ANÁLISE
O marco dos “100 dias de governo” é uma convenção tola alimentada pela mídia há décadas. A tentativa sempre onipresente de comparar gestões piora com a incapacidade de ler diferenças históricas evidentes, literalmente explodindo embaixo do nariz.
Lula pegou um país destroçado em todos os níveis, após uma eleição desonesta e golpista, em que Jair Bolsonaro e sua turma gastaram centenas de bilhões para se manter no poder, articularam um golpe nas ruas – das operações da PRF à mobilização militar para desacreditar as urnas – e, diante da derrota, deram a cartada do terrorismo puro e simples com os ataques vastamente financiados – inclusive com dinheiro do garimpo – de 08 de janeiro.
Ignorar o desmonte estrutural das instituições e a corrosão perigosíssima da democracia de 2019 a 2022 não é só estupidez, mas pavimenta o caminho para continuarmos a viver sob a sombra do fascismo mais tosco e sádico do mundo.
O bolsonarismo, como escreveu jornalão mantido pelo mercado financeiro, ao contrário de “dar vigor à democracia brasileira”, mantém essa combalida democracia sempre com a faca no pescoço, tutelada por forças poderosíssimas de lobby, influência e dinheiro. Sobretudo por empresários que se mostraram sistematicamente pouco afeitos à democracia e que lucraram muitíssimo com a anistia aos inúmeros crimes cometidos, cortesia da gestão Bolsonaro, da encomenda recebida e entregue.
Mas o relatório também analisa os primeiros passos da gestão Lula e deixa 20 recomendações para o cenário começar a mudar.
Nestes 100 dias, é importante colocar em perspectiva o que Lula e o seu governo repleto de políticos que representam interesses não só diversos, mas conflitantes, estão fazendo.
Foto de destaque: Ricardo Stuckert/Divulgação MME
Medidas de combate ao garimpo ilegal ocuparam a agenda dos primeiros 100 dias…
A primeira medida de Lula, literalmente entre os primeiros atos do mandato, em 01 de janeiro, foi revogar o Decreto 10.966, de fevereiro de 2022 de Jair Bolsonaro, que criava o “Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Mineração Artesanal e em Pequena Escala – Pró-Mape”. Ou seja: uma política pública de apoio ao garimpo.
Outro decreto da mesma leva, o 10.965, que alterou o Código de Mineração, estabeleceu critérios simplificados para atos processuais da Agência Nacional de Mineração e facilitou a comercialização de rejeitos de minérios e outras substâncias, na prática muito mais nocivo, segue valendo.
O Decreto 10.965 tinha e tem o objetivo expresso de “ampliar a atração de investimentos para o setor mineral e promover alinhamento da legislação mineral às diretrizes da Lei de Liberdade Econômica, para maior celeridade, desburocratização e simplificação de atos”.
É um exemplo claro sobre como o foco excessivo no garimpo esconde outras mudanças infralegais tão ou mais problemáticas.
Em seguida, Lula criou uma Força-Tarefa envolvendo vários ministérios para combater a crise sanitária e humanitária na terra indígena Yanomami, uma urgência inescapável somada à expulsão dos garimpeiros que atuavam ilegalmente na TI.
Não se resolve um problema complexo, porém, em pouco tempo. E os inúmeros desafios que o garimpo na Amazônia enfrenta – como o fluxo de criminosos de uma região para outra – precisará de um esforço conjunto e continuado de muitos atores.
Em fevereiro, a Agência Nacional de Mineração (ANM) publicou resolução para prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo e da proliferação de armas de destruição em massa atribuídos aos mineradores produtores de pedras e metais preciosos.
Agora, toda pessoa jurídica e física que atue na exploração e na cadeia do ouro, diamante, prata e gemas precisará cumprir uma série de exigências que inclui, por exemplo, “identificação e realização de devida diligência para a qualificação dos clientes e beneficiários finais”.
Está prevista a identificação de pessoas politicamente expostas (PEP) envolvidas nas operações; monitoramento, seleção e análise de operações e situações atípicas ou suspeitas; encaminhamento de comunicações devidas ao Coaf; Identificação e Manutenção do Cadastro de Clientes e Demais Envolvidos.
Será preciso manter registro de todas as operações de comercialização de pedras e metais preciosos e constar, entre outros, identificação do processo minerário vinculado à área; dados de identificação do cliente; descrição em detalhes; valor bruto; data e hora; meio de pagamento.
A resolução representa um passo importante para começar a aumentar o controle sobre a cadeia do ouro e metais preciosos, que hoje é praticamente nenhum, fechando o cerco contra organizações criminosas e é uma resposta clara a indícios de financiamento de empresários do garimpo aos atos terroristas de 08 de janeiro.
No fim de março, a Receita Federal do Brasil publicou instrução normativa que exigirá Nota Fiscal Eletrônica do Ouro Ativo Financeiro a partir de 03 de julho de 2023. A NF eletrônica é destinada ao registro de operações com ouro, ativo financeiro ou instrumento cambial. Vai ficar mais difícil lavar ouro de garimpo ilegal.
Semana passada, o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Gilmar Mendes suspendeu a previsão legal que instituiu a chamada “presunção de boa-fé” no comércio do ouro. A Advocacia-Geral da União, porém, era contra, indo na posição oposta aos ministérios de Povos Indígenas, Meio Ambiente e Justiça.
A medida vem na esteira de uma medida provisória em fase final de preparação do governo Lula que incluirá as principais medidas contra o garimpo ilegal até aqui.
Ação importantíssima do governo foi o pedido de retirada de tramitação do projeto de lei 191/2020, de Jair Bolsonaro, Bento Albuquerque e Sérgio Moro, que permitia mineração, garimpo, agronegócio e hidrelétricas em terras indígenas.
O PL foi alvo de intensa articulação de Arthur Lira e a cúpula do governo Bolsonaro para tentar garantir a aprovação nos últimos anos, o que foi barrado pelo movimento indígena. Algumas das lideranças indígenas que estavam na linha de frente dessa resistência hoje estão no governo, como Sonia Guajajara no Ministério dos Povos Indígenas e Joenia Wapichana na presidência da Funai.
Resta saber se a Câmara do mesmo Arthur Lira vai cumprir o acordo e engavetar de vez o projeto de lei. Rumores dão conta de que, mesmo que isso aconteça, um novo projeto pode surgir para endereçar o mesmo objetivo, alvo de disputa no Legislativo desde os anos 90.
Relevante também que uma das principais recomendações da Comissão Nacional da Verdade (CNV) para a temática indígena deve finalmente ser implementada pelo governo federal: a criação de uma comissão exclusiva para investigar graves violações de direitos humanos dos povos indígenas durante a ditadura empresarial-militar de 1964-1985.
Mas o combate ao garimpo convive e contrasta com a proximidade do lobby das grandes mineradoras
No lançamento da “Frente Parlamentar da Mineração Sustentável” eu alertei aqui que o Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM) passou a encampar insistentemente o combate ao garimpo ilegal e virou parceiro do governo federal e de outras instituições nesta bandeira.
O motivo é simples, escrevi: o garimpo ilegal é ruim para a imagem das empresas, atrapalha os negócios a nível internacional, inclui conflitos com garimpeiros que costumam invadir áreas de exploração de mineradoras e, além disso, limpar o terreno de trabalhadores irregulares também é bom para a indústria.
São movimentos estratégicos de lobby que buscam aproximação com o governo Lula, elegendo o garimpo como o inimigo imediato e deixando o caminho livre para que grandes mineradoras sigam atuando, batendo recorde de lucro, como foi o caso em 2020, 2021 e 2022 e com as violações de direitos humanos e crimes socioambientais cometidos por empresas transnacionais saiam do radar.
Um dos fatos que ilustram essa estratégia é que, cinco dias atrás, o IBRAM e seus associados, que representam 90% da grande mineração, anunciaram que estão em conversas com o Ministério da Justiça e Segurança Pública para firmar um termo de cooperação que tem o objetivo de planejar ações direcionadas a prevenir ocorrências de furtos nas empresas produtoras de ouro.
Representantes da AngloGold Ashanti, Kinross e Equinox, maiores exploradoras de ouro no Brasil, se reuniram no MJSP junto com o presidente do IBRAM, Raul Jungmann e Fernando Azevedo e Silva, general que foi ministro da Defesa de Jair Bolsonaro e agora é vice-presidente do IBRAM.
“Vamos trabalhar em conjunto sobre este tema e, futuramente, envolver as polícias militar e civil nos territórios nos quais as empresas estão inseridas em prol da segurança das instalações e operações de mineração”, afirmou Jungmann.
Na prática, os garimpeiros ilegais estão sendo expulsos dos territórios para que a grande mineração possa atuar sem inconvenientes.
Se a comparação entre Lula e Bolsonaro é quase sempre perigosa, leviana e absurda, na proximidade com o lobby transnacional da mineração isso vira apenas um fato.
O Ministério de Minas e Energia (MME), o Serviço Geológico do Brasil (SGB) e a Agência Nacional de Mineração (ANM) enviaram uma “missão internacional” ao maior evento de mineração do mundo, o PDAC, em conjunto com representantes das maiores mineradoras que atuam no Brasil, reunidas no IBRAM, a Agência para o Desenvolvimento e Inovação do Setor Mineral Brasileiro (ADIMB) e outras instituições.
O “potencial” brasileiro em ser exportador de commodities, base da economia mineral e nacional, foi ainda mais enfatizado aos mais de 30 mil participantes de 130 países que rodaram os stands do PDAC em busca de negócios. Exatamente a tônica dos 4 anos de Jair Bolsonaro.
Outro sinal da continuidade é que o governo Lula nomeou para a Secretaria de Geologia, Mineração e Transformação Mineral do Ministério de Minas e Energia, quem de fato toca a política mineral no país, Vitor Saback. Entre outras atividades, Saback foi assessor especial do Paulo Guedes no ministério da Economia, atuando especialmente nas demandas junto ao Congresso Nacional.
O lobby da mineração tem uma conexão direta com o chefe da política mineral no MME, relação estreitada durante os anos de Bolsonaro.
Saback também é especializado no mercado de capitais. Isso indica que o último presente da gestão de Jair Bolsonaro para o setor mineral segue firme. A iniciativa de liberar instrumentos de mercado para facilitar a captação de recursos pelas mineradoras.
O pacote que está sobre a mesa da gestão de Luís Inácio Lula da Silva recebeu o nome de Iniciativa Mercado de Minas e Energia (IMME) e tem como objetivo “aperfeiçoar a eficiência e o investimento privado no Brasil”. O modelo é fortemente inspirado no agronegócio.
Importante lembrar que o novo ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira (PSD-MG), assumiu o cargo após ter recebido mais de R$ 2 milhões em doações de mineradoras nas duas últimas campanhas para senador, como o Observatório da Mineração mostrou ainda em 03 de janeiro.
Na campanha de 2022, a Direção Estadual do partido de Silveira, o PSD, recebeu R$ 200 mil em doação de Frederico Carlos Gerdau Johannpeter, sócio da Gerdau, repassado ao candidato.
Na campanha para o Senado em 2014, no entanto, quando concorreu como suplente de Antonio Anastasia (PSDB-MG) e foi eleito, a chapa de Silveira recebeu mais de R$ 2 milhões de doações de mineradoras.
Entre as empresas, constam a CBMM da família Moreira Salles, que explora nióbio em Araxá e a MBR, adquirida pela Vale, como as maiores doadoras, com R$ 500 mil cada. A Gerdau vem em seguida, com R$ 400 mil. A Vale Energia contribuiu com R$ 300 mil. A ArcelorMittal, a Usiminas e a Vallourec com R$ 100 mil cada. A Vale Minas do Azul doou R$ 126 mil no total e a Aperam Inox doou R$ 30 mil. Todas as doações são legais e registradas no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
De modo geral, na pauta socioambiental e climática, o avanço e os acertos do governo Lula nestes brevíssimos 100 dias até aqui indicam uma melhora descomunal quando comparada com a destruição absoluta e constante de Jair Bolsonaro, Ricardo Salles, Hamilton Mourão e cia.
Há, finalmente, respeito ao meio ambiente, aos direitos humanos, direitos indígenas e a reconstrução de órgãos sucateados, abandonados, militarizados e colocados para trabalhar contra o seu propósito, caso do Ibama e da Funai.
Mas o governo não é somente Marina Silva, Sônia Guajajara, Silvio Almeida, Joenia Wapichana, Rodrigo Agostinho e a turma extremamente qualificada que está ocupando os primeiros escalões no Ministério do Meio Ambiente.
O governo é também Alexandre Silveira e Carlos Fávaro, da Agricultura, para citar apenas dois, que carregam com eles interesses bem distintos e muito poderosos. A disputa interna típica de um governo de coalizão, que já causou enormes atritos, desconfortos e rupturas nos primeiros mandatos de Lula, pode acontecer novamente.
É papel da sociedade civil, dos movimentos sociais, sindicais, do terceiro setor e das universidades atuar nessa inevitável disputa de poder. Do contrário, por exemplo, o lobby mineral tem tudo para continuar a garantir todos os seus interesses e privilégios.