London e Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisadora ativista sobre conflitos socio ambientais causados pela mineração e garimpo, em especial sobre Terras Indígenas. É também membro individual associada da London Mining Network (LMN) em apoio a comunidades brasileiras atingidas por mineradoras financiadas e/ou baseadas em Londres. Co-fundadora do @coletivodecolonial, atua em redes de articulação internacional focando na luta pela terra, por reparações coloniais e justiça climática.
Rebeca Binda é fotógrafa documentarista e pesquisadora que já trabalhou para veículos e organizações referência em todo o mundo em temáticas que tratam da relação entre justiça socioambiental, povos e comunidades tradicionais, mulheres e migração forçada. Mestra em Fotojornalismo e Fotografia Documental pela University of Arts London (UAL) durante o qual investigou os impactos do setor extrativista na saúde mental das mulheres e no ambiente natural que as envolve.