Hub de hidrogênio verde no Ceará tem parceria com mineradora australiana, generosos incentivos fiscais e impactos desconsiderados

Os planos do governo do Ceará para o hidrogênio verde, fonte de combustível considerada sustentável gerada a partir da eletrólise da água, são ambiciosos.

Comandado pelo ex-governador Camilo Santana (PT), que entregou o cargo em abril para a vice, Izolda Cela (PDT), o estado do Ceará quer construir o “maior hub de hidrogênio verde do Brasil” no Complexo Portuário do Pecém, em São Gonçalo do Amarante, a 60km de Fortaleza.  

Para tanto, o governo cearense publicou uma resolução inédita para o mercado de hidrogênio verde em fevereiro de 2022, fez parcerias com a Universidade Federal do Ceará (UFC), a Federação das Indústrias do estado (FIEC) e tem corrido para assinar “memorandos de entendimento” com dezenas de empresas multinacionais.

Entre elas, estão a Fortescue Metals, mineradora australiana que é a quarta maior produtora de minério de ferro do mundo. Outras empresas de peso já se comprometeram a investir no hub de hidrogênio, como a White Martins, Eneva, Engie, EDP e outras. São 18 até o momento. A expectativa é chegar a 24 em breve.

Boa parte desses contratos, no entanto, segue em sigilo, sem detalhes. A corrida pelo hidrogênio verde no Brasil tem um viés claro: tipo exportação.

O objetivo dessas empresas é usar os generosos incentivos fiscais concedidos pelo governo cearense para “limpar” os impactos da sua cadeia de suprimentos, lucrar bastante e, essencialmente, “descarbonizar” a economia europeia.

O hidrogênio verde produzido no hub pode ser transformado em milhões de toneladas de amônia por ano, forma na qual o hidrogênio (H2V) deverá ser transportado.

A previsão é que as energias eólica e solar abasteçam o hub em desenvolvimento, mas isso não exclui um rastro de violações de direitos que ambas as gerações acumulam no Ceará. Agronegócio e mineração serão um dos grandes beneficiados. E muitas dúvidas permanecem.

Parceria com mineradora australiana e incentivos fiscais até 2050

A Fortescue Metals assinou em junho de 2021 um memorando com o governo cearense. Empresa “júnior”, criada em 2003, a Fortescue já se colocou no top 5 das maiores produtoras mundiais de minério de ferro, se enfiando no grupo das gigantes Vale, Rio Tinto e BHP. Todas atuam no Brasil.

Ao todo, a empresa australiana deverá investir US$ 3,5 bilhões em uma usina de hidrogênio verde no complexo do Porto do Pecém. O restante do valor, cerca de US$ 2,5 bilhões deverá ser aportado em outros investimentos relacionados à geração de energia.

A meta da Fortescue é começar as operações em 2025 e produzir 15 milhões de toneladas de H2V até 2030.

“Nossa visão é fazer do hidrogênio verde a commodity de energia mais comercializada globalmente no mundo” afirmou a CEO da empresa, Julie Shuttleworth, para a EPBR.

“O Ceará tem infraestrutura portuária e localização estratégica. Este acordo permitirá a transição energética do Brasil para a descarbonização”, completou o presidente da Fortescue para a América Latina, Agustin Pichot.

Empresas como a mineradora australiana aproveitarão um generoso plano de incentivos fiscais oferecido pelo governo do Ceará que deve durar até 2050.

Incentivos fiscais federais e estaduais se acumulam

Procurado pela reportagem do Observatório da Mineração, o governo do Ceará não apresentou estimativa de valores, mas forneceu detalhes sobre como funcionará os benefícios cedidos para empresas como a Fortescue.

Como é comum ao redor do Brasil, a multinacional contará com uma longa cadeia de incentivos fiscais federais e estaduais para implantar o seu projeto no Porto de Pecém. Ou seja: é o contribuinte cearense que irá arcar com grande parte dos investimentos.

A Secretaria do Desenvolvimento Econômico e Trabalho (Sedet) informou que todas as empresas que se instalam em uma Zona de Processamento do Exportação (ZPE) têm acesso a tratamento tributário, cambial e administrativo especiais, conforme a Lei Federal nº 11.508/2007, que foi alterada recentemente pela Lei Federal nº 14.184/2021.

É o caso da planta de hidrogênio verde da Fortescue, que será instalada na área da ZPE Ceará e gozará de benefícios gerais, previstos em lei federal, além de benefícios fiscais de âmbito federal e estadual.

Veja o box com os detalhes obtidos pela reportagem.

Benefícios Gerais:

Liberdade Cambial – As empresas podem manter no exterior, permanentemente, 100% das divisas obtidas nas suas exportações; fora de uma ZPE, essa faculdade não é garantida em lei, dependendo da resolução do Conselho Monetário Nacional; A possibilidade de realização de investimentos, aplicações financeiras ou pagamento de obrigações do exportador com recursos mantidos no exterior; Redução do impacto da variação cambial das operações realizadas com empresas do exterior.

Dispensa de Licenças – Dispensa de licenças ou autorizações de órgãos federais nas operações de comércio exterior, que não sejam associadas aos controles de ordem sanitária, de interesse da segurança nacional ou de proteção ao meio ambiente.

Segurança Jurídica – Os benefícios concedidos são garantidos pelo período de 20 anos (prorrogável), independentemente de alterações futuras na legislação ou mudanças políticas e econômicas a que o País estiver suscetível.

Benefícios Fiscais:

Federal
Incidentes na aquisição de bens, insumos e serviços oriundos do Mercado Nacional: suspensão de IPI; COFINS; e PIS/PASEP.

Incidentes na aquisição de bens, insumos e serviços oriundos do Mercado Externo: suspensão de II; AFRMM; IPI; COFINS Importação; e PIS/PASEP Importação.

Estadual

Isenção do ICMS (Decreto Estadual 33.251/2019):

Nos bens e mercadorias para utilização em processo de industrialização de produtos a serem exportados;

Na prestação de serviço de transporte intermunicipal e interestadual;

No diferencial de alíquotas nas aquisições interestaduais de bens destinados ao ativo imobilizado.

O plano, pensado “a partir de estudos” com foco no mercado internacional, e em especial na relação do mercado cearense com a Austrália, considera ainda a parceria entre o Porto do Pecém com o Porto de Roterdã, na Holanda, maior centro de H2V da Europa.

“Essa produção de Hidrogênio Verde pode ser o grande marco de uma transformação econômica do Estado do Ceará nos próximos anos”, destacou o agora ex-governador Camilo Santana quando o projeto foi lançado.

Vendendo o projeto do Hub de H2V, o Complexo do Pecém destaca a sua localização geográfica estratégica, com rotas marítimas conectadas à Europa e aos Estados Unidos, os diversos incentivos fiscais que oferece a área e o fato de que o Pecém é um parque industrial instalado com empresas do “mercado consumidor de hidrogênio”, todas elas grandes poluentes, incluindo os setores de aço, fertilizantes, cimento, mineração e até uma futura refinaria a ser instalada no local.

No Complexo há mais digitais de mineradoras. A siderúrgica instalada no Pecém em 2008, que ocupa uma área de 571 hectares, foi feita por uma joint venture da Vale com a Dongkuk Steel Mill Co. e a Posco, grandes produtores de aço da Coreia do Sul.

Mina da Fortescue na Austrália

Brasil passa a ocupar protagonismo nos ambiciosos objetivos de “neutralidade em carbono” da Fortescue

A Fortescue possui operações de exploração e mineração em Gales, Austrália, Equador e Argentina. Agora, quer operar no Brasil partindo do Ceará, no Porto de Pecém e no Rio de Janeiro, via Porto do Açu, com quem também fez parceria para instalar uma planta de hidrogênio verde com capacidade de 300 megawatts.

Localizado em São João da Barra, o Porto do Açu é o terceiro maior terminal de minério de ferro do Brasil, exporta 25% do petróleo brasileiro e tem um acordo de longo prazo com outra gigante da mineração, a Anglo American.

Os contratos no Ceará e no Rio de Janeiro foram firmados pela Fortescue Future Industries, subsidiária da mineradora australiana responsável pelos “negócios verdes” da companhia.

Oficialmente, a Fortescue quer se tornar “neutra em carbono” até 2030 e tem buscado polos de produção de hidrogênio verde em vários locais do mundo. No caso do Açu, mineração e agronegócio se encontram novamente: o hidrogênio produzido seria utilizado para produzir 250 mil toneladas por ano de amônia, largamente utilizada no ramo de fertilizantes agrícolas.

A Fortescue assumiu um papel agressivo em apostar na mudança de matriz energética na mineração. Mesmo com apenas duas décadas de criação, a “novata” coloca pressão em rivais australianas que estão entre as maiores do mundo, como BHP e Rio Tinto.

Assim como as suas concorrentes, no entanto, a Fortescue também passou por cima de direitos indígenas na Austrália e foi condenada em 2017 a pagar indenizações e royalties por ter ocupado área indígena com uma de suas minas.

O discurso da Fortescue, porém, é de quer zerar as emissões também da sua cadeia de valor, o que inclui grandes clientes como as siderúrgicas que utilizam o minério de ferro que a mineradora produz. Para tanto, o hidrogênio verde é essencial.

A siderurgia é responsável por 7% a 9% das emissões de todas as emissões de CO2 do planeta relacionadas à queima de combustíveis fósseis e por mais de 95% das emissões de escopo 3 (da cadeia de valor) das mineradoras.

Para atingir esses objetivos, porém, a Fortescue terá um longo caminho pela frente, considerando que cumpra todas as suas promessas e que tantos anúncios não se transformem em mais uma estratégia de “maquiagem verde” bem elaborada.

Anúncio pomposo do governo e legislação inédita esconde impactos ignorados

Para Júlio Holanda, pesquisador cearense na área socioambiental, o anúncio do governo do Ceará foi pomposo e carregado de pretensões. O sigilo nos contratos e memorandos, porém, impera.

E os impactos socioambientais de toda a cadeia do hidrogênio verde não são considerados, ainda que a sociedade civil tenha conseguido pressionar por mudanças significativas na publicação de uma resolução estadual que regula o hidrogênio verde, algo inédito no Brasil.

A lógica da competição entre os estados, que é muito forte na energia eólica e solar, e passa pelos incentivos fiscais e a facilidade de financiamento por bancos públicos, inclui a flexibilização de legislação ambientais.

O hidrogênio verde vive semelhante. O Ceará estabeleceu a primeira legislação para empreendimentos de hidrogênio verde no país, via uma Resolução publicada em fevereiro de 2022.

Para Holanda, “esse processo não parte de parâmetros sociais e ambientais, parte de parâmetros meramente econômicos, de como vender esse atrativo. Não existe uma legislação federal ainda, abrindo um precedente, sem comparação possível”, diz.

Ao mesmo tempo, destaca, a sociedade civil teve uma incidência muito forte por meio de um comitê técnico que foi criado no Conselho Estadual que incluía desde entidades ligadas ao mercado, Ministério Público, OAB, a Universidade Federal do Ceará e outros movimentos e organizações que conseguiram avanços significativos na versão final da resolução em comparação com a versão inicial apresentada.

Por exemplo, o texto passou a incluir que toda comunidade costeira e tradicional impactada por projetos de hidrogênio verde contará com a consulta livre, prévia e informada conforme Convenção 169 da OIT.

A pressão também conseguiu tirar a exigência de relatório ambiental simplificado para portes maiores de empresas. O EIA/RIMA passou a ser exigido a partir de empresas de médio porte em diante, e o simplificado apenas para micro e pequeno porte. “Foram avanços possíveis dentro dessa construção”, diz Holanda.

Outra mudança muito importante foi a retirada da previsão de instalação de unidades de produção de hidrogênio dentro de áreas protegidas, como campos de dunas, manguezais, bioma Mata Atlântica, zona de amortecimento de unidade de conservação e áreas com aves migratórias.

Tudo isso estava previsto inicialmente e a sociedade civil conseguiu retirar do texto final da Resolução aprovada. “Estamos nos deparando com algo muito novo, mas conseguimos avanços relevantes”, diz o pesquisador.

Uma das grandes lacunas que permaneceram, porém, é o uso da água, fundamental para a produção do hidrogênio verde. Especula-se, no Ceará, que um projeto de dessalinização da água do mar esteja atrelado ao hub de hidrogênio criado. “Mas isso está obscuro no momento”, diz Holanda.

O Ceará tem um déficit hídrico histórico e não há clareza sobre as outorgas para o uso da água usado nos projetos.

Outro fato preocupante é que acessar o conteúdo dos memorandos assinados entre as empresas e o governo do Ceará não tem sido tarefa simples, mesmo via Lei de Acesso À Informação. “É bem difícil. Tentamos de várias formas e na maior parte dos casos não conseguimos”, relata Holanda.

“Sustentabilidade” do hidrogênio é questionada diante da cadeia de conflitos

A produção de um combustível teoricamente sustentável como o hidrogênio verde no Brasil tem de fundo o fato de que é para exportação, como o Observatório da Mineração destacou em outra matéria sobre o avanço desse combustível no Brasil, focando projetos em Minas Gerais.

“Estaremos produzindo combustível para que os países do Norte Global possam descarbonizar as suas economias”, lembra Holanda. 

Mais: os potenciais conflitos socioambientais gerados pelos projetos de hidrogênio verde costumam ser excluídos do debate. 

A geração de energia no Brasil é centralizada. Não há garantia de que a fonte de energia para alimentar a hidrólise, a quebra da molécula de água para produzir o hidrogênio verde, venha de uma fonte renovável como eólica e solar. “Ela pode vir da termelétrica do Pecém, que é movida a carvão. Pode vir de energia nuclear, de qualquer outro lugar. Não há uma garantia de que o hidrogênio seja de fato verde, diferente do cinza, roxo e outros”, afirma Júlio Holanda.

Para piorar, mesmo fontes como a eólica e solar trazem impactos socioambientais significativos, algo também ignorado. Para Holanda, o processo de produção do hidrogênio verde “é perverso de duas formas: primeiro que você não garante que é verde e segundo que ainda o verde já pode trazer consigo comunidades impactadas, direitos violados, campos de dunas fragmentados e impermeabilizados”.

Toda a cadeia de produção combinada potencializa os impactos: desde uma fonte eólica que passou por cima de direitos de comunidades até a própria instalação das fábricas, que podem incluir áreas sensíveis, a fabricação, produção, transporte e exportação.

“A tendência é a reprodução desses conflitos”, critica Julio Holanda.

Estima-se que a demanda por hidrogênio verde no mundo chegará a 200 milhões de toneladas em 2030, segundo a Agência Internacional de Energia.

No caso do Brasil, estudo da consultoria McKinsey, apesar de destacar que o mercado doméstico pode assumir protagonismo maior do que os projetos anunciados até agora indicam, para viabilizar o crescimento esperado do H2V por aqui, “o hidrogênio verde precisará de USD 200 bilhões em investimentos, incluindo 180 GW de capacidade de geração de eletricidade renovável adicional— o que é mais do que a capacidade de geração instalada no país atualmente“, afirmam.

Ou seja: há um longo, complexo e tortuoso caminho pela frente, com contradições que não podem ser ignoradas.

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