O ministro Flavio Dino do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu na segunda (18) que ordens judiciais e executivas de governos estrangeiros precisam da homologação do Supremo para ter validade no Brasil. A decisão ocorre em um processo (ADPF) movido pelo Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM) que contesta a legalidade de municípios brasileiros ajuizarem ações judiciais no exterior visando indenização por danos causados no Brasil.
A decisão envolve justamente o caso do desastre de Mariana que, após longas idas e vindas na justiça, está em fase final de julgamento na Inglaterra em uma ação gigantesca em termos de pessoas envolvidas – centenas de milhares – e valores pedidos pelo escritório Pogust Goodhead, que representa municípios e diversos requerentes brasileiros contra as mineradoras BHP e Vale, que pode chegar a R$ 260 bilhões.
O IBRAM alega ofensa à “soberania nacional”, argumento aceito por Dino, que ressaltou que, no caso em análise, “estão sendo violados princípios essenciais do direito internacional e a submissão de um Estado nacional à jurisdição de outro constitui um autêntico “ato de império”, ou seja, o exercício de suas prerrogativas soberanas”, destaca o próprio STF. O foco da cobertura midiática sobre a decisão tem sido o contexto das sanções de Donald Trump ao Brasil e a cidadãos brasileiros, em especial o ministro Alexandre de Moraes.
A decisão de Dino, porém, favorável ao instituto que representa quase a totalidade da produção mineral brasileira, vem cerca de três meses após Flavio Dino e Dias Toffoli, ao lado do ministro da Defesa, José Mucio e do procurador-geral da República, Paulo Gonet, homenagearem o presidente do IBRAM, Raul Jungmann, com o relevante título de Doutor Honoris Causa entregue por outro ministro do STF, Gilmar Mendes, sócio-fundador do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), que organizou a homenagem.
“Impossível dissociar a trajetória de Raul Belens Jungmann Pinto do ciclo vital da redemocratização nacional”, afirmou Flavio Dino. “É um patriota, um humanista, que cultua valores fundamentais que asseguram a identidade nacional”, reforçou Dino.
“É um humanista, democrata por excelência. É um professor nato. Tem conhecimento amplo da realidade nacional” e “só quem convive com ele para ter a dimensão da pessoa extraordinária que ele é”, destacou Toffoli. “Em tempos de incerteza institucional, Jungmann foi voz contra interpretações enviesadas do papel das Forças Armadas. Que sua história inspire as novas gerações a perseverar na luta pela democracia”, afirmou Gilmar Mendes.
Para Conrado Hübner Mendes, professor de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo (USP), “esse tipo de encontro é absolutamente inapropriado, e é considerado violação da ética judicial em qualquer cultura jurídica que leva ética judicial a sério”.
Para o professor, doutor em Direito e Ciência Política e autor, entre outros, de “O discreto charme da magistocracia: Vícios e disfarces do judiciário brasileiro”, isso não significa desconfiar da probidade ou do caráter de cada um dos indivíduos. “O conceito de conflito de interesses não se preocupa em investigar a boa ou má intenção dos indivíduos, mas sim com a reputação institucional. É um critério objetivo, não subjetivo. E ministros de cortes superiores os violam consistentemente. E passam a deseducar pelo mau exemplo toda a profissão jurídica”, completa Hübner Mendes.
O STF não tem regra sobre conflito de interesses. Nos Estados Unidos, um código de ética para a Suprema Corte foi estabelecido – com críticas – em 2023. No Conselho Nacional de Justiça, há resoluções sobre o tema e propostas que tentam suavizar o texto, excluindo expressões como “conflito de interesses” e “captura” de magistrados por segmentos empresariais e grupos econômicos.
Para Fabiano Angelico, professor da Universidade de Lugano (USI) na Suíça e membro do Grupo de Pesquisa em Integridade Pública da mesma instituição, “a proximidade de ministros do Supremo com alguns atores da vida política e econômica no Brasil é algo realmente escandaloso, é lamentável que uma coisa dessa continue acontecendo”.
De acordo com Angelico, que é doutor em Ciências da Comunicação pela USI e em Administração Pública pela FGV EAESP, “quanto mais o judiciário em particular for percebido como isento, republicano, democrático, mais legitimidade popular ele vai ter e mais apoio em toda a sociedade”, o que é importante especialmente em um momento de ataques constantes e extremistas, como o caso do 08 de janeiro de 2023.
“Esse tipo de situação em que existe uma proximidade entre membros do judiciário e determinada organização e tempos depois uma decisão favorável dessa mesma corte para essa mesma organização, pode até ser que não exista nenhuma correlação entre um fato e outro, mas que isso gera uma enorme desconfiança, gera. Nos tempos atuais, especialmente, esse tipo de conflitos de interesse precisa ser evitado, isso destrói a legitimidade das instituições democráticas”, completa Angelico.

STF homologou acordo por Mariana e julga diversos processos do IBRAM, Vale, Samarco e BHP
No total, o STF tem 4 processos do IBRAM em trâmite para julgar, além de outros 14 processos da Vale S.A, 2 da Samarco e 1 da BHP Billiton Brasil, empresas sócias e responsáveis pelo rompimento da barragem de Mariana em novembro de 2015, considerado o pior desastre ambiental do Brasil, filiadas ao IBRAM.
Entre eles está o acordo firmado em outubro de 2024, homologado pelo STF, de R$ 170 bilhões, sendo R$ 100 bilhões em “dinheiro novo” e que também tentou esvaziar o pedido de reparação na Inglaterra, alegando que tudo já foi acertado no Brasil.
Apenas vinte dias depois do acordo firmado, a justiça absolveu criminalmente as empresas Samarco, Vale e BHP pela responsabilidade no desastre que matou 19 pessoas e contaminou mais de 600km de rios até o Oceano Atlântico no Espírito Santo.
Antes da decisão da última segunda-feira, Dino acatou os argumentos do IBRAM, em outubro passado, o que foi referendado pelo plenário do STF, proibindo que municípios brasileiros levem adiante contratos com escritórios estrangeiros nas ações de Mariana. A Justiça inglesa, por sua vez, determinou que o Ibram desistisse dessa ação no STF e os municípios brasileiros afetados entraram no STF em março para que isso fosse cumprido. A partir desse contexto que Flavio Dino decidiu reforçar o veto à aplicação de decisões e leis estrangeiras automaticamente no Brasil sem homologação, determinando que o IBRAM não precisa desistir da ação no Brasil como decidido pela justiça inglesa.
Procurados, as assessorias do STF e do escritório Pogust Goodhead, responsável pela ação no Reino Unido, não se manifestaram até a publicação dessa matéria. Caso o façam, o texto será atualizado.
“Soberania” é argumento que tem sido usado pelo IBRAM
Na análise de Bruno Peixoto, doutorando em Direito Ambiental na FD-USP, Mestre em Direito Ambiental pela UFSC e assessor jurídico do Observatório da Mineração, diante da decisão do ministro Flávio Dino, o primeiro ponto é a ausência de necessária hipótese da chamada “imunidade de jurisdição”, quando os municípios, ou outros entes federativos do Brasil, precisam solicitar autorização da União Federal pois não possuem personalidade jurídica internacional em nome do Estado brasileiro.
Para Peixoto, este não é o caso em análise na ação coletiva ajuizada na Justiça britânica para reparação dos danos do caso Mariana. A companhia mineradora demandada é de regime privado e não se refere a ente público sob o regime do direito internacional público. “Ou seja, a soberania do Estado brasileiro, respeitadas as posições divergentes, não parece estar em discussão, e, sim, a reparação civil indenizatória a ser ou não efetivada por companhia de direito privado. Os municípios, reitera-se, não são réus, são autores da ação, não se está a falar de ação movida contra o Estado brasileiro ou qualquer de seus entes federativos”, explica Peixoto.
O segundo ponto trata das discussões controversas acerca da forma pela qual os diferentes munícipios de Minas Gerais e do Espírito Santo, atingidos pelo rompimento da barragem de Mariana, contrataram os serviços do escritório de advocacia que os representa na ação coletiva movida na Justiça britânica. De acordo com Peixoto, há que se analisar o formato e as disposições da prestação dos serviços advocatícios em favor dos municípios litigantes na ação, porém isso ainda não implica necessariamente na presença da imunidade de jurisdição e a obrigatoriedade destes municípios de solicitarem autorização para representarem o Estado brasileiro, visto que o caso da ação de Mariana na Justiça britânica não se refere a “atos de império”, como aqueles em que um Estado nacional soberano os pratica na condição de ator do direito internacional – a exemplo de atos de segurança, militares, diplomáticos – algo que vem sendo exclamado sobre eventuais práticas “neocoloniais” por cortes estrangeiras em face do Brasil.
“É preciso dizer que este é um problema a ser diagnosticado, na verdade, sob o ponto de vista da histórica e estrutural atuação mineradora transnacional estrangeira que há muito mantém “neoextrativismos” no seio dos recursos naturais brasileiros, remetendo lucros para os países de origem obtidos com o patrimônio do solo nacional brasileiro. A Justiça britânica, a depender da decisão que venha a ser proferida na ação, confirmará ou não uma necessária reparação de danos causados tanto aos municípios como a todos os demais 700 mil autores, empresas, pessoas, comunidade indígenas, entre outros grupos que almejam justiça diante da tragédia”, avalia Peixoto.
O IBRAM e Jungmann tem repetido o argumento de “soberania nacional” em diversas frentes, incluindo o “Fórum de Integração Brasil-Europa” organizado pelo IDP e FGV em novembro. O argumento da soberania aparece ainda no caso da exploração de minerais críticos brasileiros, o que foi reforçado pelo presidente Lula, apesar do fato de que o setor mineral é, hoje e sempre, completamente dominado por interesses e empresas estrangeiras, como destaquei em texto recente neste Observatório.
Raul Jungmann, que assumiu o IBRAM em 2021 com a missão de dar nova cara ao setor mineral, homenageado em maio por ministros do STF, o PGR e outras autoridades, incluindo a presença do ministro de Minas e Energia, Alexandre Silvera, é um político experiente e foi ministro de Estado por quatro gestões, nas pastas da Política Fundiária (1996-1999), do Desenvolvimento Agrário (1999-2002), no governo FHC, da Defesa (2016-2018) e da Segurança Pública (2018-2019), no governo Temer e deputado federal por três mandatos, o último terminado em 2018.

Em resposta ao Observatório da Mineração, o IBRAM enviou a seguinte nota comentando a decisão do ministro Dino, porém não respondeu aos questionamentos sobre potenciais conflitos de interesse entre o IBRAM e o STF:
“O Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM) considera plenamente aderente à legislação brasileira a decisão proferida pelo ministro Flávio Dino no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF), que estabelece que leis, medidas e sentenças de tribunais estrangeiros somente produzem efeitos no Brasil após validação pelo Judiciário brasileiro, bem como veda a estados e municípios a propositura de novas ações em cortes estrangeiras. Na visão do IBRAM, a diretriz prestigia a soberania nacional, o pacto federativo e a competência do sistema de Justiça brasileiro para fatos ocorridos no país.
A orientação do STF está em consonância com o que o IBRAM sustentou desde o início na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 1178: controvérsias decorrentes do rompimento de barragem em Mariana (MG) — fato ocorrido no Brasil, regido por leis brasileiras e com ampla atuação das instituições nacionais — devem ser tratadas sob a jurisdição brasileira, com eventual cooperação internacional observando os canais legais de homologação e assistência judiciária.
O Instituto reitera o entendimento de que a tramitação de pleitos indenizatórios no Brasil fortalece a segurança jurídica, evita decisões conflitantes e assegura a adequada coordenação entre Poder Judiciário, Ministério Público, órgãos ambientais e autoridades responsáveis pela reparação, sempre em respeito à Constituição. A decisão do ministro Dino, ao fixar que atos estrangeiros não têm eficácia automática no território nacional, reforça esse caminho institucional.
Por fim, o IBRAM reafirma seu compromisso com soluções efetivas de reparação, com o pagamento das indenizações pactuadas em acordo já celebrado com participação de autoridades brasileiras e com a melhoria contínua das práticas socioambientais do setor, bem como com o pleno respeito às competências constitucionais brasileiras. Em casos que envolvam danos ocorridos em território nacional, a Justiça brasileira é o foro competente para garantir respostas céleres, consistentes e aderentes ao ordenamento jurídico do país”.
Atualização: nota do escritório Pogust Goodhead enviada após a publicação da matéria
“A decisão do ministro Flávio Dino na ADPF 1178 não impacta os direitos de quaisquer autores (incluindo indivíduos e municípios) em processos estrangeiros já existentes – como as ações sobre o desastre de Mariana na Inglaterra e na Holanda – e aplica-se apenas às ações de entes públicos em processos estrangeiros futuros.
Vale esclarecer ainda que a decisão não abrange as ações movidas na Inglaterra e na Holanda em nome das vítimas individualmente, que seguem andamento normal.
Além de não ter qualquer impacto sobre o atual andamento das ações na Inglaterra e na Holanda, a decisão, que não tem natureza retroativa, tampouco discute qualquer questão relacionada aos contratos dos municípios com o escritório. O relator também não examina o mérito da ADPF, que trata da legitimidade de municípios para ajuizar ações no exterior.
Ao tratar da necessidade de homologação no Brasil para a execução de decisões ou ordens judiciais estrangeiras, o relator faz referência às medidas liminares concedidas pelo tribunal inglês contra o Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM). Nessas liminares, a corte determina que instituto reconheça que uma de suas petições na ADPF junto ao STF poderia causar sério prejuízo ao direito dos municípios a um julgamento justo. Está prevista para novembro de 2025 a audiência que avaliará a manutenção das liminares na Inglaterra contra o IBRAM.
A jurisdição inglesa sobre a ação de Mariana foi aceita porque a mineradora anglo-australiana BHP tinha sede em Londres à época do desastre. Cabe destacar que apesar da ação inglesa ter se iniciado em 2018, a ADPF 1178 foi ajuizada pelo IBRAM apenas em 2024 com financiamento da própria BHP – fato revelado perante a corte inglesa e posteriormente admitido tanto pelo IBRAM quanto pela BHP.
O ministro Dino também acolheu o pedido dos municípios para a realização de audiência pública, a qual será uma oportunidade importante para que apresentem as razões que fundamentaram a busca por reparação internacional.
O Pogust Goodhead permanece plenamente comprometido em defender os interesses das vítimas e dos municípios afetados, atuando de forma transparente e em conformidade com a legislação aplicável”.
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