Operação da Sigma Lithium em Araçuaí. Foto: Rebeca Binda

Os territórios vítimas dos carros “neutros em carbono”

Picture of <span class="t-500">Autor: </span>Klemens Laschefski

Autor: Klemens Laschefski

O atual debate sobre o clima é dominado por intensas discussões sobre a propulsão do ‘filho predileto do mundo moderno’, o automóvel. O motor movido a combustíveis fósseis deverá ser substituído por combustíveis neutros em CO₂. Neste contexto, o motor elétrico parece estar a ganhar a corrida em relação a outras alternativas, como os motores a hidrogênio. Embora certos grupos manifestem dúvidas quanto a esta tendência, é indiscutível que atualmente há um boom mundial de carros elétricos.

Curiosamente, os conceitos alternativos de transporte para o transporte motorizado individual – ou seja, o próprio automóvel – não estão no centro da controvérsia. No entanto, é inegável que seu impacto negativo sobre o clima não se deve apenas ao seu uso no dia a dia, mas também às cadeias de abastecimento globais das matérias-primas e produtos semiacabados necessários para sua fabricação.

O Brasil, que este ano acolhe a Conferência Mundial sobre o Clima (COP30), vê uma oportunidade nesta conjuntura para se afirmar como fornecedor das matérias-primas necessárias para este tipo de ‘transição energética’. Curiosamente, é precisamente o aliado próximo do ex-presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro (2019-2023), Romeu Zema, governador do estado de Minas Gerais e candidato à presidência pelo partido Novo para as eleições de 2026, que assumiu a liderança nesta questão.

O seu governo aderiu à campanha global “Race to Zero” (Corrida para Zero de CO₂). A iniciativa foi lançada em 2021 pelo governo britânico visando reunir estados e municípios de vários países que se comprometam a reduzir as emissões líquidas de gases com efeito de estufa a zero até 2050 e a limitar o aumento da temperatura global a 1,5 graus Celsius (Agência Minas, 2021)[1]. Neste contexto, um dos projetos mais ambiciosos é, sem dúvida, a exploração das jazidas de lítio no Vale do Jequitinhonha, que foi renomeado como “Vale do Lítio”, o que causou indignação entre a população local.

Em maio de 2023, Romeu Zema e o ministro federal de Minas e Energia, Alexandre Silveira, do governo de centro-esquerda de Luiz Inácio Lula da Silva, lideraram uma campanha publicitária sem precedentes na bolsa de valores Nasdaq, em Nova Iorque, visando atrair investidores estrangeiros para a exploração de lítio (Agência Minas, 2023). Aparentemente, existe uma harmonia entre os partidos de direita e de esquerda que Bringel e Svampa (2023) denominam de “consenso das commodities” ou “consenso da descarbonização”.

O boom do lítio, assim estimulado no Vale do Jequitinhonha, uma das regiões mais pobres do Brasil, no semiárido Cerrado, já apresenta consequências devastadoras. Cerca de 20 empresas competem pelos recursos minerais nesta região, com 200 km de extensão[2].

Ao contrário da Companhia Brasileira de Lítio (CBL), que opera há 30 anos na pequena cidade de Araçuaí, as empresas financiadas por capital internacional não extraem o “ouro branco” em minas subterrâneas, quase invisíveis na superfície terrestre, mas sim em minas a céu aberto. Áreas naturais ricas em biodiversidade e territórios de inúmeras comunidades tradicionais e de alguns povos indígenas estão sendo simplesmente detonados.

Aparentemente, os preços dos terrenos são tão baixos que a enorme destruição das paisagens não é tida como um fator de custo. Ironicamente, é precisamente a empresa SIGMA S.A., que já é alvo de críticas internacionais por causa desta prática, que pretende apresentar-se como líder da “mineração sustentável” na COP 30.

No entanto, a campanha “Race to Zero” não se refere apenas ao lítio. O governo de Zema reconheceu que a procura de carros elétricos também cria novas oportunidades no mercado global para outros minerais. Entre estes, encontram-se as chamadas terras raras, bem como metais comuns, como o nióbio, o cobre, o alumínio e o minério de ferro, todos abundantes em Minas Gerais e na região de Grande Carajás. A ‘transição energética’ oferece, portanto, uma oportunidade bem-vinda para a revitalização econômica dos setores mineiros ‘tradicionais’.

No entanto, os setores da mineração estão, de fato, associados a conflitos ambientais e fundiários desde o início da colonização da América Latina. Além disso, atualmente, encontram-se entre os maiores emissores de gases com efeito estufa. Como isso se encaixa no postulado da neutralidade de CO₂ e da sustentabilidade?

O governo liderado por Zema descobriu que a indústria de mineração e fundição de ferro no estado já produzia ‘aço verde’ desde a década de 1970. Referia-se ao uso de carvão vegetal, cuja madeira era inicialmente proveniente de florestas naturais, mais tarde substituídas por plantações de eucalipto. Em 2023, durante uma visita a Minas Gerais, o então vice-chanceler alemão, Robert Habeck (Partido Verde), ficou tão impressionado com isto que prometeu investimentos da Alemanha.

No entanto, a razão para a utilização de carvão vegetal em vez de combustíveis fósseis sólidos é a ausência de reservas próprias de carvão mineral e lignite no Brasil. Atualmente, Minas Gerais possui 2,3 milhões de hectares de algumas das maiores monoculturas de árvores do mundo destinadas à produção de carvão vegetal, queimado nos altos-fornos das siderúrgicas.

Estas plantações deverão ser ainda mais ampliadas no âmbito da política de descarbonização, que prevê a substituição de algumas quantidades residuais de coque na produção de ferro bruto. Além disso, o governo do estado considera-se pioneiro mundial em proteção do clima, já que “[…] 99,5% da energia provém de fontes renováveis, como a hidráulica, a solar, a eólica e a biomassa” (Agência Minas, 2023).

Com isso, o governo forneceu uma base argumentativa para que inúmeras empresas de mineração e siderurgia, como a Vale, a Anglo American, a Gerdau e a Aperam, se apresentassem em conferências internacionais sobre o ambiente como verdadeiros protagonistas em busca da neutralidade de CO₂. Orgulhosamente, apontam não apenas para as fontes de energia mencionadas acima, mas também para os “biocombustíveis” (etanol de cana-de-açúcar, ‘biodiesel’ de soja) e a energia solar.

No âmbito da modernização das empresas em função da digitalização, automação e interconexão dos processos produtivos (Industrialização 4.0), também estão previstos investimentos na utilização do hidrogênio como combustível para seus parques de máquinas.

Dado que a produção de hidrogênio consome muita energia elétrica, o setor investe em novas usinas hidroelétricas e, em particular, em latifúndios fotovoltaicos, como são designados pela população local (NCSN, 2024). Deste modo, emerge um vasto mosaico de áreas ´monoculturizadas´ — constituídas por minas, barragens, plantações de árvores e agrocombustíveis, gigantescos parques eólicos e solares — que passam a ser classificadas como ‘paisagens climáticas’ para o desenvolvimento sustentável.

A questão é se o governo com a campanha “Race to Zero” cumprirá a promessa de desenvolvimento renovada a qual é, no fundo, muito antiga. A automação de todos os setores afetados, associada à digitalização, reduzirá a procura de mão de obra, que já é baixa, tendo em conta o imenso consumo de terras. Além disso, há uma tendência contínua para fortalecer ainda mais estas exportações de matérias-primas, mediante isenções fiscais e da flexibilização das normas ambientais e sociais. Em vez da fórmula mágica e sem significado “geração de emprego” e da baixa arrecadação de impostos, que poderiam ser canalizada para investimentos públicos, o resultado será mais provavelmente “crescimento sem desenvolvimento”.

Esses fenômenos já foram analisados criticamente em relação a politicas de modernização em épocas anteriores. O que é novo, porém, é o discurso sobre cadeias de suprimentos “sem desmatamento”, “responsáveis” ou “sustentáveis”, que devem ser garantidas por iniciativas internacionais de certificação para a produção “responsável” de minérios, aço, produtos florestais e agrocombustíveis e ESG.

Como essas iniciativas baseiam suas avaliações nas regras e normas dos sistemas locais de governança ambiental, questiona-se sua eficácia. Os governos brasileiros, ao nível federal e estadual, estão atualmente fazendo de tudo para invalidar as bases legais dos procedimentos de  licenciamento ambiental para “minérios estratégicos”. O ápice nesse sentido é o projeto de lei PL 2159/2021, (chamado pelos críticos o “PL da Devastação”) que prevê, entre outras coisas, a criação de uma comissão encarregada de monitorar continuamente a demanda global por minérios e metais para determinar quais dessas matérias-primas são “estratégicas” no referido momento. No âmbito do processo de votação em curso, o governo Lula já apresentou 63 vetos, mas os parágrafos relativos a “projetos prioritários” não foram afetados. Ainda pior: foi introduzida a Medida Provisória (MP) 1308/25, que regulamenta a Licença Ambiental Especial (LAE) para aprovar projetos minerários em regime de urgência, sem participação dos cidadãos, com efeito imediato.

As ‘paisagens climáticas’ representam, assim, novas frentes de expansão para satisfazer as necessidades dos mais abastados do Norte Global (mas também do Sul). As “vítimas” desta apropriação de terras não são os beneficiários da transição energética — os proprietários de carros elétricos, entre outros —, mas sim os povos indígenas e as comunidades tradicionais, que são forçados a vitimizar os seus territórios devido à cobiça de matérias-primas. Desta forma, o discurso sobre a descarbonização permitiu que as empresas siderúrgicas, energéticas e mineradoras, anteriormente consideradas as principais responsáveis pelas crises ambientais globais, reduzissem o debate ambiental à fórmula química CO2.

Assim, não só conseguiram superar a sua imagem de vilãs e posicionar-se como protagonistas na luta contra as mudanças climáticas, como também desacreditar e silenciar os críticos do desenvolvimento urbano-industrial. A triste ironia é que as intervenções ambientais por meio deste ‘neocolonialismo neutro em CO₂’ causam, localmente, exatamente os mesmos problemas em relação ao ciclo natural da água que as próprias mudanças climáticas. Tal como no passado, o evangelho dos missionários serviu de motivação para a subjugação de outros territórios, hoje é a mensagem salvadora do “desenvolvimento sustentável” que justifica o colonialismo moderno.

Quarenta anos atrás, o discurso era bem diferente: na época, dizia-se que a soma dos problemas ambientais causados pela economia da ‘sociedade moderna’, organizada em redes globais, levaria à perda da biodiversidade, à destruição de terras agrícolas, à poluição do ar, da água potável e dos recursos e, por fim, ao colapso climático.

A descentralização e a regionalização dos fluxos de mercadorias, pessoas e redes de informação cada vez mais consumidoras de energia eram apresentadas como alternativas necessárias. O uso de motores elétricos certamente não é uma solução para esse desafio global. Parece que, ao falar sobre proteção do clima, esquecemos os pilares da sustentabilidade: a defesa do meio ambiente e a justiça social.

*Klemens Laschefski é professor de Ecologia Política e membro do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (GESTA) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ele é bolsista de Produtividade em Pesquisa (PQ) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Atualmente, ele trabalha com os temas abordados no artigo no âmbito do projeto “Local, Indigenous, Quilombola and Traditional Communities and the construction of the ‘Lithium Valley’ in Minas Gerais, Brazil: Empowering silenced voices in the energy transition (LIQUIT)”, financiado pela The British Academy, pelo CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e pela FAPEMIG Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais.


[1] Minas Gerais já assinou em 2020, na 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 26) em Glasgow em 2021, um Memorando de Entendimento com o Reino Unido em uma agenda de “desenvolvimento verde”. Outros participantes: Califórnia, Nova York, Havaí e Washington, nos Estados Unidos; Catalunha, Madri e Navarra, na Espanha, e os estados da Suécia, Austrália, Reino Unido, Canadá, Alemanha e Bélgica.

[2] Oficialmente, o “Vale do Lítio” está localizado nos seguintes municípios: Araçuaí, Capelinha, Coronel Murta, Itaobim, Itinga, Malacacheta, Medina, Minas Novas, Pedra Azul, Virgem da Lapa, Teófilo Otoni e Turmalina, no nordeste de Minas Gerais, e Rubelita e Salinas, no norte de Minas Gerais (Agência Minas, 2023), mas também possui investimentos em outros municípios: Caraí, Catuji, Curral de Dentro, Governador Valadares, Itaipé, Itambacuri, Minas Novas e Mibra em Minas Novas (Brasil Mineral, 2023).

Esse artigo foi originalmente publicado no alemão em “Die Welt geht unter – also lassen wir andere Welten untergehen: Die Opferterritorien der CO₂‑Neutralität des Elektroautos“. Brasilicum, 277/278, oct. 2025, ISSN 2199‑7594, P. 24-26.


Descubra mais sobre Observatório da Mineração

Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.

Compartilhe

Apoie o Observatório

Precisamos do apoio dos nossos leitores para continuar atuando de forma independente na denúncia e fiscalização do neoextrativismo, que ameaça comprometer uma transição energética justa e sustentável no Brasil.

Você pode contribuir de duas maneiras. A primeira, e mais eficaz, é por meio de uma assinatura recorrente no PayPal.

Com ela, você apoia mensalmente o trabalho do Observatório da Mineração, com um valor fixo debitado automaticamente no seu cartão de crédito ou débito.

Também aceitamos contribuições pontuais, no valor que preferir, via PIX. Basta enviar para o e-mail: apoie@observatoriodamineracao.com.br
(conta da Associação Reverbera).

Siga o Observatório nas redes sociais e compartilhe o conteúdo com seus amigos!

E buscamos novos parceiros e financiadores.
Desde que alinhados com o nosso propósito, histórico e perfil.
Leia mais sobre o impacto alcançado até hoje pelo Observatório, as aulas que ministramos e entre em contato.

Matérias relacionadas

ANÁLISE É comum que aquilo se fala em cima de um palanque tenha um tom exaltado acima do normal. O...

ANÁLISE Por Bruno Teixeira Peixoto* Ações judiciais estratégicas usadas para intimidar e silenciar vozes críticas (SLAPP) e “lawfare” com os...

ANÁLISE Eu gostaria que o título desse texto fosse qualquer coisa que não a descrição mais adequada ao que a...