Barragem da Vale em Brumadinho era considerada de "médio porte" poluidor. Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil

PL da Devastação: indústria mineral defende que é preciso seguir destruindo o planeta para salvá-lo

ANÁLISE

Eu gostaria que o título desse texto fosse qualquer coisa que não a descrição mais adequada ao que a indústria mineral, representada pelo IBRAM, maior e mais representativo grupo do setor, defende.

Porém essa contradição evidente, essa ilusão cínica, esse delírio compartilhado, proferido, despejado, repetido e divulgado incessantemente nos últimos anos é exatamente isso. George Orwell, em “1984”, chama de “duplipensar”. Abre aspas: “ter consciência de completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica”, cravou em sua distopia.

Eu chamo de “negacionismo mineral”, conforme explicado, detalhado e teorizado na minha dissertação de mestrado defendida na Universidade de Brasília.

Esse negacionismo não é igual ao negacionismo climático, escrevi, mas o oposto: se alimenta da crise climática para afirmar a centralidade dos minerais para superarmos a crise e reconhece cientificamente os pressupostos dessa mesma crise climática para se colocar como crucial para a mudança. Ele não nega a concretude e as consequências das mudanças climáticas, mas reafirma essa realidade e essa urgência justamente para colocar os minerais críticos como caminho para resolver o problema. É um negacionismo muito mais sofisticado e inteligente, reconheci.

No caso do apelidado “PL da Devastação”, aquela geringonça em tramitação há décadas no Congresso que sofreu uma metamorfose para cair nas graças dos ruralistas e lobistas de mineradoras, recém endossado com entusiasmo pelo Senado, que tratou – finalmente – de incluir a mineração no conjunto mais destrutivo de regras para o licenciamento que se pode imaginar, esse negacionismo é tão escandaloso quanto o próprio projeto de lei.

O IBRAM, diz nova divulgada recentemente, apoia o PL por “conferir mais agilidade ao processo de licenciamento de empreendimentos importantes para a economia nacional, de modo a destravar um dos grandes gargalos do setor produtivo”. Para o grupo que concentra 90% da produção mineral brasileira, o PL “situa o Brasil no rumo certo para o desenvolvimento e este é uma contribuição inequívoca das duas Casas do Parlamento para o futuro do país e dos brasileiros, com o devido respeito ao meio ambiente, em especial por ser este o ano da COP 30”.

Embora ainda possa sofrer alterações na Câmara, o texto como está hoje é um verdadeiro “libera geral” para a mineração e outros setores: coloca sob responsabilidade das próprias empresas, em muitos casos, o “autolicenciamento”, um dos sonhos do lobby empresarial há muito tempo. Incluindo projetos de “pequeno e médio porte poluidor” – uma abstração que inclui gigantescas operações de mineração e barragens capengas, como era o caso de Brumadinho, que ninguém – literalmente – pode garantir que se sustentam em pé. Ou seja: as próprias empresas vão atestar que “tá tudo bem”, concedendo a licença para elas mesmas.

Ainda: a transição energética e os minerais críticos – um termo surgido no caldeirão da Primeira Guerra Mundial que foi resgatado com nova roupagem para o século XXI, embora represente a mesma coisa – são o argumento preferencial para esse vale tudo mineral, que privilegiará “projetos estratégicos” para a indústria e supostamente para o país.

O IBRAM insinua, nada discretamente, que os US$ 64,8 bilhões de investimentos anunciados pelo setor para os próximos anos – número sem qualquer transparência e aderência ao mundo real – pode “até se multiplicar” se o PL for aprovado.

No fantástico mundo da indústria, a mineração brasileira, após Mariana (2015), Brumadinho (2019) e Braskem em Maceió, para citar apenas três dos maiores desastres provocados pela mineração no mundo, todos concentrados em menos de 10 anos, agora é outra coisa: os R$1,2 trilhão – trilhão – faturados apenas de 2019 para cá foram comprometidos em “transformações estruturais”, mais transparência, segurança e um relacionamento exemplar com as comunidades vulneráveis que deram o azar de serem cercadas pela mineração nas últimas décadas.

Embora não haja qualquer fundamento sério, sistemático e comprovável de que o modelo mineral brasileiro mudou para melhor, e esse é um trabalho que sem dúvida não será feito em poucos anos, a indústria segue vendendo um mundo colorido que contradiz os fatos. Para além dos grandes desastres, que não são pouca coisa, esse Observatório da Mineração é o mais robusto e confiável registro sobre a destruição planejada que a mineração industrial tem provocado no Brasil na última década e como o lobby mineral atua incessantemente para garantir os seus interesses, independente de quem esteja ocupando o cargo máximo do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Porque não importa mesmo.

Dizem que a imprensa é “o quarto poder”. Balela. Quem exerce mesmo esse poder, e exerce com requintes de demonstração diária, inclusive sobre 99% dessa mesma imprensa, é a grande mineração.

Se os combustíveis fósseis teoricamente caíram em desgraça, embora o mundo siga injetando trilhões de dólares em petróleo, gás e carvão, estas empresas – assim como as mineradoras – batem recorde de lucro, tem os políticos do Norte e do Sul Global no bolso e controlam rigorosamente o que interessa nas negociações das COP’s – Belém será apenas mais uma demonstração cabal disso – e em outras instâncias também, a mineração acena para ocupar o lugar que as petroleiras não podem mais, pelo menos oficialmente.

É “indispensável frisar”, diz o IBRAM, que o texto do PL nº 2.159/2021 assegurará ao Brasil  lugar de destaque como “player mundial” em “um cenário net zero e líder da agenda de transição energética, uma vez que o país produz a maioria dos minerais considerados críticos e estratégicos, tanto para alcançarmos uma economia de baixo carbono quanto para reduzir a dependência da importação de fertilizantes”.

A última frase é um aceno ao agronegócio, irmão em armas, em lobby, em infraestrutura, logística, poder, influência e dinheiro, ainda que muito mais pulverizado e “frágil” quando comparado com quem manda no mundo realmente. Afinal, o agronegócio, via fertilizantes, também depende da mineração. Todos nós dependemos. E a mineração, ciente disso, usa muito bem esse argumento para obliterar toda e qualquer crítica, para desprezar quem ousa questionar o modelo espetacular de desenvolvimento pelo qual passamos nos últimos 5 séculos e 25 anos.

Gente muito boa discorda da visão do IBRAM sobre o PL 2159/2021. Mais de 350 organizações movimentos sociais – veja, trezentos e cinquenta – assinaram um manifesto contra o gentilmente apelidado “PL da Devastação” que “estraçalha o licenciamento ambiental no país”, diz, letra por letra, a nota divulgada pelo Observatório do Clima.

“O projeto de lei representa a derrocada de mais de 40 anos de construção da legislação ambiental. Além de ser juridicamente insustentável, compromete fundamentos constitucionais da política ambiental e viola direitos essenciais, como o acesso à saúde e a um meio ambiente ecologicamente equilibrado”, diz o texto.

O cenário atual do licenciamento ambiental no Brasil, no entanto, não é exatamente uma maravilha. A Agência Nacional de Mineração concedeu milhares de “guias de utilização” – algo que deveria ser excepcional – para empresas atuarem, na prática, sem qualquer licenciamento, como revelamos exclusivamente em fevereiro. O libera geral já acontece na prática, sob a mira do Tribunal de Contas da União (TCU).

Além disso, as mineradoras são muito hábeis em “sugerir” alterações em leis, normas, regras, decretos, resoluções, todo tipo de norma infralegal no nível federal, estadual, municipal, em controlar cada aspecto do licenciamento ambiental. Minas Gerais e Pará são exemplos gritantes disso e eu produzi algumas matérias especiais nos últimos anos que mostram exatamente como o lobby mineral manda órgãos públicos ajoelharem e rezarem.

O IBRAM não está sozinho nesta, bom lembrar. O próprio governo Lula III e sua base no Congresso é majoritariamente a favor do PL da Devastação e o Executivo já deu inúmeras demonstrações de que não só não está interessado em travar esse PL como que concorda enormemente com os seus termos gerais.

É o mesmo governo que “converge em 90% dos temas” com a Vale, como dito por um executivo da mineradora recentemente. É o mesmo governo, representado por Alexandre Silveira, ministro de Minas e Energia que recebeu mais de R$ 2 milhões em doações de mineradoras para suas campanhas políticas nos últimos anos, como mostramos aqui ainda em 03 de janeiro de 2023.

É o mesmo Silveira que, entre outras, foi homenageado recentemente pelo mesmo IBRAM que defende o PL da Devastação. É o mesmo MME que discute, em conjunto com a “Frente Parlamentar da Mineração Sustentável”criada e apoiada pelo IBRAM – qual será a atrasada política brasileira em relação aos tais minerais críticos e estratégicos.

O PL da Devastação, que realmente destrói com o que sobrou do licenciamento ambiental no Brasil – e sobrou pouca coisa – coroa uma década de intenso lobby mineral em diferentes governos, em um Congresso financiado majoritariamente pelas mesmas empresas e empresários que ditam o que querem e o que não querem.

O “presidencialismo de coalizão” já era e o “parlamentarismo”, que volta à baila após anos de fortalecimento de um congresso extremista de direita e inundado por dinheiro empresarial, também não dá conta da realidade: somos um país governado pelo mercado e pelo mercado seguiremos sendo governados, não importa quem seja eleito em 2026.

A aniquilação do licenciamento ambiental é apenas o capítulo mais recente, embora um muito relevante, que a maioria das pessoas não dá a mínima, desse óbvio ululante. Uma previsão sempre segura: vai piorar.


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