ANÁLISE
Diante da complexidade, amplitude e ineditismo das consequências do rompimento da barragem que era propriedade de Samarco, Vale e BHP em Mariana, 9 anos se passaram até que um grande acordo final fosse anunciado no último dia 25 de outubro.
Isso inclui a disputa ferrenha pelos R$ 100 bilhões em “dinheiro novo” que será injetado na bacia do Rio Doce, transformada em uma verdadeira indústria de reparação capaz de enriquecer muita gente com atividade suspeita nos últimos anos e deixar os verdadeiros atingidos de fora.
Mas uma das perguntas sem resposta que o acordo deixou no ar não tardou a ganhar um novo capítulo: a Justiça Federal acaba de absolver as empresas Samarco, Vale e BHP pela responsabilidade criminal no rompimento que matou 19 pessoas, devastou distritos inteiros e despejou cerca de 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos por mais de 600 quilômetros de rios, atingindo o Oceano Atlântico no Espírito Santo e se espalhando até Abrolhos, na Bahia, região de enorme biodiversidade marinha.
A decisão acontece meros 20 dias depois do acordo assinado pelas mesmas empresas e demais atores envolvidos.
O Tribunal Regional Federal da 6ª Região alegou “ausência de provas suficientes para estabelecer a responsabilidade criminal” direta e individual de cada réu envolvido no caso. Por isso, absolveu as empresas e os réus restantes, incluindo o ex-presidente da Samarco na época do rompimento, Ricardo Vescovi.
Essa decisão já era esperada, uma vez que diversos executivos já haviam sido absolvidos, o crime de homicídio havia sido retirado do processo em 2019 e os fatos indicavam esse desfecho.
O Ministério Público Federal afirma que irá recorrer da decisão. Foi o MPF que denunciou, em outubro de 2016, quatro empresas – além de Samarco, Vale e BHP, a VogBR, responsável pelo laudo da barragem – e 22 pessoas pelos crimes de homicídio qualificado, inundação, desabamento, lesões corporais graves, crimes ambientais e laudo ambiental falso.
Todos os envolvidos foram absolvidos.
A decisão da Justiça Federal revela a dificuldade de se responsabilizar criminalmente empresas no Brasil, incluindo o alto escalão, especialmente em casos socioambientais. São inúmeras as brechas que executivos e empresas possuem para escapar da atribuição direta de responsabilidade, motivo pelo qual todos escaparam de punição no momento.
Afinal, há toneladas de provas e evidências disponíveis, mas estabelecer a ligação direta entre essas provas e os tomadores de decisão, por mais escancarado que certas situações pareçam, é outro departamento.
Para tentar mudar isto há, por exemplo, o Projeto de Lei 2933/23, de autoria de Guilherme Boulos (PSOL-SP), que tipifica o crime de ecocídio na Lei de Crimes Ambientais existentes, que é de 1998.
Se aprovado, o crime de ecocídio seria “praticar atos ilegais ou temerários com a consciência de que eles geram uma probabilidade substancial de danos graves e generalizados ou de longo prazo ao meio ambiente” e a pena prevista é de reclusão de 5 a 15 anos e multa.
O crime de ecocídio, porém, ainda não está sequer tipificado no âmbito do Estatuto do Tribunal Penal Internacional e o PL em trâmite no Brasil deve enfrentar forte resistência de um Congresso dominado por parlamentares de extrema-direita e vastamente financiados pelo agronegócio e pela mineração.
Outro projeto de lei que deve enfrentar resistência é o apresentado em 2022 por uma série de deputados do PSOL, PT e Rede que cria uma lei nacional sobre Direitos Humanos e Empresas.
Ousada, moderna e necessária, a proposta de lei estabelece, por exemplo, que o Estado e as empresas tem a obrigação comum não só de respeitar e não violar os Direitos Humanos, como de “não praticar atos de colaboração, cumplicidade, instigação, indução e encobrimento econômico, financeiro ou de serviços com outras entidades, instituições ou pessoas que violem os Direitos Humanos”.
Em caso de violações, as empresas precisariam atuar em reparação integral, garantir que o processo não gere novas violações para as pessoas atingidas e “garantir pleno acesso a todos os documentos e informações que possam ser úteis para a defesa dos direitos das pessoas atingidas”.
Além de se tornarem responsáveis pelas violações causadas direta ou indiretamente por suas atividades, “a responsabilidade pela violação é solidária e se estende por toda a cadeia de produção, incluída a empresa controladora, as empresas controladas, bem como os investidores públicos e privados, incluídas as subcontratistas, filiais, subsidiárias, instituições econômicas e financeiras com atividade fora do território nacional, e entidades econômicas e financeiras nacionais que participem investindo ou se beneficiando de qualquer etapa do processo produtivo, inclusive quando não houver relação contratual formal”, diz o texto da proposta de lei.
São questões extremamente relevantes que obrigam total transparência e responsabilização das empresas em toda a cadeia de valor, incluindo subsidiárias e outras formas de atuação capitalista, o que se aplicaria, por exemplo, exatamente ao caso de Mariana, já que a Samarco é controlada 50/50% por Vale e BHP e, no início, tal fato foi usado como tentativa de eximir as empresas sócias da responsabilidade.
É pouco provável que a absolvição criminal dos envolvidos no Caso Samarco seja revertida após pedido do MPF. O grande acordo final pode realmente ser a última palavra.
Exceto se a ação movida na Inglaterra por centenas de milhares de pessoas e por escritório de advocacia especializado em processar grandes multinacionais prospere. O julgamento na corte inglesa está em andamento e o resultado sairá em 2025.
Seja como for, o Caso Samarco representa, no Brasil e fora do Brasil, uma jurisprudência importantíssima e crucial para o futuro da responsabilização empresarial por crimes socioambientais. Os últimos capítulos dirão.
Foto de destaque: Isis Medeiros