Itabira, cidade do interior de Minas Gerais, é o berço da Vale. É lá que a mineradora, a segunda maior do mundo hoje, foi fundada em 1942. Com influência direta e indireta em toda a população, a Vale emprega cerca de 10 mil pessoas na cidade, que tem 100 mil habitantes.
Pelo menos 188 trabalhadores da mineradora foram diagnosticados com Covid-19 em Itabira na semana passada, mais da metade dos 361 casos confirmados no município até o momento. A Superintendência Regional do Trabalho de MG, após uma auditoria, pediu a interdição das operações e a Vale conseguiu reverter na justiça.
Até 25 de maio, último dado disponível e fornecido pelo Ministério Público do Trabalho, a Vale realizou 2.142 testes nos trabalhadores em Itabira. A incidência foi de 8,78%, índice comparável aos encontrados nos locais com maior prevalência da contaminação pelo novo coronavírus no Brasil. É a situação de Fortaleza (CE), por exemplo, a sétima cidade do país em casos proporcionais.
Para Adriana de Moura Souza, procuradora do MPT em Minas Gerais, a situação é complicadíssima em Itabira. Segundo ela, pode acontecer o que aconteceu no Pará, onde o número de casos confirmados é altíssimo.
“Estamos numa escalada de disseminação do vírus e a Vale não toma as medidas necessárias. É gravíssimo. O que a gente quer é a segurança de todas as pessoas”, me disse Adriana.
Hoje, Minas Gerais registra quase 11 mil casos e 289 mortes. Estudos mostram que a falta de testes e a subnotificação, porém, indicam que o número de vítimas do novo coronavírus pode ser até 800% maior que o divulgado. E o governo Romeu Zema (Novo) diz que a nova projeção para o pico da COVID-19 em MG será em julho. Até meados de maio, pelo menos 100 mil casos suspeitos de Covid-19 não foram testados em MG e o governo estadual deixou de publicar os dados que mostravam a discrepância com as informações oficiais.
“O conjunto das irregularidades identificadas”, afirmam os auditores no relatório sobre a Vale, “levam à constatação de grave e iminente risco à vida e à saúde dos trabalhadores, decorrente de surto descontrolado de COVID-19 verificado na empresa”.
Para André Viana, diretor do sindicato dos trabalhadores da mineração em Itabira e vereador pelo Patriota, a Vale tem se fechado, não se reúne com os trabalhadores, nega a realidade da situação e não informa os resultados diários dos testes feitos, que teriam inclusive diminuído o ritmo. “Precisou que os auditores do trabalho fizessem essa investigação porque a Vale não está aberta para a comunidade local, o sindicato e a quem ela deve satisfação”, diz.
Entre as razões encontradas pelos auditores do trabalho para pedir a interdição das três minas da Vale em Itabira estão a não realização de estudo epidemiológico, a aglomeração de trabalhadores nas rodoviárias das minas na chegada e saída da troca de turnos, que são ininterruptos, a proximidade entre os trabalhadores dentro das vans utilizadas para o transporte interno na mina e a inexistência de controle sobre a troca de máscaras, recomendada de 2 em 2 horas, entre outros problemas apontados.
Tudo que encontraram, diz o relatório, “comprova de forma cabal como a empresa perdeu o controle da cadeia de transmissão, não havendo mais possibilidade de intervenções parciais” como o afastamento de grupos de trabalhadores, por exemplo.
A interdição, dizem, é “utilizada apenas quando existe risco grave e iminente à vida dos trabalhadores, o que sem sombra de dúvidas é o que está ocorrendo nesse momento”. Para os auditores, a situação poderá levar à morte de trabalhadores “caso medidas enérgicas não forem adotadas de forma imediata”.
Medidas da Vale vão contra o seu próprio plano de resposta para a pandemia
As ações da Vale até aqui vão contra o próprio “Plano de Preparação e Resposta para Pandemia de COVID-19” elaboradora pela empresa e revelado em Ação Civil Pública do MPT.
No plano, consta que o estágio de “resposta”, quando há caso confirmado do novo coronavírus em unidade da Vale, deve levar a medidas como a modificação de todos os eventos presenciais para uma plataforma virtual ou mesmo adiá-los. As reuniões devem ser digitais ou, caso se mantenham ao vivo, com distância mínima de 2 metros entre os participantes.
As fotos registradas pelos auditores mostram o contrário.
O plano da mineradora trabalha sempre com o objetivo de manter as operações da Vale, monitorando um “nível tolerável” de trabalhadores ausentes para que as atividades sigam funcionando.
Para o MPT, o plano da Vale não traz a obrigação de afastar os trabalhadores que trabalham em uma mesma área após a confirmação de um caso de Covid-19 naquele local, indo contra também as recomendações do Ministério da Saúde. “O que reforça a conclusão de que as medidas contidas nos documentos da empresa não são suficientes para promover o efetivo controle da disseminação do novo coronavírus em seus ambientes de trabalho”, diz a ação.
O quadro mínimo de trabalhadores previsto pela própria Vale em Itabira em situações com casos confirmados é de 1.559 trabalhadores próprios e 175 terceirizados, apenas para manutenções corretivas e preventivas. “Já na realidade de surto, como agora já verificado, a resposta é a paralisação da atividade”, ressalta o MPT, mantendo apenas 191 empregados e 54 terceirizados.
“Essa é a previsão do próprio plano da Vale que não foi implementada até agora, mesmo que 10% de seus trabalhadores já tenham sido confirmados com a COVID-19”, afirma o Ministério Público do Trabalho.
Para substituir parte dos trabalhadores afastados, a Vale trouxe pelo menos 20 funcionários de uma operação próxima, em Congonhas, a 170km. Expostos ao risco em uma mina que o MPT e documentos internos da Vale consideram que não pode funcionar, os trabalhadores deslocados da sua base de origem não têm a opção de recusar a mudança sob pena de serem demitidos, segundo fontes ouvidas pela reportagem.
“É uma imoralidade muito grande”, afirma Rafael Ávila, presidente do sindicato que representa os trabalhadores de Congonhas, Ouro Preto e Mariana. Procurada pelo sindicato para recuar nas transferências, a Vale se negou. “É um absurdo completo”, critica Ávila.
Sandoval de Souza trabalhou 14 anos na Vale. Hoje aposentado e diretor de Meio Ambiente e Saúde da União de Associações Comunitárias de Congonhas, conta que as transferências contra a vontade dos trabalhadores são comuns na mineradora. “Se a empresa quiser te retaliar, é normal. Para empregado da Vale isso não é novidade. É bem comum que transferências sejam usadas como meio de massacre. O trabalhador é uma marionete, só um número”, me contou.
Tratamento desigual para terceirizados e turno de 12 horas
De acordo as denúncias recebidas pelo sindicato de Itabira, são os terceirizados que sofrem mais. E o tratamento dispensado a eles, que são mais da metade dos 10 mil funcionários – prática comum na mineração – é diferente dos contratados diretamente.
Em Itabira, um trabalhador terceirizado, após dar positivo no teste rápido para a Covid-19, não foi encaminhado para fazer o teste PCR, considerado o mais confiável. Outra trabalhadora terceirizada, também com Covid-19, teve o seu cartão alimentação cortado pela mineradora.
Na cidade histórica de Congonhas, que tem 7 funcionários da mineradora com o novo coronavírus até o momento, a Vale demitiu 15 trabalhadores de uma terceirizada de limpeza que estavam no grupo de risco da Covid-19. Questionada pelo sindicato local, voltou atrás.
Para a procuradora do MPT, a Vale precisa fazer a fiscalização das terceirizadas e a mineradora é responsável por todos os funcionários. “As normas que tratam do ambiente do trabalho falam isso. Não tem como a Vale se esquivar da responsabilidade”, afirma Adriana.
Em Itabira, o assédio moral para que os trabalhadores aceitem a mudança de turno de 6 para 12 horas no meio da pandemia é constante. O sindicato diz que não vai negociar. A mudança, além de significar mais risco aos funcionários, poderia resultar na demissão de centenas de trabalhadores. Essa mudança está longe de ser razoável, me disse a procuradora do MPT.
Os testes em Minas Gerais, onde a Vale opera diversas minas, começaram apenas semanas após os testes feitos no Pará, estado que ultrapassou a produção de minério de ferro de MG em 2019. Itabira foi a primeira operação a ser testada, a partir de 18 de maio. Como cerca de 300 testes podem ser feitos por dia em cada unidade, diz a mineradora, o número atual deve ser bem maior que os 188 infectados iniciais em Itabira.
Para a representante do MPT, a Vale não admite que está com surto de Covid-19 em Itabira. ”Como sabe se não tem surto se a mineradora não testou todo mundo? É completamente contraditório”, questiona.
“Indústria ladra, que devasta e emigra para outro ponto”
Para Marcelo Spinelli, diretor executivo de ferrosos da Vale, os impactos da pandemia da Covid-19 nas operações da Vale “segue controlado” e a produção deve se manter no que foi previsto, até 330 milhões de toneladas em 2020. Ou seja: o colapso no sistema de saúde causado pela Vale em Parauapebas no Pará e as centenas de casos entre funcionários em Minas não deve afetar os lucros da empresa. É um risco calculado.
Mas os auditores do trabalho não têm dúvidas. De acordo com a análise, a situação verificada “é um grave fator de risco para a contaminação da coletividade de trabalhadores – e até mesmo de seus familiares e de toda a comunidade da região pelo novo coronavírus”, afirmam.
Para Leonardo Ferreira, do Comitê Popular dos Atingidos pela Mineração em Itabira e Região, a Vale está usando a pandemia para achar soluções mais convenientes para ela. “É considerar os trabalhadores como peças sobressalentes que adoecem, você troca e a mobilidade deles é ao bel prazer da empresa”, lembra.
Segundo ele, a Vale tem uma força política muito grande na cidade, direta e simbólica. “Tá na cabeça das pessoas que qualquer crítica à Vale é uma ameaça ao emprego, a renda, aqui isso é muito forte. Esses adoecimentos têm colocado as pessoas para pensar sobre essa defesa a todo custo da empresa”, acredita.
Em resposta à reportagem, a Prefeitura de Itabira afirmou que “tem realizado um constante alinhamento com a Vale na busca por melhores soluções de proteção dos cidadãos itabiranos, incluindo funcionários da empresa”. Segundo a gestão municipal, a Vale é obrigada a informar à secretaria de saúde os resultados dos testes realizados por ela e tem feito isso. Quando questionei sobre os dados atualizados e específicos da Vale, no entanto, a prefeitura não respondeu.
Eu perguntei à Vale sobre o fato de os testes em Minas Gerais terem começado bem depois do Pará, a transferência de 20 funcionários de Congonhas para Itabira e outras possíveis transferências, a alegação de assédio moral sobre os turnos de 12 horas, o caso do tratamento diferente recebido pelos terceirizados, a interdição em Itabira e o número de testes feitos até agora.
A mineradora respondeu somente repetindo as ações que alega estar tomando desde o início da pandemia. “Nas nossas operações, a Vale está trabalhando com um contingente mínimo de pessoas de forma a manter apenas as atividades essenciais com segurança”, disse.
De acordo com a empresa, “em respeito à privacidade de seus empregados, a Vale não comenta sobre resultados de exames”. Sobre o turno de 12 horas, disse que esse modelo é adotado há vários anos em algumas de suas operações, “com os mais altos índices de satisfação entre os empregados”. Em Itabira, isso só pode ser mudado por acordo coletivo de trabalho.
O poeta Carlos Drummond de Andrade, que “principalmente nasceu em Itabira” e viu o seu Pico do Cauê ser totalmente comido pela mineração, sabia bem do que estava falando. Em uma crônica, chamou as mineradoras de “indústria ladra, porque ela tira e não põe, abre cavernas e não deixa raízes, devasta e emigra para outro ponto”.
A fazenda onde Drummond passou a infância não existe mais. Hoje é um depósito de rejeitos da Vale. Em “A montanha pulverizada”, poema publicado em 1973, o poeta não encontra mais a serra, que acabou “britada em bilhões de lascas/deslizando em correia transportadora/entupindo 150 vagões/ no trem-monstro de 5 locomotivas”.
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