Incentivos fiscais na Amazônia beneficiam mineradoras e dão prejuízos bilionários aos cofres públicos

Por Pablo Pires Fernandes*

“A estrutura de incentivos na área da Amazônia é absurdamente anacrônica desde sua origem”, afirma Alessandra Cardoso, analista do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). A crítica ganha relevância à medida que a Amazônia se torna centro de um debate mundial sobre a preservação ambiental. Mais ainda diante dos desafios enfrentados pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), de suas promessas de enfrentar os problemas dessa região e equacionar um desenvolvimento compatível com a agenda ambiental.

O setor da mineração é um dos principais beneficiários dos incentivos na área da Sudam, sobretudo considerando que o Pará é o estado de maior produção mineral do país. Esse privilégio pode ser entendido com o exemplo da Vale S.A. que obteve, em 2021, R$ 18 bilhões de incentivos fiscais por suas operações na Amazônia e pagou de CFEM (Compensação Financeira pela Exploração Mineral) apenas R$ 4,3 bilhões, segundo dados da Receita Federal e da Agência Nacional de Mineração (ANM).

A Salobo Metais, também pertencente à Vale e que extrai ouro e cobre no Pará, teve mais de R$ 1,17 bilhão de incentivos fiscais. Assim, de acordo com o relatório do Inesc, a Vale foi de longe a maior beneficiária dos incentivos no país, deixando de pagar quase R$ 20 bilhões aos cofres públicos pelo simples fato de minerar na Amazônia.

Em nota, a Vale afirma que “em 2022, segundo o último Relatório de Transparência Fiscal, publicado em julho de 2023, o valor total dos incentivos disponíveis para a Vale no Brasil foi de aproximadamente US$ 1,4 bilhão”. E acrescenta que “estes incentivos fiscais fazem parte de políticas de desenvolvimento regional e são mantidos a partir de uma série de contrapartidas e do cumprimento contínuo da legislação trabalhista e das normas de proteção e controle do meio ambiente”.

A Vale também informou que “as informações sobre isenção fiscal da Vale são públicas e os investimentos ambientais, sociais e econômicos relacionados a estes incentivos são divulgados regularmente, dentro da política de transparência da empresa com a sociedade, inclusive em seu portal ESG. É importante reforçar que a base de cálculo deste incentivo parte da receita e do lucro contábil da companhia no respectivo ano fiscal”.  

Bruno Milanez, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) afirma que a Amazônia é a fronteira natural da mineração no Brasil, portanto, não é necessário incentivo para a região, pois este setor já atua nela. “No contexto de mudanças climáticas, desmatamento zero, é preciso desestimular as atividades que cometem desmatamento. Então, não faz sentido estimular e dar incentivo para atividades na Amazônia que vão acarretar em desmatamento. Essa ideia de incentivar a mineração é cheia de contradições, está tudo errado.”

A analista do Inesc acredita que o desafio é equacionar uma estratégia de desenvolvimento que mantenha a floresta em pé, que promova desenvolvimento, a preservação da biodiversidade, a superação da pobreza e que, ao mesmo tempo, gere alternativas econômicas. “E essa política de incentivos não responde a isso. Pelo contrário, ela atrapalha, atrasa, impede.”

“As mineradoras não apenas estão destruindo a Amazônia, com apoio do governo, como estão destruindo barato e com incentivo porque estão baseados em um desenvolvimentismo burro”, completa Milanez.

Para Waldir Salvador, consultor de Relações Institucionais e Econômicas da Associação de Municípios Mineradores do Brasil (AMIG), os incentivos fiscais na Amazônia são uma grande contradição.

“O minério não tem opção locacional – mais da metade da mineração de ferro do Brasil é feita no Pará –, a empresa é obrigada a ir lá e tirar. Porque, mesmo sabendo que não tem matéria prima em outro lugar ainda vai isentar a empresa? É um absurdo. A verdade é que o Brasil agacha para a empresa privada de mineração. E ela faz o que quer.”

Alessandra concorda ao afirmar que “se os incentivos para as mineradoras são retirados, elas vão ter uma perda de lucratividade, mas elas não vão sair da Amazônia, elas vão continuar na Amazônia”.

O Instituto Brasileiro da Mineração (Ibram), que representa as grandes empresas do setor, contesta a afirmação ao afirmar que “estudos sérios do projeto MapBiomas situam a mineração industrial como exemplo de ocupação inteligente do território”. “Ela apresenta baixa ocupação do solo e à medida que supera uma fase da produção, em determinada parcela de terreno, logo promove a recuperação do bioma. Isso vale para as minas na Amazônia, bem como em qualquer outra localidade”.

Foto de destaque: Ingrid Barros / Observatório da Mineração

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Legislação anacrônica é perpetuada por interesses

O projeto de desenvolvimento da Amazônia existe desde, pelo menos, a década de 1950. Em 1953, foi criada a Superintendência de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA), que, em 1966, foi transformada na Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). Seu principal objetivo foi “promover a ocupação produtiva da Amazônia a partir do aproveitamento de seus recursos naturais, ampliando as fronteiras econômicas do país e propiciando o desenvolvimento da região”, segundo os órgãos do governo da época.

A ideia de incentivos fiscais para a Amazônia – e depois, no Nordeste, área da Sudene – busca superar desigualdades regionais, mas, desde que leis e decretos foram instituídos, há décadas, nunca houve avaliações adequadas e a estrutura de incentivos segue intacta até hoje sem qualquer revisão de critérios que devem orientar as políticas públicas.

“No Brasil é assim, uma vez concedido, parece que o incentivo vira cláusula pétrea”, diz Alessandra Cardoso, do INESC. “Essa política de incentivos está caindo de podre há 60 anos e não se justifica sob hipótese e critério nenhum”, argumenta, acrescentando que “não faz sentido pensar numa industrialização nos moldes das décadas de 1970 e 1980 para a Amazônia hoje”.

Atualmente, a lei vigente que sustenta os incentivos na área da Sudam é a Medida Provisória 2.199-14/2001, que foi transformada em Lei pelo PL 4.416/2021, aprovada no Congresso e aguarda a sanção presidencial. No entanto, sua regulamentação, via decreto do governo, é o que especifica as áreas a serem contempladas com incentivos fiscais.

O decreto de 2002 “define os setores da economia prioritários para o desenvolvimento regional, nas áreas de atuação da extinta Sudam, e dá outras providências”. A referência à extinção da Sudam foi o período em que o então presidente Fernando Henrique Cardoso extinguiu a autarquia, reinstituída no governo Lula em 2007. Entre os setores prioritários está a mineração, conforme diz a MP no artigo 5º: “da indústria extrativa de minerais metálicos, representados por complexos produtivos para o aproveitamento de recursos minerais da região”.

“Isso é de 2002, 10 anos depois da Rio 92, está tudo errado”, critica Milanez, reiterando o equívoco de se estimular esse tipo de incentivo na Amazônia. “Não fazia sentido em 2002, muito menos em 2023”, diz, referindo-se à renovação dos incentivos fiscais com a PL 4.416.

Para Cardoso, as sucessivas renovações dos incentivos “não fazem nenhum sentido a não ser a do jogo político”. Ela explica que, por não ter sido regulamentado, o decreto válido segue sendo o de 2002. “A lei é clara e diz que ‘o decreto estabelecerá os setores prioritários’. Dos 13 setores mencionados no decreto de 2002, quatro foram incluídos em 2009. Os setores responsáveis pelos maiores índices de desmatamento – a indústria extrativa de minerais e a pecuária – seguem intocados.

“É possível estabelecer um decreto, determinado pelo governo, que reveja os setores prioritários, mas imagina o quanto esses setores se mobilizam para que não deixem de ser contemplados numa possível revisão de decreto?”, questiona Alessandra. “Tem um jogo de interesses políticos muito forte e depende da disposição do governo botar um freio nessa história. Pode não ser feito.”

Para o Ibram, “a relação entre incentivo fiscal e agenda ambiental é positiva, já que as empresas do setor encontram melhores condições para conduzir seus projetos minerários sempre com o devido cuidado e atenção a esta agenda”.

Por meio de sua assessoria, o Ibram informou que “as atividades que prejudicam o meio ambiente, seja na Amazônia ou não, são as criminosas, como garimpo ilegal, entre outras”. “A mineração industrial segue a legislação e boas práticas em ESG. Promove a compensação ambiental dos impactos, recupera áreas mineradas, preserva intactas imensas reservas ambientais, entre outras iniciativas.”

Trens da Vale carregados de minério no Maranhão. Foto: Ingrid Barros / Observatório da Mineração

“Cidadão brasileiro paga mais imposto de renda que uma mineradora no Pará”

De acordo com a legislação, os incentivos fiscais para a mineração, entre outras áreas beneficiárias, são de 75% do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ), sendo que, em casos de reinvestimentos, podem ser abatidos mais 30%, calculado sobre os 25% restantes. Assim, a redução no IRPJ pode chegar a 82,5%.

Ricardo Ruiz, do Cedeplar/UFMG, explica que, no Brasil, a tributação é de 25% sobre pessoa jurídica, mais 9% sobre ICSL (Contribuição sobre Lucro Líquido), o que gera uma cobrança de 34% sobre alíquota máxima. “Na região de incentivo, ela é um quarto disso. Então é 34% dividido por quatro”, afirma. De acordo com Ruiz, no caso das atividades mineradoras, uma empresa em Minas Gerais paga 34% e, no Pará, apenas 8,5%.

“Costumo brincar que o cidadão brasileiro de renda média paga mais Imposto de Renda do que qualquer mineração no Pará. Uma pessoa comum paga mais do que a Vale pela extração de minério no Pará, por exemplo”, diz Ruiz.

Em 2021, pela primeira vez, a Receita Federal divulgou os valores dos incentivos fiscais nas áreas da Sudam e da Sudene, que foram de R$ 42,38 bilhões.

Estudo publicado pelo Inesc, em junho de 2023, com base nesses dados, constata que “cinco empresas foram responsáveis por R$ 22 bilhões de incentivos, quase 54% do total naquele ano”. Também alerta para a falta de dados e transparência sobre os benefícios.

Em maio de 2023, a Receita Federal publicou a Portaria 319, estabelecendo “a transparência ativa das informações relativas a incentivo, renúncia, benefício ou imunidade de natureza tributária, cujo beneficiário seja pessoa jurídica”. Desde então, a relação das pessoas jurídicas beneficiadas com incentivos na área da Sudam e Sudene e os respectivos valores só foi publicado uma única vez, em 2021, mesmo que a portaria determinasse a divulgação semestral dos dados.

Alessandra, coautora do estudo do Inesc, atesta que o documento mostra como os números são subestimados. “Quando a Receita mostrou o quanto cada pessoa jurídica recebe de renúncia, vimos que era mais de três vezes o que era estimado”.

Ela defende a importância da divulgação destes dados: “Essa transparência ajuda a sociedade a entender o tamanho do desafio que é rever não apenas essa renúncia, mas toda a parafernália dessa renúncia. Muitas delas não têm justificativa, muito pelo contrário, produzem efeitos negativos sob vários aspectos. Essas informações não são sigilosas, é o papel da Receita”.

Foto: Ingrid Barros / Observatório da Mineração

Setor mineral quer garantir privilégios na reforma tributária

Os incentivos fiscais para a área de mineração e combustíveis fósseis voltaram ao debate em 2023 com a Reforma Tributária, quando foram abordados de duas frentes: o fato de serem recursos não renováveis e outro incentivo, dado à exportação, instituído pela Lei Kandir, em 2006.

Ricardo Machado Ruiz, professor e integrante do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Faculdade de Ciências Econômicas (CEDEPLAR), da UFMG, explica que “existe essa discussão sobre recursos renováveis e não renováveis, que se aplica, além da mineração, à extração de petróleo, gás e outros”. “É uma questão política, não é técnica, e o debate que vai ocorrer em 2024, com a segunda etapa da Reforma Tributária, será muito complicado por causa dos estados, que serão impactados por essa distribuição de arrecadação.”

Segundo Alessandra, a mineração, hidrelétrica, linhas de transmissão, setores intensivos em recursos naturais poderiam não receber incentivos como poderiam receber incentivos condicionados. Ela destaca que em caso de os incentivos serem mantidos, “o mais importante é serem condicionados a determinadas entregas e resultados para a sociedade: emprego, desenvolvimento e que não vá contra critérios ambientais de preservação”. É o decreto que estabelece as condições e os setores prioritários.”

Ruiz afirma que, na Reforma Tributária discutida até o momento, não houve grandes mudanças na cobrança de impostos para o setor de mineração. O Ibram contesta ao defender que “a afirmação de que se manteve a mesma taxação não corresponde à realidade”. “E a tributação não pode ser considerada baixa, já que a taxação brasileira sobre a mineração é uma das maiores, na comparação com a existente nos países concorrentes em mineração”, diz a associação de grandes mineradoras.

O Ibram cita o estudo da consultoria internacional EY (Ernst&Young) para sustentar que os impostos no Brasil prejudicam a concorrência com a mineração no exterior. “O Brasil é o que mais tributa a bauxita, o cobre, o ferro, o chumbo, o manganês, o fosfato, a magnesita, o nióbio, o ouro, o níquel, o potássio e o zinco”, afirma o Ibram.

No entanto, um estudo do Cedeplar, encomendado pela Amig e voltado à principal commodity brasileira – o minério de ferro – contesta esta afirmação, ao mostrar que o aumento de impostos não inviabilizaria a competitividade da mineração brasileira no mercado internacional.

Como o Observatório da Mineração mostrou anteriormente, somente em CFEM os dados indicam que as mineradoras podem ter sonegado cerca de R$ 35 bilhões nos últimos cinco anos.

Milanez recorda que há um debate sobre Imposto Seletivo na Reforma Tributária, que incidiria sobre setores que afetam o meio ambiente (mineração, pecuária) e sobre a saúde humana (cigarro, bebidas). A discussão, no entanto, segue sem solução.

Ruiz explica que é um imposto discricionário e que incide em alguns tipos de atividade. “A atividade mineradora merece, sim, um tratamento distinto. Não é uma atividade convencional e é um bem da União, por conta da Constituição de 1988. Então, pode ser excepcionalizada por três aspectos: é um bem da União, que deve ser paga por ser proprietária desse bem. Segundo, não é renovável. E terceiro, é um problema ambiental sério, em qualquer parte do mundo. Portanto, temos três temas importantes para a reforma tributária de 2024.” O professor ressalva que “qualquer iniciativa nesse sentido enfrentaria lobbies gigantescos”. “Esse debate está em aberto.”

O Ibram afirma que “a Reforma Tributária criou o Imposto Seletivo – em fase de regulamentação – e ele irá incidir sobre as receitas do setor, com a justificativa semelhante à existência da CFEM – Compensação Financeira pela Exploração Mineral, já recolhida pelas mineradoras”. Para o Instituto, isso representa “mais um peso tributário sobre o setor, que perde condições de competitividade perante os demais países e assim o Brasil fica menos atrativo para o capital estrangeiro e nacional”.

“A consequência é a postergação da implantação de projetos no país. Convém sempre lembrar: a mineração é setor estratégico e considerada de utilidade pública. A União é detentora do patrimônio mineral, sendo as mineradoras concessionárias do Estado. Quando a mineração é prejudicada, esta condição gera reflexos negativos sobre as empresas, mas também sobre a União, os estados e os municípios”, afirma o Ibram.

Leia a íntegra das respostas do IBRAM e da Vale enviadas ao Observatório da Mineração.

*Pablo Pires Fernandes é jornalista freelancer e cronista. Trabalhou como repórter, redator e editor nos jornais O Tempo e Estado de Minas e diretor de redação do site Dom Total, além de colaborar para outros veículos no Brasil e no exterior.

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